31 de maio de 2013

A galáxia decadente de M. John Harrison em The Centauri Device

Há qualquer coisa de fascinante em ler em 2013 The Centauri Device, o terceiro romance do britânico M. John Harrison, publicado em 1975. E o fascínio reside, para além da prosa assombrosa (já lá irei), em ver como uma obra tão firmemente ancorada no seu tempo (a década de 70 - com a sua narrativa subversiva reminescente da fulgurante "New Wave", o seu tom sombrio e pessimista e as suas balizas políticas bem demarcadas) consegue manter a sua frescura e a sua actualidade quase por portas travessas, como se tal fosse fruto de um extraordinário acaso.

E a verdade é que talvez seja, o que torna o caso ainda mais interessante.

A intrigante abertura de The Centauri Device faz quase lembrar uma narrativa noir deslocada quatro ou cinco séculos para um futuro sem perder o seu tom tão característico: o protagonista John Truck, capitão do cargueiro espacial Ella Speed, traficante de drogas sempre que pode e de mercadoria legar quando não tem outra alternativa, deixa a nave no porto de Sad Al Bari IV com o seu bos'n e caminha pelas ruas decrépitas, repletas de port ladies e de drogados. Há qualquer coisa de estranhamente aliciante na galáxia sombria, corrupta e degradada que Harrison descreve com depressivo vigor; as descrições são notáveis, de uma riqueza visual impressionante, com um toque de anacronismo nostálgico tão decadente como apelativo. Por exemplo:
Outside The Spacer's Rave, an ancient fourth generation Denebian with skin blackened and seamed, and eyelids perpetually lowered against the actinic glare of a star he hadn't seen for twenty years, was reciting lines from The Fight At Finnsburg. His hat was at his feet. His boots were cracked, but his voice was passable, booming out over the heads of passing whores and stoned Fleet men:
"The Spacer's Rave" é o bar que Truck procura, onde o seu amigo Tiny Skaffern, o último grande músico da Galáxia, toca regularmente com uma Fender Stratocaster com quatrocentos anos. É também no "The Spacer's Rave" que Truck vai conhecer Angina Seng, uma mulher enigmática que o vai arrastar para uma intriga de proporções galácticas onde descobrirá o seu verdadeiro legado, ambicionado por dois poderes antagónicos e algumas facções dúbias...

Tudo isto poderia ser o prelúdio para uma space opera de tons noir que seguisse mais ou menos à letra as convenções de ambos os géneros para criar algo novo - e, se fosse isso, é provável que também fosse acima da média. Mas nada em The Centauri Device é aquilo que aparenta ser, e M. John Harrison faz questão de raramente seguir as tropes tal como elas são, como se retirasse um prazer especial em dar-lhes a volta com a sua prosa magnética. E dá-lhes mesmo a volta: John Truck não é um herói convencional (ou não-convencional, de facto), ou sequer um anti-herói que faça o Bem por caminhos tortuosos; é, sim, um derrotado da vida que nunca questionou a sua condição, que nunca desafiou os ventos (e o vento é uma das metáforas mais persistentes da narrativa), que sempre se contentou com o pouco que a vida lhe deu, e que lhe permitiu ficar à tona da devassidão que grassa por todos os locais que frequenta. Da mesma forma, Angina Seng não é a femme fatale que o tom e o ambiente noir poderiam deixar adivinhar - mas o que ela é fica para descoberta do leitor. E a aventura em que Truck se envolve não é uma demanda pela salvação galáctica ou uma qualquer cruzada moral - antes um conflito esgotante e na sua aparência perpétuo entre  dois poderes cujos alicerces ideológicos há muito se esboroaram, permanecendo apenas enquanto nomes e símbolos sem significado - apenas músculo (o que constitui uma analogia interessante com o tempo presente). Pelo meio, Truck encontra a herança de um povo massacrado cuja memória persistiu de forma improvável, uma religião peculiar cujos praticantes - os Openers - acreditam que a exibição dos seus processos biológicos é a única verdadeira forma de adorar a divindade, e os exuberantes "Anarquistas Estéticos", donos de uma oportunidade clamorosamente perdida (tão perdida que nem eles a entendem). A demanda do herói dá lugar a um ressalto constante entre facções com agendas próprias, todas elas marcadas pelo misterioso "Centauri Device" - que poderá ser uma bomba, um instrumento de propaganda, uma manifestação do divino ou apenas um meio para um fim obscuro. 

Esta subversão de convenções fez de The Centauri Device a space opera que colocaria um fim à space opera - e, de facto, estará porventura mais próximo de clássicos da ficção científica como The Stars My Destination, de Alfred Bester (a comparação é quase inevitável, ainda que Gully Foyle seja muito diferente de John Truck), do que de outras obras que deram forma ao sub-género que se convencionou como space opera. Não sem ironia, acabou por projectar uma longa sombra, revitalizando o género e servindo de influência a alguns dos seus mais inspirados praticantes nas décadas que se seguiram. 

Com uma prosa arrojada, magnética (a repetição do adjectivo é intencional), rica nos seus detalhes e evocativa em cada ideia que descreve, The Centauri Device deixa o leitor com algumas imagens duradouras e fascinantes (como "a mais antiga festa a decorrer em toda a história do Universo", os bunkers labirínticos de Centauri VII, as cidades devassas e devastadas que quase fazem lembrar a Los Angeles de Blade Runner, os "Openers" - nem a "Igreja do Shrike" em Hyperion consegue ser tão macabra como os "Openers"). Opressivo, niilista e quase sempre amoral, The Centauri Device deu expressão ao ambiente e ao tom que marcariam o cyberpunk nos anos 80 e mostrou como um género de carácter tão popular como a space opera poderia ser eminentemente literário. M. John Harrison considera-o "the crappiest thing I've ever wrote" - uma expressão que poderia suscitar várias questões, mas que em momento algum ofusca The Centauri Device, que por mérito dos seus atributos se tornou num clássico do género. Soturno, mas um clássico. 

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