20 de novembro de 2012

A ficção científica e o cinema: A Scanner Darkly, ou a adaptação (quase) perfeita de Philip K. Dick

Já falei várias vezes aqui no blogue sobre A Scanner Darkly, aquele que para mim é (até ver) o melhor livro de Philip K. Dick - uma trip vertiginosa e autobiográfica sobre as consequências do consumo abusivo de drogas pesadas através da história de um polícia infiltrado da Brigada de Narcóticos. Em 2006, estreou nas salas de cinema a adaptação desta extraordinária obra: A Scanner Darkly, realizada por Richard Linklater, uma produção independente de baixo orçamento com um elenco de luxo (Keanu Reeves, Winona Ryder, Robert Downey Jr., Woody Harrelson e Rory Cochrane).

A narrativa de A Scanner Darkly decorre em Anaheim, Orange County (Califórnia), num futuro próximo ("sete anos no futuro", como é dito antes dos créditos iniciais) marcado pela hiper-vigilância dos cidadãos. Numa sociedade com 20 por cento de indivíduos viciados em drogas pesadas, trava-se uma "guerra" sem tréguas entre as autoridades governamentais de combate aos narcóticos e os traficantes de droga. A principal preocupação das autoridades é a "Substance D": uma uma droga tão poderosa como viciante, capaz de provocar danos irreversíveis no cérebro. Para combater o flagelo, a polícia emprega agentes infiltrados que levam uma vida aparentemente normal nos meios onde circulam as drogas. Só nas altas esferas da autoridade é que a identidade dos agentes infiltrados é conhecida; nas instalações ligadas à polícia, utilizam uma tecnologia muito interessante intitulada scramble suit: um fato que lhes oculta a identidade ao mostrar uma série de expressões faciais e volumes corporais a uma velocidade tão rápida que a figura se torna numa mancha indistinta. Robert "Bob" Arctor (Keanu Reeves) é um destes agentes com vida dupla: divide casa com James Barris (Robert Downey Jr.) e Ernie Luckman (Woody Harrelson), e mantém uma relação amorosa e algo platónica com Donna Hawthorne (Winona Ryder). No decurso da sua investigação, começa a consumir "Substance D", tal como os seus companheiros, viciando-se na droga - e começa a sentir os seus efeitos preversos quando sente a sua identidade a fragmentar-se, à medida que o seu trabalho o leva a investigar-se a si mesmo.

Com premissas clássicas de Philip K. Dick - a fragmentação de identidade e a permanente interrogação sobre a realidade -, A Scanner Darkly recria a narrativa complexa e vertiginosa do livro através de um guião fragmentado mas sempre coerente, nunca perdendo de vista o livro em que se baseia. A elevada fidelidade do filme face à obra original, porém, deve-se não só ao excelente guião, mas também a outros dois factores: o elenco e a animação.

O elenco, como referi, é excepcional, e apresenta desempenhos que correspondem às expectativas: Keanu Reeves provou, uma vez mais, ter o melhor agente do mundo, pois a alienação e a inexpressividade que o caracterizam (e que tanta vez servem para o parodiar) fazem dele um Bob Arctor a todos os níveis perfeito; Winona Ryder interpreta uma Donna Hawthorne particularmente expressiva; Woody Harrelson e Rory Cochrane dão solidez e verosimilhança às personagens de Ernie Luckman e Charles Freck; mas é Robert Downey Jr. quem brilha no papel de James Barris, com um desempenho frenético, alucinado, rico em tiques e maneirismos que dão à personagem uma densidade especial. 

A animação é um dos aspectos mais curiosos do filme. Richard Linklater empregou a técnica da rotoscopia (em inglês, rotoscoping), que consiste na construção da imagem animada sobre uma filmagem verdadeira. Dito de outra forma: o filme foi filmado de forma normal na sua totalidade, e animado depois, sobre a filmagem original. O resultado é uma animação simultaneamente detalhada e difusa, viva e colorida, em movimento permanente - e que encaixa na perfeição tanto no tema como no tom do filme, contribuindo para a alienação experimentada por Arctor à medida que a sua identidade se fragmenta. É certo que, para muita gente, a utilização desta técnica de animação foi problemático e diminuiu o impacto do filme; para mim, porém, a sensação foi a oposta: a animação acentuou o tom do filme, ao ponto de meio e mensagem se confundirem para criar um filme único. 

