25 de janeiro de 2013

Northern Lights, ou o início do grande épico da fantasia moderna

Lembro-me como se fosse ontem. Corria o Outono de 2005, e boa parte das minhas noites eram passadas a jogar World of Warcraft (que na altura era novidade). Na época, tinha um grupo muito regular com quem jogava, composto por dois amigos reais e algumas pessoas de vários países da Europa que conheci online. O que era óptimo, pois não só tornava o jogo em si mais interessante, como também proporcionava óptimas conversas em momentos mortos (ou mesmo durante a enésima expedição a Scarlet Monastery). Uma dessas muitas e aleatórias conversas, porém, acabou por se revelar muito importante: o tema era livros e uma rapariga inglesa que fazia parte do grupo, disse que o seu livro preferido era Northern Lights, de Philip Pullman, um autor britânico de quem nunca ouvira falar. Dada a sugestão, decidi procurar o livro - e numa Fnac de Lisboa foi-me possível encomendar uma edição original*, que chegou ao fim de três semanas.

Para alguém como eu, cujas referências na fantasia literária eram Tolkien (devido ao entusiasmo dos filmes) e derivados (narrativas literárias ligadas a universos interactivos como Warcraft e Magic: the Gathering), Northern Lights caiu nas minhas preferências de leitura como uma pedrada num charco. Sem abdicar do seu género, revelou-se uma obra original, com um universo assente em conceitos estimulantes aliados a um simbolismo que dá especial relevo às entrelinhas de uma narrativa bem ritmada. His Dark Materials é normalmente considerada uma série Young Adult, mas revelou-se capaz de apelar tanto a leitores mais jovens como mais maduros. E isso acontece pela interessante combinação de elementos e símbolos com que Pullman tece a narrativa.

Para todos os efeitos, The Northern Lights apresenta vários elementos que teriam lugar em qualquer livro destinado a um público mais jovem: uma protagonista pré-adolescente, uma trama que envolve outras crianças, o conceito de daemons, lugares extraordinários ancorados ao mundo real (como a Oxford de Lyra ou Svalbard) criaturas fantásticas e espiritualmente antropomorfizadas, como os panserbjorne e outras espécies do Árctico), magia e um naipe muito bem definido de heróis e vilões. A isto junta elementos de ficção científica (a noção de universos paralelos), acrescenta uns condimentos de retrofuturismo (a economia baseada em vapor e numa forma alternativa de electricidade) e, como toque final, envolve a narrativa e a evolução da personagem numa trama que, ao invés de se basear nas mitologias clássicas, vai buscar à religião - e em especial ao Cristianismo - os vários elementos fantásticos de que necessita para colocar tudo em movimento.

O resultado é uma história formidável que vai levar a jovem Lyra Belacqua a deixar a sua pacata e académica Oxford rumo ao gélido Norte, numa aventura de dimensões tão vastas que, no final de Northern Lights, o leitor mal sabe o que o espera. É certo que o carácter de Lyra lhe permite arranjar os aliados de que necessita para chegar onde quer (os Gyptians, os panserbjorne, as bruxas e Scoresby), mas para todos os efeitos a força desta protagonista não reside no seu carisma, mas na sua astúcia - e, sobretudo, na sua imaginativa e prodigiosa capacidade de mentir (algo que, se me permitem o micro-spoiler, é desconstruído de forma brilhante no terceiro livro). A Lyra - e Pantalaimon, já agora - junta-se uma impressionante galeria de personagens, onde o sábio Farder Coram, a bruxa Serafina Pekkala, o aeronauta Lee Scoresby e Iorek Byrnison se destacam. Como grande vilã, Northern Lights introduz Marisa Coulter, personagem que desde o primeiro momento o leitor percebe ser mais do que aparenta - e outros vilões menores, como Ragnar Sturlusson e algumas figuras do Magisterium, completam o quadro. Lord Asriel permanece como um enigmático anti-herói até aos momentos finais, em que se revela - mas mesmo essa revelação é enganadora.

Mais do que uma aventura young adult, Northern Lights é uma odisseia estimulante de um ponto de vista conceptual, num universo fantástico tão semelhante e ao mesmo tempo tão diferente do nosso - e que vai servir de porta de entrada para universos ainda mais estranhos, quando não desconfortáveis. Pullman  desenvolve a narrativa com um ritmo perfeito, assegurando-se de que o enredo nunca pára enquanto vai desvendando, aos poucos, os vários mistérios e as muitas reviravoltas que a história encerra. A escrita, essa, é soberba, com uma fluidez e uma elegância que estão longe de ser comuns no género.
Diga-se de passagem que mal acabei a (primeira) leitura de Northern Lights, voltei à Fnac para encomendar os restantes livros da série, The Subtle Knife e The Amber Spyglass. Chegaram ambos um mês depois** Li-os de seguida, com um entusiasmo contagiante: não descansei enquanto todos os amigos mais próximos e dedicados à leitura não pegaram nos livros (e as opiniões foram mais ou menos unânimes). His Dark Materials não se tornou na minha série de fantasia preferida - o título continua a pertencer a The Lord of the Rings. Considero-a, porém, uma das raras séries do género que chegou perto da mestria de Tolkien, utilizando elementos diametralmente distintos para construir uma narrativa prodigiosa, que com toda a justiça se tornou numa das mais marcantes da fantasia contemporânea.

* Também me disseram que o livro estava traduzido para Português, numa edição da Presença. Como é bom de ver, a minha aversão às traduções nacionais é já antiga. 

** O que fez com que nunca mais voltasse a encomendar o que quer que fosse na Fnac. 

3 comentários:

André Nóbrega disse...

Assino por baixo (até mesmo a parte do World of Warcraft). Gostei tanto de ler isto que recentemente comprei uma edição que colecciona os três no mesmo volume toda bonita e tal só para a ter, porque os emprestados não chegavam e porque pretendo reler em breve.

João Campos disse...

Bom investimento :)

ATP disse...

E vou adicionar à lista, thanks :D