17 de julho de 2013

A quem pertencem os conceitos da ficção científica?

No blogue da 'Amazing Stories', Paul Cook levanta uma lebre interessante, ainda que de forma algo despropositada*: a da utilização não creditada do termo e do conceito de ansible (um dispositivo de comunicação instantânea através do universo), criado por Ursula K. Le Guin em 1966 no seu primeiro romance, Rocannon's World, por vários autores de ficção científica ao longo dos anos, e em particular por Orson Scott Card no premiado e aclamado Ender's Game. Para Cook, a utilização do termo por Card como plot device de toda a narrativa constituiu um "roubo" da ideia original de Le Guin. Há aqui um claro exagero da parte do blogger: a utilização do ansible é relevante para o enredo como as warp drives são fundamentais para boa parte das space operas - mas a narrativa de Ender's Game não se centra no dispositivo. Que diabo: nem a narrativa de The Dispossessed, de Le Guin, se centra no dispositivo, e foi o seu protagonista, Shevek, quem o criou..!* Mas adiante: Para dar validade à sua ideia, Cook vai buscar outros casos célebres, como o da disputa em tribunal entre Harlan Ellison e James Cameron pela premisa básica de Terminator, entre muitos outros. 

Isto lembra-me uma outra história recente: a da tentativa de apropriação pela Games Workshop (criadora dos jogos Warhammer e Warhammer 40K, e de toda a literatura derivada) do termo space marine, cunhado pela primeira vez por Bob Olsen no conto Captain Brink of the Space Marines (publicado, ironicamente, na 'Amazing Stories') e celebrizado por muita da ficção científica militar que se seguiu, em especial pelo clássico Starship Troopers, de Robert A. Heinlein. É certo que space marine é um termo bem mais genérico que ansible, mas ainda assim a questão revela-se pertinente: a partir de que ponto é que uma ideia ou um conceito na ficção científica (ou na fantasia, se quisermos) deixa de ser propriedade individual de um autor e passa a ser, digamos, uma trope do género, passível de ser utilizada por qualquer autor? 

Talvez mais do que qualquer outro género literário, a ficção científica e a fantasia possuem um vasto conjunto de conceitos e de ideias criados ao longo dos anos e utilizados por vários autores aparentemente sem qualquer ligação. A expressão ansible foi utilizada com um significado idêntico por muitos autores de ficção científica para além de Le Guin (a criadora) ou Card (o ladrão, segundo Cook): uma visita rápida à Wikipedia leva-nos a Vernor Vinge, Dan Simmons, Elizabeth Moon, Jason Jones e L. A. Graf. Tal como o conceito foi utilizado por outros autores com outros nomes (o lodestone resonator de Philip Pullman na trilogia His Dark Materials será talvez um dos mais interessantes). O mesmo se poderia dizer das warp drives de Star Trek, tornadas universais na ficção científica espacial - recordando duas leituras recentes, não me parece que Gene Roddenberry tenha ido atrás de M. John Harrison ou Iain M. Banks com um batalhão de advogados por utilizarem o conceito nas suas obras. 

Sendo fã de ficção científica e um escritor em ascensão nos anos 70 e 80, Orson Scott Card utilizou um conceito aproveitado por muitos autores antes de si com a designação criada por Ursula K. Le Guin para dar nome a um dispositivo utilizado no seu primeiro livro - que veio, como se sabe, a alcançar um tremendo sucesso. Talvez Card devesse ter feito uma breve nota sobre a origem do termo - só lhe teria ficado bem, assumidamente -, ainda que a forma como o introduz na narrativa** constitua sem dúvida um piscar de olho ao grande universo partilhado da ficção científica. Não foi o único a fazê-lo (o que em circunstância alguma será desculpa), como muitos foram (e serão) os autores a escrever sobre space marines, a utilizar naves com warp drives e a aproveitar muitos outros conceitos criados, desenvolvidos e subvertidos pelos autores que os antecederam. Estaremos perante casos de roubo de propriedade intelectual? Terá sido apenas um tributo? Mera conveniência desprovida de má intenção? É difícil dizer, mas o caso está longe de ser singular.

* E o tom está longe de ser o único problema do artigo; todo ele parece ser sobre algo mais do que uma mera questão de apropriação intelectual: basta lermos os comentários de Cook tanto no seu próprio artigo, como neste ou neste: o autor não se inibe de dizer que quem defende Card - ou que quem não partilha a sua visão - só pode ser fã de Card, uma batota argumentativa tristemente comum na Internet contemporânea, e mais ainda quando é utilizada por alguém que se afirma escritor), mas ignoremos esse ponto. 

** Em Ender's Game: "What matters is we built the ansible. The official name is Philotic Parallax Instantaneous Communicator, but somebody dredged the name ansible out of an old book somewhere and it caught on"


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