Uma última nota para a excelente banda sonora de Graham Reynolds, e sobretudo para as quatro músicas de Radiohead e para a música a solo de Thom Yorke incluídas no filme. Para além de serem excelentes músicas (claro), encaixam de forma muito subtil na narrativa e na animação. 

A Scanner Darkly será porventura a mais fiel das adaptações cinematográficas da obra de Philip K. Dick - e muitos foram os seus contos e livros a chegar ao grande ecrã, com mais ou menos sucesso. Tanto na evolução do enredo como no tom da narrativa, o filme acompanha os momentos principais do livro, sem deixar de parte duas das mais memoráveis e hilariantes cenas descritas por Philip K. Dick: a discussão a propósito das mudanças da bicicleta e o karma  (chamemos-lhe assim para evitar o spoiler) de Charles Freck. Com uma premissa fascinante, uma narrativa complexa, uma componente visual alucinante e uma banda sonora superlativa, A Scanner Darkly destaca-se com facilidade tanto entre os melhores filmes de ficção científica da última década como entre as melhores adaptações de um dos mais fascinantes - e importantes - autores da ficção científica. 8.1/10

A Scanner Darkly (2006)
Realizado por Richard Linklater
Com Keanu Reeves, Winona Ryder, Robert Downey Jr., Woody Harrelson e Rory Cochrane
100 minutos


6 comentários:

André Nóbrega disse...

Também sou um fã do "A Scanner Darkly" - o livro - mas desde que o li ainda não tive oportunidade de olhar para o filme com atenção. Fico contente com uma opinião tão positiva, sabe bem ver um filme bem feito depois de se gostar do livro e esta imagem experimental acompanhada de Radiohead é mesmo adequada para esta história. Espero ficar com uma impressão ao nível do teu 8.1/10!

Loot disse...

Já estava planeado ou foi motivado pela conversa no grupo do facebook? :P

Como disse lá, gosto muito deste A SCanner Darkly e da animação usada. Vi-o no Indie quando chegou cá :)

João Campos disse...

André, eu vi o filme muito antes de ler o livro. Aliás, quando peguei no livro, nem me lembrava do filme - passadas algumas páginas é que comecei a achar que tudo aquilo me era muito familiar...

Por aquilo que li na Internet, há muita gente que gosta do livro mas que não gostou do filme. Um dos principais problemas apontados foi a animação (que julgo ser um dos elementos mais fortes do filme), mas também há quem fale do enredo demasiado confuso. Não achei, mas é possível.

Vale mesmo a pena, nem que seja pelo grande momento dos pecados do Charles Freck!

João Campos disse...

Loot, mais ou menos - estava planeado escrever sobre este filme a dada altura, mas não tinha data específica. A conversa no grupo fez-me lembrar de que tinha uma cópia algures, e fui vê-la.

Também o vi no Indie, apesar de na altura não fazer a mais pequena ideia ao que ia. Só nos créditos é que percebi que era uma adaptação da obra do mesmo autor de "Do Androids Dream of Electric Sheep?", que já tinha lido. Se bem me lembro, a sugestão de ir ver o filme foi da minha namorada daquela altura, por o filme ter o Keanu Reeves ou algo assim. Abençoado Keanu, é o que te digo!

Loot disse...

ahah mto bom. O Keanu por acaso safou-se muito bem, além deste entrou no Matrix, Dracula, Ligações perigosas, um currículo invejável :)

João Campos disse...

O Keanu Reeves tem um agente brutal. Como actor não é grande coisa, mas consegue quase sempre arranjar papéis muito adequados ao seu perfil. Para além de "A Scanner Darkly" e "The Matrix", gostei muito de o ver em "Constantine".

(No Drácula não se nota muito porque o Gary Oldman e o Anthony Hopkins ofuscam todos os outros)