7 de maio de 2013

Solyaris e a improbabilidade da comunicação

De todos os temas da ficção científica literária ou cinematográfica, o contacto com vida alienígena inteligente será porventura um dos mais recorrentes – e populares. Já foi abordado de inúmeras formas por vários escritores, cineastas e artistas de vária ordem; já foram imaginadas civilizações extraterrestres mais e menos avançadas do que a nossa; algumas pacíficas, outras hostis; umas de aspecto excessivamente humanóide, outras de aparência quase incompreensível para os padrões humanos. Mas poucas obras exploraram de forma tão singular o tema da improbabilidade da comunicação como Solyaris (Solaris na tradução inglesa), filme de 1972 de Andrei Tarkovskiy que adaptou para o grande ecrã o clássico do polaco Stanislaw Lem.

O filme de Tarkovskiy é a segunda de três adaptações audiovisuais da obra de Lem (a primeira, de 1968, é um filme televisivo russo realizado por Boris Nirenburg com argumento escrito por Nikolay Kemasky; o terceiro é um filme de 2002 realizado por Steven Soderbergh). Com a Humanidade envolvida na exploração espacial, é encontrado um planeta – designado por Solaris – coberto por um invulgar oceano. Uma estação espacial é levada para o planeta, com uma tripulação preparada para desvendar os seus mistérios; mas com o passar dos anos, a quantidade de dados desconexos e de teorias sobre Solaris contrasta com a escassez de factos comprovados. Suspeita-se de que o oceano do planeta não é uma massa de água mas sim um vasto organismo consciente – mas mesmo essa teoria não está de todo provada.


Vários elementos da tripulação perderam-se sobre a superfície do planeta durante expedições, e todas as tentativas de resgate revelaram-se inúteis. O relatório de um dos pilotos sobreviventes a cargo das operações de resgate, Henri Berton, aponta para vários acontecimentos inexplicáveis – e as suas visões são descartadas como alucinações induzidas por algum elemento desconhecido do planeta. O mistério, porém, subsiste – e o psicólogo Kris Kelvin é enviado para a estação espacial, após rever os relatórios e os vídeos de Berton, com o propósito de perceber o que levou à desagregação da tripulação, e decidir o destino da missão.


Mas ao chegar a Solaris, Kelvin depara-se com uma estação espacial caótica, uma morte invulgar, dois tripulantes crípticos e um enigma maior do que imaginara, na forma de uma pessoa cuja presença na estação espacial naquele planeta distante seria a todos os níveis impossível.


Se o romance de Lem tem como tema a improbabilidade de comunicação com uma mente alienígena, o filme de Tarkovskiy pega nesta premissa para estudar o confronto do indivíduo com o seu passado, tornado real através da estranha consciência daquele planeta remoto. Com um ritmo narrativo pausado e meditativo, e com uma componente visual mais assente numa beleza fotográfica do que em efeitos especiais, Solyaris explora de forma lenta mas precisa o enigma do planeta através do ponto de vista de Kelvin, e da sua progressão do cepticismo para a incredulidade e a negação.


Para os padrões do cinema ocidental, Solyaris será talvez um filme estranho – pautado pelo o seu tom meditativo estendido durante quase três horas, e sempre acompanhado por uma banda sonora minimalista e surpreendentemente eficaz, poderá talvez faltar a este filme de Tarkovskiy o ritmo narrativo e o impacto visual que mesmo obras europeias e norte-americanas mais contemplativas (como 2001: A Space Odyssey, por exemplo). O que está longe de ser um defeito. Solyaris pode exigir do seu público uma maior atenção e mais paciência, mas recompensa ambas as virtudes com uma narrativa tão prodigiosa como contemplativa sobre a improbabilidade da comunicação, sobre o relacionamento sempre difícil do Homem com o seu passado, e sobre a força das ilusões. A todos os níveis, inesquecível. 8.6/10

Solyaris (1972) 
Realizado por Andrei Tarkovskiy 
Argumento por Andrei Tarkovskiy e Fridrikh Gorenshtein, com base no romance de Stanislaw Lem 
Com Natalya Bondarchuk, Donatas Banionis, Jüri Järvet, Vladislav Dvorzhetskiy, Nikolay Grinko e Anatoliy Solonitsyn 
167 minutos

8 comentários:

Loot disse...

