14 de junho de 2013

Ghost in the Shell e o apogeu do cyberpunk

É mais ou menos consensual que o cyberpunk enquanto subgénero da ficção científica nasceu na primeira metade dos anos 80 com a publicação de Neuromancer, de William Gibson, em 1984, e a estreia, dois anos antes, de Blade Runner, a adaptação de Ridley Scott ao clássico Do Androids Dream of Electric Sheep?, de Philip K. Dick (ainda que as suas raízes sejam mais antigas). Duas obras que acabaram por definir muito da estética do subgénero: as sociedades corrompidas por mega-corporações que tornaram o conceito de Estado praticamente obsoleto; as cidades escuras, poluídas e degradadas, onde os néons coloridos convivem com todo o tipo de podridão; o visual underworld das personagens. De facto, o filme de Scott e o livro de Gibson criaram uma certa ideia de cyberpunk em tons neo-noir com grande prevalência da espionagem e da infiltração cibernética que se tornaram muito comuns em obras subsequentes, em vários meios distintos (do cinema e da televisão à banda desenhada e aos videojogos). Também por isso se revela muito curioso ver como o japonês Shirow Masamune se apropriou dos temas enquanto abdicava de boa parte da estética para desenvolver uma banda desenhada que se tornaria numa obra seminal do género: Ghost in the Shell

Ainda que Shirow Masamune pegue em vários conceitos de Neuromancer (o ice será porventura o mais evidente, e a Secção 9 é uma unidade de combate ao ciber-terrorismo), não há em Ghost in the Shell as cidades soturnas e sujas que Gibson e celebrizou, ou o ambiente neo-noir a aludir à ficção hard-boiled - a cidade de Newport, num Japão é moderna e sofisticada, e naquele ano de 2029 as tensões nacionais continuam a moldar uma realidade geopolítica complexa, aludida nos episódios (capítulos) Super Spartan e Phantom Fund. Mas também os conflitos internos entre as diferentes Secções de Segurança Pública são interessantes - retratados no (surpreendente) Dumb Barter e Bye Bye Clay. Nenhum destes elementos é central à história, que explora o arco narrativo que Mamoru Oshii condensou na (extraordinária) adaptação cinematográfica, mas ajuda a estabelecer o ambiente em que os agentes da secção 9 se movimentam e a forma como se relacionam entre si. E esse arco narrativo tem como tema central o que significa ser humano num mundo permanentemente ligado por um fluxo de informação constante, com os seres humanos aumentados por implantes cerebrais cibernéticos, membros artificiais e todo um progresso científico que esbateu a fronteira entre tecnologia e biologia. Este tema, e as suas múltiplas ramificações, são explorados ao longo dos 11 capítulos da graphic novel - com o arco narrativo principal a pertencer ao Puppeteer (no filme de 1995, Puppet Master), que ganha destaque nos capítulos finais. Até lá, os leitores têm a oportunidade de explorar a formação da Secção 9 por Aramaki, aproveitando os serviços da equipa da Major Motoko Kusanagi, e os vários casos que vão resolvendo.


Quem estiver (como eu estava) mais familiarizado com o filme de Mamoru Oshii, notará logo uma mudança muito grande de tom ao longo de quase toda a história - Kusanagi é caracterizada como uma personagem curiosa e inteligente, mas menos introspectiva e com um sentido de humor mais apurado (nunca perde uma oportunidade), e algumas das personagens secundárias (Batou e Togusa, sobretudo) acompanham-na nos gags. Mesmo nos capítulos finais, mais densos, o tom mantém uma certa ligeireza que não destoa no ambiente global. E para isto muito contribui a excelente arte de Shirow Masamune, oscilando com precisão entre imagens de grande detalhe e traços gerais mais esbatidos, aprofundando a caracterização de personagens e ambientes. Os pormenores são sempre notáveis, e Shirow Masamune desenhou vários painéis formidáveis que, por vezes, incluem easter eggs para os leitores mais atentos - desde referências a outras obras do autor, como Appleseed e Orion a outras mais obscuras. E as páginas a cores, um extra muito especial, estão muito bem trabalhadas na abertura de vários capítulos - dão textura às ilustrações e não destoam do grosso da obra, a preto e branco.

Todo o worldbuilding de Ghost in the Shell é reforçado por uma grande atenção dada pelo autor aos aspectos conceptuais e às implicações tecnológicas das várias ideias e imagens que desenvolve. É frequente encontrar-se nas margens das páginas ou no espaço entre vinhetas algumas explicações, extrapolações ou apenas sugestões de Masamune, apontando para um detalhe ou esclarecendo como uma tecnologia poderia ser desenvolvida ou aplicada. É uma opção invulgar que dá frutos, dando mais coesão ao universo ficcional e conceptual e acrescentando uma segunda camada de pormenores que, regra geral, se revelam dignas de alguma reflexão.

Não surpreende que Ghost in the Shell tenha dado origem tanto a um filme como a uma série televisiva de grande sucesso - e, mais importante, de grande qualidade. O universo ficcional é vasto, está bem trabalhado, e a solidez do worldbuilding, das personagens e dos conceitos cyberpunk possibilitam muitas derivações interessantes a partir de vários ângulos diferentes (como as diferenças entre o filme de Mamoru Oshii e Stand Alone Complex atestam). Merece um lugar de destaque tanto entre a melhor ficção científica como entre as melhores graphic novels dos anos 80 e 90, e será sem dúvida um dos expoentes máximos do cyberpunk, conservando hoje a sua actualidade e a sua pertinência. Quem já conhece o filme e/ou a série, terá nesta graphic novel a origem de todas aquelas histórias; quem desconhecer o universo, terá uma excelente porta de entrada.

4 comentários:

Anónimo disse...

Excelente artigo como habitualmente. De notar que GitS influenciou quase diretamente Matric (tem planos exatamente iguais). Finalmente será importante conhecer a relação desta obra com Battle Angel Alita.

João Campos disse...

(obrigado). De facto, Ghost in the Shell é uma das principais influências de The Matrix - julgo que os próprios Wachowski admitiram isso. A banda desenhada, para mim, está ao nível das melhores que tenho lido; e lê-la é muito interessante para ver como o Mamoru Oshii desmontou a história e voltou a montá-la naquele filme soberbo.

Battle Angel Alita não conheço, mas pela sinopse que fui ler entretanto, fiquei curioso.

Djunior1 disse...

na verdade sao historias distintas, só se encontram pelas casualidades do cyberpunk,,, gits tem uma filosofia de vida,,, gally (ou alita) tem uma duvida em relação a seu passado, mas era meio shonem

João Campos disse...

Seis meses depois, ainda tenho essa história por descobrir.