23 de fevereiro de 2013

Tolkien: Construtor de Mundos (4): O Mal, o épico e as adaptações

Às excelentes sessões da manhã do seminário Tolkien: Construtor de Mundos, organizado pelo Centro de História e pelo Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa, seguiram-se outras seis, divididas em duas partes. Comecemos pela primeira, com três oradores convidados: Miguel Ângelo Fernandes, da Faculdade de Letras, falou sobre o tema do Mal no universo de Tolkien; Cláudia A. Teixeira, da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora, analisou os elementos que podem (ou não) classificar a obra de Tolkien como "épica" no sentido clássico da palavra; e Ana Daniela Coelho, também da Faculdade de Letras, dedicou-se às adaptações cinematográficas de The Lord of the Rings e de The Hobbit

É habitual identificar em Tolkien a dualidade sempre presente entre o Bem e o Mal, sem as "áreas cinzentas" e a ambiguidade que marcam a fantasia contemporânea. Para abordar este tema na apresentação O Mal em Tolkien, Miguel Ângelo Fernandes começou por definir essa dualidade como um "jogo de opostos, uma guerra de trincheiras entre o Bem e o Mal" - uma dualidade que não concebe "neutralidade" ou "possibilidade de conciliação". Essa dualidade é visível através de três tipos de personagens que podem ser encontradas no universo de Tolkien: os incorruptíveis, como os Valar; os corruptíveis, como Boromir; e os corruptos, como Morgoth e Sauron. Mas no seu entendimento, incorruptíveis e corruptos o Bem e o Mal não são "escolhas conscientes" - são, sim, "características ontológicas". Até aqui, nada de novo; a originalidade da abordagem do orador reside na possibilidade de esta bipolaridade narrativa ser uma "interpretação neurológica" fruto de "lateralização cerebral" (derivada das especificidades dos dois hemisférios do cérebro) - ou seja, um "fardo biológico". Para ilustrar o ponto, Miguel Ângelo Fernandes fez um pequeno teste com o público, explicando as funções e as capacidades de cada um dos hemisférios e a forma como interferem na nossa interpretação do mundo e como podem motivar uma tendência para algo que designa por "bipolarização literária" - o que, também acrescentou, "não tem de ser uma fatalidade" (concluindo que o Mal em Tolkien não tem uma natureza "infernal").

Na segunda sessão da tarde, intitulada Tolkien: entre a épica e a narrativa venturosa, Cláudia A. Teixeira dissertou sobre a utilização do termo épico como "classificação moderna de algumas narrativas" - entre as quais The Lord of the Rings surge sempre com destaque. Mas o "épico", enquanto género, "está morto" - ou assim defende a oradora, considerando-o relevante apenas "enquanto modo". E a explicação para isso, de acordo com Cláudia A. Teixeira, encontra-se no próprio autor ("hostil à tradição clássica") e na obra em si, mais próxima das sagas. As diferenças são estabelecidas: em termos de unidade, um épico "preserva um sentido de unidade na articulação das várias partes" que constituem a odisseia; já em Tolkien, como nas sagas, "todas as acções estão condicionadas pelo clímax" - e se num épico há uma linearidade nas várias aventuras, numa saga "cada aventura será mais perigosa do que a anterior". Pode-se dizer também que um épico tem um herói central, enquanto The Lord of the Rings não. Mas o mais relevante será porventura o desfecho - enquanto que num épico "a vitória nas oposições externas não resolve as internas e o fim funciona como outro início", em Tolkien o desfecho com o fim de Sauron é, para todos os efeitos, "uma resolução".

A primeira parte da tarde foi concluída com a apresentação Adaptações: recriando Tolkien para o cinema, de Ana Daniela Coelho - que começou por assumir a sua especialização em Jane Austen e por traçar um paralelismo muito curioso sobre a forma como ambos os autores, afinal tão diferentes, conseguiram atrair uma legião de fãs extremamente devotados e com reacções muito idênticas no que às adaptações audiovisuais diz respeito (uma curiosidade que a própria relembra: Tolkien não acredita no valor de possíveis adaptações). Sobre as adaptações cinematográficas em termos gerais, Ana Daniela Coelho considera que uma adaptação "deve ter sempre valor próprio, independentemente da subalternização para com o livro" (a velha ideia de que o livro é sempre melhor do que o filme). Mencionou as "adaptações falhadas e incompletas" das obras de Tolkien, como os filme nunca produzidos de Forrest J. Ackerman em 1957 e John Boorman em 1970, e o filme animado de 1978 de Ralph Bakshi - que apesar de nunca ter tido a sequela que concluísse a história, teve uma grande influência em Peter Jackson, que na viragem do milénio realizou a trilogia The Lord of the Rings, e que de momento se encontra a adaptar The Hobbit para uma nova trilogia. Nesta adaptação, Ana Daniela Coelho considera que Jackson juntou à história escrita por Tolkien "momentos icónicos de outros filmes" (como Aragorn a abrir a porta em Helm's Deep), algumas "facetas pós-modernas", como as dúvidas e as fraquezas de algumas personagens (aspecto evidente tanto em Aragorn como Faramir), e um maior destaque às personagens femininas, onde se destaca Arwen como uma aproximação ao público. Estas diferenças, porém, não impedem o filme de "preservar o espírito da obra". The Hobbit "é muito diferente de Lord of the Rings, na medida em que Peter Jackson "transformou e adaptou The Hobbit para o universo de The Lord of the Rings - como se o filme fosse uma referência não à obra de Tolkien, a original, mas à de Jackson, a adaptação. Na opinião da oradora, os traços de pós-modernismo são ainda mais notórios no novo filme - e, à partida, no resto da trilogia (ainda por estrear).

Imagem: The Lord of the Rings: The Two Towers (2002), realizado por Peter Jackson.


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