23 de julho de 2013

Pacific Rim, ou o encantamento (e o coração) do cinema-espectáculo

Quis a sorte que o primeiro filme que vi em cinema - improvisado, é certo, mas ainda assim cinema - tenha sido Jurassic Park, de Steven Spielberg. Na aldeia alentejana onde cresci, cinema era coisa inexistente, algo que acontecia nas cidades onde só se ia uma vez por acaso a cada dois meses, e nunca com tempo para aproveitar tais coisas. Em 1993, porém, isso mudou - e poucos meses após a estreia, o cinema regressou à aldeia por mão de um projeccionista ambulante da terra que conseguiu lá levar um dos maiores blockbusters daquela década pouco tempo depois da sua estreia. Para um miúdo de gostos geek e completamente apaixonado por tudo o que estivesse relacionado com dinossauros (sabia tudo o que era possível um miúdo de oito anos saber sobre Tyranossaurus Rex, Brachiosaurus ou Velociraptors), aquela estreia foi um Natal antecipado; e foi com um entusiasmo desmedido que fui assistir ao filme, exibido na Casa do Povo da aldeia. De 93 a esta parte vi dezenas de filmes em dezenas de salas de cinema - e, na sua maioria, foram filmes bons ou muito bons; nenhum, porém, conseguiu deixar aquela sensação de encantamento puro, de estar a assistir a algo fascinante, com criaturas maravilhosas numa escala desmesurada, larger than life. Foram precisos 20 anos para recuperar essa sensação - e, desta vez, pela mão de Guillermo Del Toro com Pacific Rim.

Para quem gosta do género, ou para quem tenha alguns filmes e algumas séries de monstros ou robots gigantes como referências da infância, será porventura difícil assistir a Pacific Rim sem um sorriso. De facto, a primeira coisa que salta à vista no blockbuster de Guillermo Del Toro é a sua escala tremenda, incomparável a qualquer outro filme do seu género (ou de outro género). Os mostros de Del Toro, os Kaiju, são a perfeita definição de gigante numa tela - e os robots, os Jaegers, não lhes ficam atrás. 


Mas o tamanho não é tudo: os monstros parecem mesmo monstros e os robots parecem mesmo robots, ganhando vida através de uma componente visual cuidada e de efeitos especiais deslumbrantes, capazes de os recriar com a imponência e a força que parecem ter quando se entregam a combates violentos, atmosféricos como nenhuns outros (o ambiente chuvoso serve um propósito essencialmente prático, bem sei, mas funciona também no plano emocional), com uma energia contagiante. A promessa do realizador, o único compromisso que fez para o filme, foi cumprido na íntegra: giant fucking monsters against giant fucking robots.


É na diversidade de monstros e robots que começamos a ver como Del Toro e o argumentista Travis Beacham conceberam não só o seu espectáculo de acção mas como todo um mundo interessante em redor da premissa básica do filme. Qual desastre natural, os Kaiju são agrupados em cinco categorias de acordo com as suas dimensões e capacidades, e ainda que haja em cada monstro uma certa evidência de origem comum, são individualizados na sua forma e na sua habilidade (Leatherback e Otachi são disso excelentes exemplos) - e nota-se nas formas a estética inconfundível de Del Toro, presente em filmes como Hellboy ou El Laberinto Del Fauno. Mas também os Jaegers são diversos, com o americano Gipsy Danger a ser bastante diferente do russo Cherno Alpha ou do chinês Crimson Typhoon.


A acção é, como não podia deixar de ser, o prato principal de Pacific Rim, e Del Toro serve-a em doses generosas. Mas não se fica por aí, e constrói à volta da ideia central de monstros versus robots todo um universo ficcional interessante que empresta verosimilhança à premissa. O filme abre com um prólogo fascinante, que começa quase em estilo de documentário: em Agosto de 2013, abriu-se um portal interdimensional no fundo do Oceano Pacífico e de lá emergiu o primeiro Kaiju - um monstro de Classe 1 que arrasou São Francisco e obrigou as autoridades a medidas extremas para o travar. Como resposta a ataques cada vez mais frequentes de monstros cada vez maiores e mais difíceis de abater com recurso a métodos convencionais, foi criado o programa Jaeger - sob o qual se construíram robots gigantescos, à escala dos monstros, para os combater.


