4 de dezembro de 2012

O fascinante puzzle narrativo de Cloud Atlas

Por muitos considerado um projecto impossível, Cloud Atlas, a adaptação cinematográfica do romance homónimo de David Mitchell, polarizou a crítica desde a sua ante-estreia em Setembro, no Festival de Cinema de Toronto: houve quem se rendesse à ambição e à execução técnica de Lana e Andy Wachowsky com Tom Twyker, tal como muitos acharam o filme uma estopada intragável. A crítica portuguesa não foi excepção: no Ipsilon, Jorge Mourinha dá-lhe quatro estrelas (em cinco), enquanto Luís Miguel Oliveira lhe atribui apenas uma. Em que ficamos, então?

Não tendo lido o livro de David Mitchell, é-me impossível analisar Cloud Atlas enquanto adaptação de uma obra literária. Resta-me, assim, avaliá-lo apenas enquanto filme, com base na percepção que tive. E a percepção que tive ao vê-lo resume-se isto:  Cloud Atlas é um filme a todos os níveis formidáveis, um projecto cuja vasta ambição apenas foi superada pela execução soberba. Para um filme que consiste numa vasta frame story com quase três horas de duração, o maior elogio que lhe poderei fazer é: lamentei o facto de a sessão ter intervalo. 

Mas vamos por partes. Cloud Atlas conta, em simultâneo, seis (sete) histórias tão diferentes no tom, no tempo e no espaço que cada uma, por si só, poderia dar um filme. Em 1849, é-nos apresentado o jovem advogado Adam Elwing numa viagem de negócios às "Ilhas do Pacífico" em nome do seu sogro, e o seu contacto com a realidade da escravatura vai mudar para sempre o rumo da sua vida. Em 1936, conhecemos o jovem compositor Robert Frobisher, a braços com um passado polémico, quando se torna no assistente do celebrado compositor britânico Vyvyan Arys, esperando ter o tempo necessário para compor a sua obra-prima. Em 1973, em São Francisco, acompanhamos a jornalista Luisa Rey, que se vê envolvida numa vasta conspiração entre lobbies da energia. Em 2012, vemos o editor inglês Timothy Cavendish ganha fama ao publicar o livro de um gangster, mas esse sucesso súbito traz-lhe mais problemas do que imaginara. Num salto para o futuro, chegamos a 2144: em Neo Seoul, a fabricant Somni-451 (uma clone geneticamente concebida) descobre uma realidade sombria, que jamais imaginara a partir da sua simples vida de empregada de mesa. E num futuro ainda mais distante, após um desastre apocalíptico que terá ocorrido em 2321, encontramos Zachry numa das ilhas do Hawaii. Atormentado pela culpa, Zachry vai embarcar numa aventura que o levará mais longe do que alguma vez imaginara possível.

Todas estas histórias, tão distintas no tom e na estética, são contadas de forma fragmentada, numa intricada frame story que se assemelha a um puzzle. À primeira vista, não têm qualquer ligação directa entre si; no entanto, em todas elas é possível encontrar pistas e indicações mais ou menos subtis que as ligam entre si, formando uma narrativa mais vasta, com um ritmo praticamente perfeito, na qual é explorada a grande mensagem do filme: tudo está interligado no tempo e no espaço, e cada acto, seja bom ou mau, terá consequências inesperadas. O que é abordado de forma muito particular em cada uma das histórias individuais.

Um elenco singular dá vida a este mosaico narrativo: Tom Hanks, Halle Berry, Hugo Weaving, Jim Broadbent, Doona Bae, Jim Sturgess, James D'Arcy, Hugh Grant, Susan Sarandon, Keith David e muitos outros rostos conhecidos. Numa decisão tão inteligente como polémica, os realizadores optaram por dar a cada um destes actores e destas actrizes vários papéis nas várias histórias que compõem Cloud Atlas, recorrendo a uma caracterização extraordinária para tornar cada uma delas única, apesar de identificável (nem sempre), reforçando a mensagem subjacente ao filme. A opção foi polémica, sobretudo no que diz respeito à utilização de actores ocidentais a representar personagens asiáticas; julgo, porém, que não só se justifica a aposta, considerando a narrativa peculiar e as várias ideias que esta pretende transmitir através das várias personagens nos vários momentos históricos. 

