21 de maio de 2013

Hellboy, ou o (bom) lado negro dos comic book movies

As adaptações cinematográficas de comic books ganharam força ao longo da última década - mas o percurso feito pelas várias produções do género foi, no mínimo, acidentado. Olhando para alguns filmes aclamados - e, acima de tudo, de qualidade - como The Dark Knight (Christopher Nolan, 2008), Iron Man (Jon Favreau, 2008) ou The Avengers (Joss Whedon, 2012), talvez seja fácil esquecermos fiascos como Hulk (Ang Lee, 2003), Spiderman 3 (Sam Raimi, 2007) e outros. Mas no meio da "guerra" entre os sucessos comerciais da Marvel e os altos e baixos da DC Comics também a Dark Horse entrou em jogo - e se a sua participação foi discreta (e, até ver, de curta duração, com apenas dois filmes), nem por isso deixa de merecer destaque. Em 2004, Guillermo Del Toro realizou Hellboy, levando para o grande ecrã uma das mais icónicas desta editora norte-americana de comics;quatro anos mais tarde, repetiria a graça com Hellboy 2: The Golden Army (mas sobre este falarei na próxima semana).

Em termos narrativos, Hellboy segue de forma muito livre - mais batráquio, menos batráquio - a premissa básica do primeiro trade paperbackSeed of Destruction, recuperando a história das origens do protagonista com o destaque dado a Rasputine (sim, esse Rasputine) e não à família Cavendish. No final da Segunda Guerra Mundial, Rasputine (Karel Roden) constrói, com a ajuda de uma facção Nazi dedicada ao oculto, um portal dimensional numa ilha na costa da Escócia, com o qual tenciona evocar de uma dimensão paralela Ogdru Jahad, os Sete Deuses do Caos, para derrotar os Aliados e dar início a um reino de terror na Terra. Mas uma força dos Aliados, acompanhada pelo especialista no oculto Trevor Brutterholm (John Hurt), intervém e destrói o portal. Um pouco tarde, porém - para espanto de Brutterholm e dos soldados sobreviventes, através do portal passou uma estranha criatura, um demónio criança com uma mão de pedra ao qual dão o nome "Hellboy".


No presente da narrativa, o professor Brutterholm lidera o "Bureau of Paranormal Research and Defense" (BPRD), onde Hellboy (Ron Perlman) vive e trabalha como detective do sobrenatural e do paranormal na companhia de alguns burocratas, agentes do sobrenatural e criaturas fantásticas, como Abe Sapien (Doug Jones) e a sua companheira, Elizabeth "Liz" Sherman (Selma Blair), ausente e internada para controlar os seus poderes pirokinéticos. Sabendo que o seu fim está próximo, Brutterholm recruta um novo agente do FBI, John Myers (Rupert Evans), para acompanhar Hellboy nas suas missões. Mas pouco tempo depois, Rasputine regressa, decidido a recuperar o tempo perdido e a trazer para a Terra os demónios que em tempos ambicionara soltar.


Os elementos que tornam Hellboy numa obra singular e fascinante dentro do universo dos comics - o seu tom simultaneamente sombrio e humorístico, de influências pulp e com os dois pés bem firmes no sobrenatural - foram transpostos com mestria das páginas ilustradas de Mike Mignola para o cinema. Del Toro soube recriar com mestria o ambiente hardboiled com um toque de horror lovecraftiano tão característico de Seed of Destruction, orientando a narrativa para várias sequências de acção bem ritmadas, divertidas de acompanhar, mas que em momento algum interferem com o (excelente) desenvolvimento das várias personagens.


Um dos pilares do sucesso de Hellboy reside nas interpretações de um elenco muito talentoso - mas é Ron Perlman quem rouba quase todas as cenas em que entra, empenhando-se em dar vida a uma personagem sem dúvida desafiante. E, de facto, Perlman é Hellboy - no seu sentido de humor seco, nos seus gestos característicos, na sua violência imparável (afinal, ele é um demónio - simpático, mas um demónio). A caracterização soberba ajuda a tornar a personagem verosímil - e esta é apenas uma pequena parte de uma forte componente visual, com efeitos especiais credíveis a dar forma às inevitáveis e bem construídas cenas de acção, onde Hellboy combate contra demónios que se multiplicam e criaturas gigantes com tentáculos monstruosos. Ainda assim, neste ponto não se nota ainda de forma decisiva a prodigiosa imaginação de Del Toro, que dois anos mais tarde viria a encantar o mundo com o surpreendente El Laberinto del Fauno. Os monstros de Hellboy são bons, mas não tão bons como aqueles que aquele filme e a sua sequela directa viriam a exibir.


