A vida de polícia (ou similar) é difícil. Sobretudo numa cidade como Ankh-Morpork, na qual os Assassinos e os Ladrões estão organizados em guildas próprias, com quotas definidas, regulamentos específicos e benefícios diversos para as suas vítimas. E, sobretudo, com um forte desprezo por qualquer concorrência desleal (sim, pode haver concorrência desleal em actividades que envolvem homicídios e roubos). Talvez seja por isso, e por os habitantes da grande cidade de Ankh-Morpork terem um entendimento muito peculiar da lei (dito de outra forma, desconhecem-no), que a velha "Night Watch" caiu em descrédito, com os três membros que restam da velha guarda (literalmente) a limitarem-se aos tradicionais anúncios nocturnos, de hora a hora, que tudo está bem. Talvez seja por isso que o Capitão Sam Vimes passa a maior parte do tempo embriagado.
Algo que vai mudar muito em breve.
Como os caros leitores decerto já entenderam, regresso a Discworld, ao hilariante universo fantástico criado pelo britânico Terry Pratchett. Guards! Guards!, de 1989, é o oitavo livro da série Discworld, de Terry Pratchett, e o livro onde é introduzida a famosa "Night Watch" de Ankh-Morpork, da qual o Capitão Sam Vimes é líder - se é que o seu trabalho consiste em liderar o que quer que seja. O que vai mudar quando, após a morte de um velho companheiro (o quarto membro da patrulha), recebe um novo recruta: Carrot Ironfoundersson, criado pelos Anões das Ramtops (tendo toda a vida pensado que era um, apesar dos seus quase dois metros de altura). Com uma mente muito literal, fruto da sua educação entre os Anões, com um entendimento muito rígido das leis que estudou com afinco e com um optimismo inultrapassável, Carrot dedica-se logo com entusiasmo e brio ao seu trabalho. O que começa por causar alguns dissabores a Vimes, mas que cedo se tornará muito útil.
Um dos aspectos mais interessantes em Guards! Guards! reside precisamente na personagem de Carrot. Dada a forma como é introduzido na história, com grande detalhe tanto na sua caracterização como no seu passado, é de esperar dele um protagonista com um papel muito especial - e, por que não dizê-lo, um tanto ou quanto previsível. Sobretudo quando a conspiração da "Unique and Supreme Lodge of the Elucidated Brethren of the Ebon Night" começa a dar frutos e o caos - um novo tipo de caos - começa a reinar na cidade. Os leitores de Pratchett, porém, sabem como ele gosta de subverter as convenções narrativas, pelo que Carrot nunca chega a se tornar naquilo que esperamos, mas sim em algo muito mais inesperado - e divertido. O protagonista é, sim, Sam Vimes, que em circunstâncias normais (leia-se: num livro "normal") seria um perfeito anti-herói de uma narrativa de detectives noir, mas que no Universo de Discworld é isso e muito mais.
A narrativa de Guards! Guards!, desenvolvida a um ritmo frenético e com inúmeras referências interessantes, está repleta de incidentes hilariantes e mais twists do que à partida poderíamos esperar em mais ou menos 400 páginas. Pratchett utiliza a "Night Watch" e os seus membros para gerar situações tão absurdas como cómicas, parodiando tanto as histórias clássicas de detectives de estilo noir como as tropes das tradicionais histórias de dragões. A cidade de Ankh-Morpork é aqui mostrada como talvez nunca tivesse sido mostrada em Discworld - com a sua população e as suas idiossincrasias. Lord Vetinari, líder da cidade, é também aqui apresentado com destaque (fora mencionado em livros anteriores), e torna-se numa personagem tão importante como interessante. Para além disto, os leitores encontrarão dragões nobres, dragões do pântano (a distinção é importante), um macaco primata bibliotecário particularmente empenhado em recuperar os seus livros (mesmo que isso signifique atravessar dimensões), oportunistas vários e espadas não-mágicas. Divertido e muito inteligente, Guards! Guards! é uma leitura tão intrigante como bem humorada, que introduz muitas novidades e abre um novo arco narrativo no vasto universo de Discworld.
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