De uma perspectiva estética e visual, Cloud Atlas é assombroso. A montagem está muito inteligente, com algumas transições tão bem executadas que quase dá vontade de voltar atrás para as ver de novo, contribuindo assim para a construção progressiva do puzzle narrativo. Os fragmentos das várias histórias sucedem-se de forma aparentemente aleatória na primeira metade do filme, para começarem aos poucos a encaixar na segunda parte, com os vários desfechos a contribuírem, cada um à sua maneira, para o clímax do filme. Entre os cenários, destaca-se - é inevitável - a metrópole futurista de Neo Seoul, com as suas enormes torres negras, as suas auto-estradas de luz (um conceito que parece mesmo saído de Tron, ou mesmo do jogo Portal), os seus sofisticados veículos anti-gravidade com inspiração em The Matrix e os seus deslumbrantes salões holográficos. É quase impossível não pensar em Blade Runner quando vemos a cidade (inspiração assumida pelo autor do livro), mas há qualquer coisa de único naquele ambiente. 

Como disse, não li ainda o livro de David Mitchell - e, por isso, não sei se está fiel à obra ou se a descaracteriza. Da mesma forma, não consigo dizer se as várias escolhas tomadas e as várias soluções encontradas pelos Wachowskis e por Twyker foram as mais apropriadas, lógicas ou interessantes. Como filme, porém, Cloud Atlas é um monumento: uma obra tão vasta na sua ambição como na sua intrincada espiral narrativa, sustentada por uma componente visual deslumbrante e por um elenco talentoso que se desdobra de forma brilhante por vários papéis em vários enredos secundários, diversos no tempo e no espaço, unidos com mestria para formar uma narrativa fascinante. Percebo que não seja um filme para agradar a todos - pela duração, pela complexidade narrativa, por alguns detalhes da caracterização aos quais alguns espectadores possam ser mais sensíveis. A mim, porém, Cloud Atlas fascinou-me como poucos filmes conseguiram nos últimos anos. 09/10

Cloud Atlas (2012)
Realizado por Lana Wachowsky, Andy Wachowsky e Tom Twyker
Com Tom Hanks, Halle Berry, Jim Broadbent, Doona Bae, Hugo Weaving, Jim Sturgess, James D'Arcy, Keith David, Hugh Grant e Susan Sarandon.
173 minutos

4 comentários:

Loot disse...

Ainda não vi, espero que este fim-de-semana corrija isso.

Mas na crítica portuguesa é muito comum, o Jorge Mourinha costuma ser dos poucos (único?) críticos do público a gostar deste tipo de cinema.

abraço

João Campos disse...

De facto, o Jorge Mourinha parece ser o único crítico de cinema que sabe apreciar filmes de ficção científica ou baseados em bandas desenhadas/comic books. O João Lopes, do DN, tem dias - pelos vistos, também gostou muito deste.

Quanto a "Cloud Atlas", mesmo que acabes por não gostar do filme (é possível), vale a pena vê-lo no grande ecrã.

Abraço

André Nóbrega disse...

Concordo plenamente com o teu comentário. O filme é, de facto, um monumento, tanto visual como ao nível do enredo e um dos poucos - recentemente - com a capacidade de me fascinar. Passei uns dias a dar comigo a pensar no filme de quando a quando - é um trabalho que traz muita "food for thought".
Quanto às críticas nacionais, admito que não li nenhuma, mas estranho alguém dar 1/5 estrelas ao Cloud Atlas. Percebo que não se ache o filme uma maravilha, mas tenho dificuldade em acreditar que uma mesma pessoa o achou mau ao nível do enredo, da realização, dos actores, da banda sonora e por aí fora.

João Campos disse...

Há coisas em que se pode pegar. Por exemplo, no io9, Charlie Jane Anders (apesar da crítica muito positiva) pegou na caracterização asiática dos actores ocidentais para criticar o filme - algo que tem sido comum a muitos críticos. Já "Looper" foi alvo de críticas idênticas, devido à caracterização do Joseph Gordon-Levitt. Concedo - mas, para mim, a caracterização não foi problemática em qualquer dos casos. Em Cloud Atlas, curiosamente, causou-me muito menos estranheza ver qualquer actor ocidental como asiático do que ver a actriz asiática como ocidental (quando vemos isto, porém, já o filme nos conquistou há mais de uma hora). Lá está - esta opção é um plot device. Pode não funcionar para alguns, mas para mim não só fez todo o sentido, como teve um resultado formidável.

Das duas uma: ou eu entro muito facilmente nos filmes (leia-se: sou muito fácil de enganar), ou há por aí muita gente picuinhas... :)

(ah, não falei da banda sonora do Cloud Atlas - é extraordinária)