5 de março de 2013

A vingança sobrenatural de The Crow

Existe alguma ironia na história da rodagem de The Crow, adaptação cinematográfica do comic homónimo de James O'Barr por Alex Proyas em 1994. Com uma narrativa que tem como tema central a morte - com a subsequente vingança e redenção -, o filme ficou para sempre marcado pela morte do seu actor principal, Brandon Lee (filho do lendário Bruce Lee) durante as filmagens. A (triste) ironia, porém, vai mais longe: o próprio comic de O'Barr foi criado em 1989 como forma de o autor lidar com a morte então recente da sua namorada.  Se a sublimação de O'Barr deu origem a um comic de sucesso, a adaptação cinematográfica de Proyas deu origem a um filme de culto, não só pela morte mas também pela sua componente visual. 

Para todos os efeitos, é pelo seu visual único que The Crow se destacou, mostrando uma Detroit nunca antes imaginada: soturna e entregue ao caos, com as suas ruas cheias de detritos e de lixo e os seus edifícios degradados, muitos devolutos. Toda a cidade tem uma atmosfera vagamente gótica, sempre sombria, reforçada pela arquitectura antiquada de alguns edifícios (como o prédio de Eric e Shelly e a catedral antiga da cidade). As suas ruas são controladas por bandos de criminosos e por organizações mafiosas que a polícia não consegue travar. Nesta cidade, a noite que antecede o Halloween, conhecida como Devil's Night, tornou-se temida quando grupos de pirómanos criaram a tradição de incendiar tudo aquilo que conseguissem. Vemo-la pelo olhar do corvo, o seu negrume a contrastar com o céu rubro das chamas, sempre carregado de nuvens negras a ameaçar chuva. É neste ambiente que a narrativa se vai desenvolver a um ritmo muito bom, com cenas de acção bem executadas à medida que Eric Draven avança na sua cruzada por vingança.


É habitual The Crow ser elogiado pela sua componente visual em detrimento da sua narrativa - o que pode não ser estranho se considerarmos a sua qualidade visual superlativa, mas que nem por isso deixa de ser um tanto ou quanto injusto. A densidade que porventura possa faltar à narrativa de The Crow é sobejamente compensada pela sua carga emocional, e pela forma singular como aborda os temas da vingança e da redenção, aqui explorados com um toque de sobrenatural. Eric Draven e Shelly Webster estão prestes a casar-se quando um grupo de criminosos irrompe pela sua casa com o objectivo de os punir pela acção legal que desenvolveram contra o seu senhorio corrupto. Eric é assassinado e atirado da janela do sexto andar onde vivia, e Shelly é brutalmente agredida e violada - acabando por falecer no hospital após muitas horas de agonia. Ao fim de um ano, um enigmático corvo traz Eric de volta à vida com o propósito de se vingar das atrocidades de que ele e a sua namorada foram vítimas - e após perceber o que lhe aconteceu, persegue os criminosos responsáveis um por um, sempre com a ajuda do corvo (que é simultaneamente a fonte da sua invencibilidade e a sua ligação ao mundo), e encontrando no Sargento Albrecht da polícia de Detroit um surpreendente aliado.


Outo aspecto que merece destaque em The Crow é a sua banda sonora, que complementa na perfeição a atmosfera desolada do filme. A faixa mais conhecida do filme será porventura It Can't Rain All the Time, música de eleição de Eric e interpretada por Jane Siberry; a ela juntam-se bandas de renome como The Cure (com uma formidável Burn), Nine Inch Nails (numa cover notável da música Dead Souls dos Joy Division), The Jesus and Mary Chain, Rage Against the Machine, Stone Temple Pilots, Pantera, Medicine e My Life with the Thril Kill Kult - com estas duas últimas a aparecerem de facto no filme, a actuar no bar de Top Dollar.


The Crow está longe de ser um filme extraordinário, mas a sua atmosfera sombria dá-lhe um lugar inalienável na iconografia cinematográfica dos anos 90, ao lado de obras como The Matrix e Dark City (este último também de Proyas). Por tudo aquilo que se vê no filme, e por tudo aquilo que aconteceu durante a rodagem, é uma obra única e para todos os efeitos irrepetível - como as várias sequelas falhadas demonstraram. Com uma componente visual extraordinária, uma narrativa forte do ponto de vista emocional e uma banda sonora excepcional, The Crow eleva-se bem acima de outros filmes do género. 7.9/10

The Crow (1994)
Realizado por Alex Proyas
Com Brandon Lee, Rochelle Davis, Ernie Hudson, Michael Wincott e David Patrick Kelly
102 minutos

6 comentários:

Loot disse...

O livro foi muito influenciado por música e o autor até colocou algumas letras na obra, entre as quais a Dead Souls dos Joy Division e a Hanging Garden dos The Cure.

Havia canções que a escolha na banda sonora era directa. Tenho ideia que pediram aos Cure para usar a canção acima, mas eles, fizeram questão de compor um tema original e daí Burn, que surge num momento memorável do filme.

Além de canções lembro-me que um poema de Rimbaud também surge a dada altura no livro.

Gostei muito do texto do filme, onde sublinho o quanto concordo com: "A densidade que porventura possa faltar à narrativa de The Crow é sobejamente compensada pela sua carga emocional(...)"

João Campos disse...

Não conhecia essa ligação do comic à música. De qualquer forma, a banda sonora do filme é memorável.

Eu também gosto muito de The Crow. É sem dúvida um dos meus filmes preferidos.

Loot disse...

É sim, lembro-me que a banda sonora me deu a conhecer uma série de bandas, algumas das quais se mantêm constantes audições na minha vida :)

tudo isto só fomenta o tal sentimento de culto que mencionas. A imagem, o som, a emoção, tudo :)


Abraço

João Campos disse...

Yep. É um daqueles filmes que fica. Foi um prazer especial rever o filme para escrever este artigo :)

Abraço

Rita Santos disse...

Ah e tal não consigo fazer um comentário não enviesado acerca deste filme: <3

João Campos disse...

Join the club. :)