28 de junho de 2013

Consider Phlebas e o prodigioso universo literário da "Culture"

É possível argumentar que em termos estritamente narrativos Consider Phlebas, o romance de ficção científica de Iain M. Banks que em 1987 abriu as postas ao universo literário da "Culture", podia ser abreviado pela metade sem prejuízo. vejamos: o prólogo mostra a fuga espectacular de uma "Mind" da Culture (grosso modo, uma inteligência artificial) para Schar's World, um planeta isolado e guardado por uma entidade neutra com poderes extraordinários; e o primeiro capítulo apresenta o protagonista (mas não necessariamente herói), Bora Horza Gobuchul numa situação difícil e a antagonista (mas não necessariamente vilã) Perosteck Balveda. Horza e Balveda pertencem a facções opostas na guerra de escala galáctica que opõe o Império Idiran à sociedade da Culture, e é bom de ver que a história está feita - as convenções assim o determinam, nada a fazer - para que ambos cheguem a Schar's World, talvez contra todas as probabilidades, para encontrar a "Mind". Isto, note-se, não é um spoiler, antes uma constatação; entre os dois momentos decorre não só uma longa e conturbada aventura mas também uma invulgar introdução a um universo ficcional vasto que se viria a tornar num dos mais populares da ficção científica espacial dos últimos 30 anos.

De facto, Iain M. Banks aproveita (porventura estende) a odisseia de Horza para construir uma galáxia riquíssima em detalhe e diversidade. Banks refere o conceito de "humanóide" como nebuloso, e tanto de forma  directa (através de algumas personagens, como Yalson ou mesmo Horza) como indirecta mostra que a Humanidade como a conhecemos talvez não tenha lugar nesta galáxia futurista - há humanos, sim, mas muito diferentes entre si em termos biológicos e sociais. Mas há mais do que os humanos: há os Idirans, uma raça de gigantes com três membros cujo expansionismo guerreiro e religioso assenta em improváveis alicerces de pacifismo e racionalidade; há os Dra'Azon, seres incorpóreos de poderes fabulosos que se mantém longe de tudo e guardam os Planetas dos Mortos (como Schar's World) através de uma barreira invisível e poderosa; e, claro, há as Minds da Culture, inteligências artificiais de grandes dimensões com uma capacidade de processamento absurda e um sentido de humor muito peculiar. E, claro, há os lugares - os Orbitais, os Anéis (à imagem do de Ringworld, de Larry Niven, apenas aludido), as Esferas de Dyson (também aludidas), os Planetas dos Mortos, as gigantescas General Systems Vehicles da Culture, autênticas naves-mundo capazes de albergar milhares de milhões de indivíduos. 

Claro que o pano de fundo de todas estas culturas e de todos estes lugares é a guerra entre os Idirans e a Culture, duas sociedades separadas por um sem-número de diferenças inconciliáveis. Banks deu corpo a esta oposição através do ponto de vista de Horza, um humano que trabalha para os Idirans não por concordar com o expansionismo militar e religioso que aquela civilização desenvolve com violência, mas por considerar que o hedonismo utópico suportado pelas inteligências artificiais ("máquinas", como ele as designa) é uma alternativa pior: na falta da escassez que possibilite o conflito, implica o fim da evolução, a estagnação e a atrofia civilizacional. Um dos pontos de interesse de Consider Phlebas é notar como Horza constrói e desconstrói este ponto, nas suas reflexões próprias ou pela interacção com outras personagens; e a sua visão sobre aquele que é o elemento principal do livro (e da série a que dá o nome) ganha especial interesse por ser externa, descomprometida excepto talvez numa vaga ironia reminescente das contradições insanáveis que todos os seres humanos - seja qual for a sua forma - encerram.

Todo este worldbuilding poderá porventura fazer de Consider Phlebas um livro um pouco longo para o enredo que o sustenta, mas funciona na perfeição como ponto de entrada para o universo mais vasto que Banks explorou noutros nove livros entre o final dos anos 80 e 2012. No resto, a aventura de Horza e dos mercenários da "Clear Air Turbulence" é vertiginosa, horrível e divertida em simultâneo, com sequências de acção impressionantes (o assalto ao templo, a inspecção da Megaship), imagens notáveis (o jogo de Damage, uma ideia prodigiosa) e muitos pequenos elementos dispostos com paciência que convergem com mestria num final soberbo que atira por terra o carácter algo pulp e previsível que parecia dominar o enredo no início. Como leitura, dificilmente Consider Phlebas poderia abrir mais o apetite para os livros que se seguem neste universo literário. 

2 comentários:

ATP disse...

Ok, li tudo!
Acho que descreveste bem o que acho do livro.
Quase todos os livros podem-se resumir ou terem partes cortadas para saltar para o final. Consider Phlebas podia ter feito isso, mas o arrastar/palha foram necessários, mais que necessários! Aquele worldbuilding foi fenomenal, fiquei encantado com as Orbitals, Megaships, tudo. Acho que foi o meu primeiro Space Opera a sério.

João Campos disse...

As Orbitals não me encantaram porque o encanto já tinha surgido com "Ringworld". Aliás, é muito interessante entrar no universo do Banks após ter lido o Niven.