2 de maio de 2013

A ficção científica e as derivações por negação

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No blogue da Amazing Stories, Steve Davidson fala sobre algo que poderíamos talvez designar por "derivações por negação" da ficção científica. Na prática, trata-se de etiquetas criadas para definir histórias que, apesar de utilizarem as convenções temáticas e narrativas do género literário, não pretendem ser enquadradas naquilo que, em termos literários, é habitualmente designado por ficção científica - ainda que, para todos os motivos, o objectivo seja não encaixar no preconceito que ainda parece existir para com este género literário, coutada de nerds irredimíveis.

De certa forma, é um regresso ao sofisma, agora pelo ponto de vista do marketing. Enquadrar um livro na ficção científica poderá induzir leitores em erro, levando-os a pensar que haverá naquelas páginas batalhas espaciais com armas laser, discursos em Klingon e histórias mais ou menos previsíveis com conceitos futuristas e sem personagens relevantes - pelo que fará todo o sentido dar-lhes uma nova designação, criar uma nova etiqueta. Algo que os distinga e que lhes permita aceder a outras prateleiras nas livrarias. Assim surgem designações como "CliFi", ou "Climate (Change) Fiction", ou "Lab Lit" - ou, se quisermos ir mais longe (Stevenson foi, e não sem razão), à "ficção especulativa" ou à "ficção científica mundana". O que não deixa de ser irónico, e acima de tudo ilustrativo da força das ideias e da pertinência dos conceitos que os autores de ficção científica exploraram ao longo de décadas. É a velha história: por mais que P.D. James não pense na premissa de The Children of Men como ficção científica (palavras da própria), nem por isso a premissa (muito interessante, já agora) que explora deixa de fazer parte do género.

De certa forma, porém, este tipo de preconceito até pode ter alguma justificação racional quando é originário nos autores; é a sua presença no mercado editorial, porém, que se revela um enigma. Tal como aponta Davidson, a ficção científica é hoje em dia extraordinariamente lucrativa noutros formatos narrativos. Se consultarmos as tabelas de box office, vemos que entre os 20 filmes mais lucrativos da história do cinema, sete podem ser enquadrados sem polémica na ficção científica (e muitos mais na fantasia, mas este género funciona de forma um pouco diferente ainda que seja vítima de um preconceito semelhante). É claro que o critério é quantitativo, e não qualitativo, e não me passa pela cabeça defender os méritos narrativos de Avatar ou de Transformers: Dark of the Moon; mas a verdade é que são filmes de ficção científica extremamente populares. Podemos ver algo muito semelhante no actual panorama televisivo, com The Walking Dead a pegar numa trope clássica do fantástico - os zombies - e a utilizá-la numa série de enorme sucesso que encaixa nos moldes de alguma ficção científica pós-apocalíptica. E nem vamos falar dos videojogos, que mais do que nunca são uma porta de entrada no género para jovens leitores, ávidos de ler as histórias das suas personagens preferidas nas páginas dos tie-ins - StarcraftHalo e Mass Effect são óptimos exemplos de videojogos bestsellers que assumem as suas raízes na ficção científica e expandem as suas narrativas interactivas através de séries literárias. 

Davidson tem razão quando diz there's your market for books. Que as editoras estejam dispostas a desperdiçar este potencial de receitas (porque é disso que se trata) a inventar rótulos que, em termos práticos não passam de uma definição por negação - como se a tal "CliFi" não fosse ficção científica -, é algo que nunca deixará de me surpreender. 


2 comentários:

Marco Lopes disse...

Esta é uma questão que me tem provocado, também, alguma celeuma e que já abordei, mas na perspectiva do preconceito que por cá se "pratica".

http://osenhorluvas.blogspot.pt/2012/05/manha-do-mundo-ou-o-preconceito-na.html

João Campos disse...

Lembro-me deste texto. Enfim, é um tema sempre pertinente. Voltarei a ele nos próximos dias.