Subscrevo e aquele final é fantástico. Vi-o o ano passado e fiquei rendido.

abraço

João Campos disse...

O final talvez pudesse ter sido um pouco mais subtil. Eu já o estava a adivinhar - teria sido talvez interessante um pouco de incerteza. Mas no geral, o filme é excepcional.

Álvaro de Sousa Holstein disse...

Caro João Campos é com enorme agrado que li a sua opinião sobre o Solaris de Tarlovsky. Infelizmente filmes como este são relegados para o limbo por não estarem ao alcance da maioria dos actuais espectadores.

João Campos disse...

Caro Álvaro, obrigado pelo comentário. De facto, tem razão - um filme como Solaris (ou mesmo como 2001) seria impensável nos dias de hoje. E não só pelos espectadores, mas também pelos estúdios.

Anónimo disse...

Bem, não sei o que se entende por "dias de hoje" mas quer-me parecer que ainda há por aí imensos filmes inteligentes de fc, senão vejamos, além do "remake" de Solaris por Soderbergh temos por exemplo Cypher, Upstream Color, Primer, até em certa medida o Melancholia e o Tree of Life. E isto só na boa velha USA porque se quiser vir para França, Bélgica e Japão então ficava aqui a noite toda. Acho que o importante é não pensar que dantes é que "era tudo bom" e agora são todos parvos e deixar de prestar tanta atenção ao que estreia apenas nos multiplexes e fazer um esforço para procurar bom Cinema, que ainda existe.

João Campos disse...

"Melancholia" é um dos meus filmes preferidos dos últimos anos. Também já falei dele por aqui.

Pois sim, tivemos todos esses filmes, e mais alguns, como "Moon" ou "Eternal Sunshine of the Spotless Mind". O que não invalida o ponto: grandes produções de ficção científica mais "cerebral" ou "abstracta" como "Solyaris" ou "2001: A Space Odyssey" seriam impensáveis hoje em dia - simplesmente porque nenhum estúdio lhes pegaria. Tivemos um excelente exemplo disso no ano passado com "Cloud Atlas", e o filme até é um híbrido de blockbuster. Mas nenhum estúdio de grandes dimensões se quis envolver no projecto, e mesmo na parte da distribuição a coisa foi caótica.

Anónimo disse...

Mas o Solaris do Tarkovsky não é de grande estúdio. Mesmo o 2001 foi por virtude do nome do realizador. A minha questão é que não me interessam os estúdios mas sim os filmes.

A Scanner Darkly é outro filme aventuroso. ;)

Mr. Nobody, Upside Down, e mais uns quantos off radar são todos exemplos da vitalidade do Cinema de FC.

João Campos disse...

Sendo soviético, o "Solyaris" será sem dúvida um animal diferente no que à produção diz respeito. O "2001" é um filme do Kubrick, claro - mas o ponto não é tanto esse.

Sim, "A Scanner Darkly" é um excelente filme. "Looper", do ano passado, também. E todos os outros que já foram mencionados. O que se está a dizer não é tanto que falta vitalidade ao cinema de ficção científica - basta ver as estreias previstas para este ano -, mas sim que um determinado tipo de ficção científica está confinado ao cinema independente e afastado das grandes produções. Não que isso seja necessariamente mau - afinal, o que importa é que haja bons filmes.Mas não deixa de ser curioso que algo como "2001", hoje, seria produzido como o "Moon" - e não como um "Pacific Rim" (e se há filme que aguardo com expectativa este ano, será este).