Para cada Jaeger, dois pilotos (pelo menos) - unidos por uma ligação cerebral e empática designada por "Drift", sob a qual partilham todas as suas memórias e todo o seu conhecimento, coordenando os movimentos como se fossem uma única entidade. Os irmãos Raleigh e Yancy Beckett (Charlie Hunnam e Diego Klattenhoff) são os pilotos do Gipsy Danger, um Jaeger norte-americano (cuja voz da interface é dada por Ellen McLain e é idêntica à de GlaDOS, a inteligência artificial de Portal) enviado para o Alasca com a missão de parar Knifehead, um Kaiju de nível 3. É a partir desta missão, do seu resultado e das suas consequências, que o enredo de Pacific Rim arranca. Seis anos volvidos, o programa Jaeger está ameaçado e os Kaiju estão cada vez mais poderosos; e Stacker Pentecost (Idris Elba) volta a recrutar Raleigh para tentar o impossível.


A Raleigh junta-se Mako Mori (Rinko Kikuchi), uma aspirante a piloto com um passado um tanto ou quanto obscuro - revelado naquela que será talvez a mais memorável cena de todo o filme. Pacific Rim aposta muito nas várias vertentes da ligação entre dois pilotos de um Jaeger - como se vê também nas equipas da Austrália, da Rússia e da China -, mas é em todo o mundo que está à sua volta que reside a riqueza do universo de Del Toro. Um mundo sitiado, devastado por uma guerra longa que consumiu - consome - demasiados recursos, onde os cientistas Newt e Gottlieb (Charlie Day e Burn Gorman) testam hipóteses arrojadas em modo comic relief (funciona surpreendentemente bem) e onde um gangster como Hannibal Chau (Ron Perlman a roubar todas as cenas) estabelece uma vasta rede de negócio com base em partes de Kaiju abatidos. Tudo isto é mostrado com detalhe - vemos uma Hong-Kong efervescente, onde os artefactos dos monstros invasores convivem com luzes de néon e mercados tradicionais.


Não há nada de pós-moderno no argumento de Pacific Rim - nada de grandes conflitos ou da ambiguidade soturna e frequentemente melancólica que parece ter tomado conta das narrativas de acção contemporâneas (como atestam algumas das últimas entradas cinematográficas de super-heróis). A história traçada por Del Toro e Beacham é simples, linear e muito clássica - sem reviravoltas inesperadas, sem twists convolutos, sem qualquer reflexão ou moralidade nas entrelinhas. Não há sequer espaço para algum subtexto e para algumas questões mais incómodas como - e para não sair do género - em Neon Genesis Evangelion; é, sim, a história pela história, o espectáculo pelo espectáculo. E isso, nos dias que correm, é quase uma lufada de ar fresco.


Há em Pacific Rim um optimismo esperançoso, um certo heroísmo mais convencional, uma energia muito própria e uma certa ideia de humanidade reminescentes de alguma ficção científica e das muitas inspirações de Del Toro. Certo: analisado de forma estritamente racional, Pacific Rim será talvez um filme demasiado frágil - as personagens são interessantes mas não são excepcionalmente densas, o diálogo não escapa a alguns clichés do género (se bem que o discurso motivacional de Pentecost seja dos melhores que já se viu), e a premissa, tal como nos clássicos de monstros e nas séries animadas japonesas (mesmo nas mais complexas), pede-nos que a aceitemos nos seus próprios termos. Algo que não será (ou não devia ser) estranho aos fãs de ficção científica.


Se não o fizermos, então o blockbuster de Del Toro decerto parecerá pouco apelativo. Mas se o fizermos - se vermos o filme com o mesmo espírito com que víamos o Godzilla a destruir cidades de esferovite (ou com que vi Jurassic Park há 20 anos), com o mesmo espírito com que Del Toro rodou este filme, como se fosse uma criança a recuperar e reinventar as suas histórias preferidas -, então Pacific Rim revela-se a todos os níveis uma obra notável, na qual a espectacularidade inegável da sua acção e da sua componente visual não ofusca um worldbuilding muito bem construído e personagens suficientemente interessantes para manter o encantamento durante pouco mais de duas horas (e mais houvesse). Da minha parte, regresso à infância e delicio-me com os robots e os monstros (e a GlaDOS) de Del Toro. 8.4/10

Pacific Rim (2013)
Realizado por Guillermo Del Toro
Argumento de Travis Beacham e Guillermo Del Toro
Com Charlie Hunnam, Idris Elba, Rinko Kikuchi, Diego Klattenhoff, Charlie Day, Burn Gorman, Ron Perlman, Max Martini, Robert Kazinsky, Clifton Collins Jr. e Ellen McLain
131 minutos

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