9 de agosto de 2013

The Difference Engine: A forma e o conteúdo

Talvez a minha desilusão com a leitura de The Difference Engine (1990), de William Gibson e Bruce Sterling, tenha sido em parte uma questão de expectativas goradas: apesar de ainda nada ter lido de Sterling, de Gibson já li o fascinante Neuromancer, obra que não inaugurou mas que revolucionou o cyberpunk e definiu de forma indelével a sua estética. Tendo isso em mente, e com a ideia (difundida um pouco por toda a parte) de que The Difference Engine estaria mais ou menos para o steampunk – estética com a qual estava mais ou menos familiarizado – como Neuromancer para o cyberpunk, foi com entusiasmo que iniciei a leitura. Mas boa parte do entusiasmo inicial começou a desvanecer-se ainda antes de chegar a meio.

Isto, note-se, não significa que The Difference Engine não seja um bom livro. A escrita sólida apresenta um worldbuilding fascinante, com Gibson e Sterling a darem vida a uma Londres oitocentista na qual a energia a vapor se tornou em sinónimo de progresso e onde Charles Babbage conseguiu desenvolver o seu 'Analytical Engine' – na prática um computador mecânico que tornou possível uma Revolução da Informação em plena Revolução Industrial, durante a época vitoriana. Aqui, nada é poupado, e os autores descrevem com detalhe a intriga política que possibilitou a ascensão da elite tecnocrática liderada por Babbage e por Byron, que esmagou os Conservadores de Wellington e governa a Inglaterra com o seu ‘Industrial Radical Party’. Os contrastes sociais entre as forças do poder, a oposição e os luditas são bem visíveis, tal como a miséria em que vive boa parte da população – como se os cenários sombrios do cyberpunk tivessem sido adaptados retroactivamente ao século XIX. Mas os autores não se limitam às Ilhas Britânicas, pintando um retrato a todos os níveis rico e impressionante daquele mundo alternativo onde os Estados Unidos continuam fragmentados em várias nações (com uma comuna marxista em plena Manhattan), a Alemanha não parece pronta a reunificar-se e a França continua a ser a grande força política e militar na Europa continental.

Mas o problema de The Difference Engine – o que minou o meu entusiasmo* – reside mesmo nas suas personagens e no seu enredo. Se as primeiras são, regra geral, desinteressantes e superficiais, o segundo roça a irrelevância com as suas voltas e reviravoltas para lugar nenhum. E nada disto acontece por não haver potencial neste mundo para contar uma excelente história – o exercício de retirar personagens históricas, como Ada Lovelace (entre muitas outras), e coloca-las nesta realidade alternativa é interessante e produz resultados surpreendentes (contribuindo de forma decisiva para a riqueza de todo este mundo ficcional), mas estas funcionam essencialmente como figurantes, por vezes glorificados a personagens secundárias com mais impacto no ambiente do que na narrativa. Os protagonistas são pouco convincentes, e o mistério em tom algo hard-boiled que os envolve ao longo das várias histórias que parecem dar forma ao todo que é The Difference Engine acaba por se revelar insípido, para não dizer vazio. Há quem diga que todo o enredo dos punch cards funciona como um MacGuffin – mas, na prática, assemelha-se mais a uma red herring. E estas só funcionam quando há algo mais interessante para contar, o que não é de todo o caso.

É pena que assim seja. The Difference Engine tem quase tudo para ser um livro a todos os níveis extraordinários – o seu mundo alternativo é fascinante no seu retrofuturismo tecnológico, intricado nas suas conspirações políticas e muito pormenorizado nas questões sociais que levanta. Falta apenas uma mão-cheia de personagens interessantes a conviver com Babbage, Byron e Lovelace, e um enredo mesmo intrigante, digno daquela construção ficcional. Algo que Gibson e Sterling parecem ter deixado para outros autores, empenhados que estavam no desenvolvimento de uma estética arrojada. Não há dúvida de que, em termos estéticos e de worldbuilding, The Difference Engine é revolucionário e sem dúvida uma das pedras angulares do steampunk. Mas não deixa de ser lamentável que não alcance o mesmo patamar narrativo e estilístico, deixando a forma esmagar por completo o conteúdo. Na prática, a sua leitura revela-se quase mais próxima de História alternativa do que de ficção científica, ou algo que lhe valha – o que não é necessariamente mau. Quem, contudo, preferir uma boa história num ambiente de steampunk, deverá talvez procurar outras obras.

* Uma opinião que assumo desde já um tanto ou quanto volátil. Não será inédito se The Difference Engine se vier a revelar numa obra completamente diferente – e bem mais satisfatória – durante uma releitura. 

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