8 de fevereiro de 2013

Dangerous Visions em retrospectiva (1): Contos de Robert Silverberg, Philip José Farmer, Brian Aldiss e Poul Anderson

Ao longo do último mês tenho-me entretido com Dangerous Visions, a célebre e polémica antologia de ficção curta inédita editada por Harlan Ellison em 1967 e que se tornou num dos mais importantes livros da "New Wave" da ficção científica. No total, a antologia reúne 33 contos e agrega submissões de alguns dos maiores autores do género nos anos 60, de outros que começavam a destacar-se e ainda de alguns escritores que, não escrevendo habitualmente ficção científica, aqui se aventuraram no género. Tenciono, ao longo das próximas semanas, regressar várias vezes a este livro: primeiro para falar de vários dos seus contos a título individual, para depois avaliar a antologia no seu todo - com a ficção dos vários autores e as muitas apresentações e introduções de Ellison. Na semana passada referi o conto Faith of Our Fathers, de Philip K. Dick, porventura (e sem surpresa) um dos melhores de todo o livro; hoje, dedicarei este artigo a quatro submissões de quatro outros autores. 

Flies, de Robert Silverberg: O conto de Silverberg é o segundo a figurar na antologia - e é a todos os níveis impressionante. No centro da narrativa está Richard Cassiday, que sobreviveu à destruição da sua nave espacial numa das luas de Saturno. Capturado por misteriosos alienígenas (os golden ones),  é "reconstruído" com um upgrade: uma maior sensibilidade empática para com os seus semelhantes, para melhor os estudar e reportar as emoções humanas aos alienígenas. Estes, porém, cometeram um pequeno erro que vai assumir proporções monstruosos: ao aumentar a sua capacidade de sentir aquilo que os outros sentem, eliminaram a sua consciência, tornando-o incapaz de sentir, ele mesmo, o que quer que seja - o que terá resultados tão inesperados como chocantes. Flies é a todos os níveis um conto extraordinário, combinando um estilo narrativo invulgar e uma escrita tão eficaz como rica para descrever o calvário de Cassiday. Apesar de não ter sido premiado, figura sem dúvida entre os melhores trabalhos da antologia. 

Riders of the Purple Wage, de Philip José Farmer: Na prática uma novela (e o trabalho mais longo da antologia), a submissão de Philip José Farmer venceu nessa categoria o Prémio Hugo de 1968. Com um estilo muito próprio e muito invulgar - para não dizer histriónico -, Riders of the Purple Wage é uma história de tons quase surrealistas que acompanha o jovem artista Chib enquanto este tenta ascender na sua comunidade fechada de "Ellay" para poder continuar a pintar e a não ser obrigado a emigrar para o Egipto. Entretanto, em sua casa esconde-se o seu avô (na prática o bisavô), um dos últimos empresários do país que anos antes, perante a nacionalização da sua empresa, deu um autêntico golpe do baú e simulou a própria morte - um esquema que enganou toda a gente menos um detective empenhado em descobrir a verdade e resolver aquele crime. Riders of the Purple Wage é uma novela complexa e multifacetada, que cruza na narrativa sobre Chib e a sua família uma abordagem peculiar à sexualidade (tema afastado da ficção científica da época), uma reflexão especialmente polémica sobre o universo artístico e uma crítica muito pouco subtil ao desprezo a que já na época era votada a ficção científica pela crítica literária e o jornalismo mainstream - isto num futuro um tanto ou quanto distópico e descrito numa narrativa tão convulsa como fascinante, com uma premissa que consegue em simultâneo parodiar uma história popular irlandesa e... James Joyce. 

The Night That All Time Broke Out, de Brian Aldiss: Aldiss apresenta neste conto uma premissa fascinante: e se o tempo pudesse ser uma comodidade como a água, o gás ou a electricidade,  controlado e canalizado para que cada um de nós pudesse dispor dele da forma que nos fosse mais conveniente? Nesta futuro visionário, o fluxo normal do Tempo de cada pessoa pode ser alterado pela inalação de uma droga - na prática,  uma espécie de Tempo condensado, ou concentrado. Torna-se assim possível, ainda que dispendioso, regressar mentalmente a um momento específico do passado, ou ter várias divisões de uma casa em momentos temporais diferentes de acordo com um estado de espírito. A narrativa acompanha Tracey e Fifi, um casal que vive no campo e que decide instalar uma "canalização temporal" para poder usufruir de um luxo reservado a quem vive nas cidades. Mas no momento mais inoportuno vai surgir um problema na distribuição temporal que gera efeitos tão curiosos como dramáticos. Aldiss explora a premissa de forma muito simples e directa, deixando espaço ao leitor para imaginar todas as consequências daquele problema. É uma abordagem singular ao tema das viagens no tempo (ou na regressão no tempo), com efeitos inesperados. 

Eutopia, de Poul Anderson: Um conto muito interessante e um daqueles casos que pede uma segunda leitura quase de imediato: o twist final, tão simples, dá um novo significado a todo o texto. Anderson criou toda uma realidade alternativa para a América do Norte, quase feudal na sua caracterização (e no seu aparente "atraso" tecnológico), e nessa realidade colocou o protagonista, o estrangeiro Iason Philippou, em fuga. Tendo violado um tabu do reino de "Norland", Philippou procura uma forma de escapar para um dos reinos vizinhos e a partir daí conseguir transporte para o seu próprio reino. Mas essa fuga não estará isenta de peripécias... A prosa e as descrições de Poul Anderson quase fazem Eutopia parecer um conto de fantasia, e não de ficção científica - o que está longe de ser um defeito. É certo que os mais de quarenta anos que passaram desde a publicação de Dangerous Visions retiraram o shock value da premissa de Eutopia, mas a reflexão cultural e civilizacional de Anderson nos momentos finais da narrativa permanece tão actual como em 1967. 

4 comentários:

André Nóbrega disse...

Gostei mesmo das ideias exploradas nos contos que comentaste. Não leio muita ficção curta mas tenho aprendido recentemente que há pequenas histórias que conseguem alcançar uma genialidade que antes eu esperaria somente de grandes obras (em comprimento). Este vai para a wishlist a ver se lhe consigo por as mãos eventualmente.

João Campos disse...

Atenção que eu nestes pequenos comentários tentei não incluir spoilers - o que é notório sobretudo no que diz respeito ao conto do Poul Anderson. Mas merecem uma leitura, sem dúvida - há alguns contos menos bons, mas no geral o nível da antologia é muito elevado.

E o livro é muito fácil de arranjar: foi reeditado na colecção SF Masterworks.

André Nóbrega disse...

Ainda por cima gosto dessa colecção!

João Campos disse...

Também eu. Cá em casa já mora vários - tanto da colecção numerada antiga como das novas edições recoloridas, e até algumas das edições especiais hardcover.