Hellboy não será decerto um dos mais convencionais filmes de super-heróis - a sua narrativa firmemente ancorada no misticismo e no sobrenatural e a sua atmosfera sempre sombria colocam-no sem dúvida à margem das restantes adaptações de comic books  da última década (excepção feita talvez a Watchmen). O que, diga-se de passagem, está longe de ser um defeito. Hellboy é um filme bastante sólido, que em momento algum esconde as suas origens dos comics - e que eleva o género com uma premissa muito interessante sustentada por desempenhos sólidos e por um punhado de cenas memoráveis. Mais importante do que isso, porém, é o facto de ter trazido com sucesso para o cinema mais uma personagem icónica da banda desenhada norte americana - e de ter estabelecido os elementos que viriam a fazer de Hellboy 2: The Golden Army um dos filmes de fantasia mais interessantes dos últimos anos. 7.4/10

Hellboy (2004)
Realizado por Guillermo Del Toro
Argumento de Guillermo Del Toro e Peter Briggs com base nos comics de Mike Mignola
Com Ron Perlman, John Hurt, Selma Blair, Rupert Evans, Karel Roden, Jeffrey Tambor e Doug Jones
122 minutos

9 comentários:

Loot disse...

Ah estou a ver pelo texto que tb és fã do Hellboy 2 que foi um filme que dividiu as pessoas. É que o primeiro como dizes é uma adaptação do seed of destruction, uma boa, mas o segundo é uma mistura entre o universo do Del Toro e o do Mignola. e eu achoi a ideia fantástica :)

Abraço

André Pereira disse...

Por acaso nunca tive curiosidade quanto a este filme, e se calhar estou a perder... Tenho de remediar esta situação e ver o filme!

Anónimo disse...

Dois filmes, só? Então e o Sin City, 300, The Mask, R.I.P.D. etc? Não contam?

No resto, bom post, como habitualmente.

João Campos disse...

Loot, o "Seed of Destruction" tem muita coisa a acontecer - em filme seria confuso e não teria o mesmo impacto. A adaptação do Del Toro é fiel no tom, no ambiente e nos fundamentos da premissa - e funciona muito bem.

E sim, adoro "The Golden Army". Mas sobre isso falo para a semana. Abraço

João Campos disse...

André, só vi o filme há dias - infelizmente, raramente passa na televisão, nem no cabo. Calhou bem - tinha lido o primeiro paperback dias antes.

João Campos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João Campos disse...

Thanatos: Obrigado. Não me esqueci do "Sin City": gosto muito do filme, e tenho até aqui em casa um poster gigante do filme que me deu algum trabalho arranjar. Também gosto muito das graphic novels do Frank Miller (também as tenho), mas tenho mais dificuldade em encaixá-lo no Fantástico - ou, pelo menos, no mesmo Fantástico onde colocaria "Hellboy" e "Watchmen", mesmo sendo o primeiro fantasia e o segundo ficção científica.

(apesar de o Marv ter uma resistência sobre-humana a balas. Se calhar tenho mesmo de rever o critério)

O mesmo se aplica ao "300". O "RIPD" ainda está para vir (e estou curioso, sobretudo pelo factor Jeff Bridges), e o filme mais recente de "The Mask" é demasiado mau para merecer qualquer menção. O primeiro, sim, merecerá destaque por aqui um dia destes, tal como outro filme famoso baseado em banda desenhada - "The Crow" - ja´mereceu. Mas tanto um como outro antecedem muito a última década, período ao qual me estava a referir.

Loot disse...

Sim, aliás uma adaptação é isso mesmo que a palavra diz, adapta o conteúdo do livro a outro formato e foi o que o Del toro fez com o 1º filme, mantendo a atmosfera certa, etc.

Por exemplo o já mencionado Sin City se calhar é mais uma transposição de uma BD do que uma adaptação, no sentido que eles basicamente deram movimento às páginas :P
Claro que não deixa de ser uma adaptação, mas percebes o que quero dizer.

Sobre o hellboy 2 então cá espero pelo texto :)

João Campos disse...

De facto, o caso do "Sin City" é muito curioso. Mas a adaptação/transposição foi muito bem feita, e o estilo dá ao filme um charme inegável.

E o Mickey Rourke como Marv é soberbo.