4 de fevereiro de 2013

O fim do mundo, a originalidade e as referências inevitáveis

Leio no blogue da Amazing Stories (que já produz conteúdos muito interessantes) um divertido ensaio de Paul Cook intitulado The Lazy Apocalypse sobre as tendências da ficção científica contemporânea e a falta de criatividade - no sentido da criação de novos conceitos e novas imagens - da parte dos autores de ficção científicas modernos. O ensaio, não muito longo, merece uma leitura atenta e toca em alguns pontos relevantes, atacando em especial a tendência do aquecimento global como novo cavaleiro do Apocalipse, sem contudo deixar de dar um leve pontapé na moda dos zombies que parece ter tomado conta de tudo.

É verdade que ainda não li nenhuma história de ficção científica apocalíptica que recorra ao aquecimento global como catalisador do desastre. Em si, o motivo não me parece interessante - e, no entanto, consigo imaginar o seu apelo pela sua contemporaneidade e pela exaustão de outras formas mais clássicas de apocalipse. Quando tudo parece já ter sido feito, pegar num tema banal como o aquecimento global pode parecer, à primeira vista, interessante e novo. Afinal, é algo que aparenta estar a acontecer, e cujas consequência podem ter um sério impacto no futuro da Humanidade - uma premissa perfeita para a ficção científica, portanto.

Diria que nos dias que correm é relativamente fácil ficarmo-nos pela ideia de que tudo já foi inventado, e que os autores presentes e futuros terão de procurar a originalidade não na novidade dos conceitos mas na novidade da apresentação desses conceitos - ou mesmo em ligeiros twists que acrescentem alguma novidade aos conceitos, ou que permitam olhar para eles a partir de uma nova perspectiva. Talvez isso até seja verdade. Nem sempre, porém, esses ligeiros twists revelam verdadeira originalidade; em muitos casos não passam do mais puro oportunismo editorial - e aqui poderíamos mencionar nesta categoria os "vampiros" de Twilight ou toda a ideia de "comédia romântica com zombies" na qual parece assentar o recente sucesso Warm Bodies. Certo: tanto os vampiros como os zombies já foram abordados de mil e uma maneiras diferentes, em vários géneros e com várias formas, e poderá sempre ser possível tratar ambos os arquétipos a partir de uma perspectiva nova; no entanto, um afastamento tão grande como o dos casos mencionados faz com que as personagens não encaixem nos respectivos arquétipos - o que não seria grave se não fosse suposto encaixarem.

A partir daqui podemos falar de fórmulas. No artigo, Paul Cook evoca a eficácia das fórmulas narrativas de Burroughs, que já alcançaram o estatuto de tropes e que por isso devem ser evitadas a todo o custo pelos autores contemporâneos. O problema é que, em muitas ocasiões, tentar escapar à fórmula e às convenções estabelecidas pela narrativa ou pelo género acaba por resultar na criação de outras fórmulas e de outras ideias convencionais por outros motivos. Dito de outra forma: a fuga à fórmula pode gerar novas construções às quais também está subjacente uma fórmula (ver, na fantasia épica, George R. R. Martin). Do enredo clássico de "Bem contra Mal", com moralidade a preto e branco e trincheiras bem definidas, passou-se para a história amoral com os seus tons de cinzento que podem tornar as personagens indistinguíveis - e, pior, estranhas para os leitores - se o autor não estiver atento. 

E depois há as influências. Nada é criado no vazio, claro - mas como escapar ao óbvio? Como escapar à influência - e, por arrasto, à comparação -  daquilo que foi produzido no passado e que se tornou referência em determinados sub-géneros? No fim-de-semana, por exemplo, li uma entrevista com Mateusz Kanik, o director de projecto da CD Projekt Red para o videojogo Cyberpunk 2077, na qual referia a trilogia Sprawl de William Gibson e filmes como Blade Runner como outras influências para a narrativa do jogo em desenvolvimento - duas referências que, diga-se de passagem, são tão evidentes para qualquer obra no subgénero do cyberpunk que não necessitam sequer de ser mencionadas (se não fossem influências directas, seriam indirectas, em maior ou menor grau).

Será que o género está condenado à eterna repetição de universos já conhecidos e à revisitação, por tropes ou anti-tropes, de conceitos e de ideias familiares para os leitores? Não haverá novas histórias para contar - apenas eternas variações dos mesmos temas? Talvez sim, talvez não. Pessoalmente, já me contento com boas variações.


4 comentários:

André Pereira disse...

Num comentário mais curto e rápido, inventar em demasia pode ser mau e dar azo a enredos difíceis de acompanhar. Por exemplo, o enredo de Mass Effect que tinha inspirado os seus vilões, Reapers, nos Old Gods de Cthulhu e depois com a saída do Drew, dividiram por zero levando àquele final...
Uma inspiração, uma repetição de tropes se for bem feita e bem apropriedade, é sempre boa. Eu adoro zombies e se ler dez livros bem escritos sobre a mesma coisa, why not?

Cuidado para não se afastar do caminho.

João Campos disse...

"Divide by zero". Ora aí está uma expressão adequada.

Eu gosto dos zombies (continuo a acompanhar The Walking Dead com entusiasmo tanto nos comics como na série, por exemplo), mas reconheço que é uma trope problemática em ficção científica. O Luís Filipe Silva há tempos escreveu um texto hilariante sobre esse tema.

Bráulio disse...

Aquecimento global? Hum, Waterworld!
Todos os dias da minha idade adulta tenho esperado pelo anúncio de um remake à maneira. :)

João Campos disse...

Hah, o "Waterworld". Muitos filmes meteram água, mas este é capaz de ter sido o único a fazê-lo em sentido literal:)

É engraçado que eu nem desgosto do filme. Não é grande coisa, de facto (passe o eufemismo), mas por debaixo da tralha toda até há ali uma ou duas ideias com algum potencial. E, olha, sempre foi pioneiro na ideia de que quem fuma são os vilões. Podemos nunca desenvolver guelras, mas já é qualquer coisa.