31 de agosto de 2012

The Brothers' War, ou como no universo dos jogos também se encontram boas narrativas literárias

Ao contrário do que acontece no cinema, na televisão e na literatura, onde os géneros do Fantástico são remetidos para um nicho e com frequência considerados “menores”, na indústria dos jogos (convencionais* e de vídeo) as narrativas de Fantasia, Ficção Científica e Horror constituem uma parte relevante e inalienável do mainstream. Poderia dedicar um blogue inteiro apenas a esse tema sem o esgotar - a verdade é que sempre que nos embrenhamos em Magic: The Gathering, Dungeons & Dragons, World of Warcraft, Silent Hill ou Mass Effect, entre muitos outros jogos, estamos a entrar em universos do Fantástico, com narrativas que acompanham as suas várias convenções (e que, não raro, ajudaram a cristalizar algumas dessas convenções). Não é por isso de estranhar que os jogos tenham adoptado a literatura para permitir uma maior exploração das suas narrativas, expandindo-as para além dos limites impostos pelo formato**. Independentemente das considerações e generalizações que possam ser feitas sobre estes livros e a sua qualidade, a verdade é que têm sido para muitos jovens uma introdução ao fantástico literário (quando não mesmo uma introdução ao hábito de leitura), proporcionando leituras simples e interessantes nos universos explorados nos jogos. Podemos, com mais ou menos legitimidade, diminuir as “novelizações” de Dungeons & Dragons ou Warcraft (por exemplo); julgo contudo que seria muito mais interessante avaliar a importância destes livros para que muitos jovens se tenham interessado pela leitura, e para que hoje se dediquem a autores consagrados do género. 

Serve esta longa introdução para falar de The Brothers’ War, novelização (passe o neologismo) de um dos principais arcos narrativos do jogo de cartas coleccionáveis Magic: The Gathering. Escrito pelo norte-americano Jeff Grubb e publicado em 1999, The Brothers' War é um dos dois livros responsáveis pelo meu gosto aos géneros do Fantástico***, pelo que serei sempre algo parcial no seu elogio. Mas a verdade é que The Brothers’ War é um livro muito bem conseguido, com personagens excelentes, uma intriga sólida e um enquadramento notável que afasta o livro da high fantasy mais convencional para o aproximar de uma espécie de steampunk no qual o vapor enquanto fonte de energia é substituído por objectos misterioros designados por "powerstones". 

A narrativa decorre em Terisiare, uma dos vários continentes do mundo de Dominaria (muito familiar para qualquer jogador de M:tG). No vasto deserto que domina o centro do continente, uma caravana aproxima-se do campo de Tocasia, uma conhecida arqueóloga da nação costeira de Argive, que vive no deserto profundo com os seus estudantes à procura de vestígios da antiga civilização Thran, misteriosamente erradicada milhares de anos antes. Com a caravana chegam dois irmãos de uma família nobre de Argive, ainda crianças, fugidos às intrigas políticas do reino. Urza e Mishra não poderiam ser mais diferentes entre si, como se cada um fosse uma face da mesma moeda. Fisicamente mais frágil mas dotado de uma inteligência invulgar, Urza é mais dado à introspecção, à análise, à teoria; já Mishra, mais forte, revela-se mais sociável, e a sua inteligência, apesar de não ser inferior à do irmão, é essencialmente de natureza prática. Apesar das diferenças, os dois irmãos são inseparáveis, e juntos fazem algumas das mais relevantes descobertas sobre os Thran e as fantásticas máquinas que estes construíam, movidas com a energia de “powerstones” cuja origem se perdeu com o passar dos séculos. Urza e Mishra conseguem reconstruir uma máquina voadora dos Thran - o ornitóptero - e, através dele, descobrem as misteriosas ruínas de Koilos. O que encontram lá dentro, porém, irá dividi-los de forma irreversível, e os caminhos separados que vão tomar conduzi-los-ão inevitavelmente a uma guerra que arrastará todo o continente de Terisiare e mudará Dominaria para sempre.  

Quem esperar encontrar em The Brothers’ War magia a rodos e grandes combates pirotécnicos entre feiticeiros e vastos exércitos de criaturas mitológicas ou tolkenianas, desengane-se: aparecem Elfos (poucos, por pouco tempo, e com pouca sorte), são mencionados Anões, mas na sua essência esta é uma história de humanos e com humanos que, na sua maioria, possuem mais argúcia do que magia. Devido à sua educação, Urza e Mishra interessam-se mais por máquinas do que por pessoas - e, por isso, a longa guerra recorre sobretudo a artefactos e prodigiosas máquinas de guerra, desde ornitópteros convertidos em bombardeiros a gigantescos dragões e titãs mecânicos. Claro que a magia acabará por ter um papel determinante na narrativa (como não podia deixar de ser, dado o universo onde nos situamos), mas esta ainda é uma força nascente, e por isso de controlo particularmente limitado (a primeira cena em que aparece, no entanto, é memorável). 

Urza e Mishra são os protagonistas, os irmãos em guerra que dão o título a esta história. A eles juntam-se outras personagens relevantes, como os respectivos aprendizes Tawnos e Ashnod; Kayla Bin-Kroog, princesa do reino de Yotia, e o seu filho, Harbin; Loran e os estudantes da cidade de Terisia; Gix, a misteriosa criatura do mundo artificial de Phyrexia, com uma agenda própria no conflito; e Gwen de Argoth. É à volta destas personagens, e das relações (não necessariamente amorosas) que se estabelecem entre elas, que se desenvolve a intriga que faz mover a narrativa. Numa época como a presente em que a fantasia épica se parece ter virado menos para a intriga em detrimento do clássico sword & sorcery, The Brother’s War parece ainda mais actual do que era em 1999. A trama pode não ter a complexidade, por exemplo, da obra de George R. R. Martin, mas as motivações dos principais personagens dentro do conflito são suficientemente interessantes para manter interessados os leitores mais ávidos por este tipo de ficção. 

Quem, contudo, preferir a boa e velha magia, também terá motivos para gostar deste livro (se bem que a base da magia em The Brothers’ War, assente nas cinco cores de elementos diferentes, seja bastante familiar a quem joga ou jogou M:tG), sobretudo à medida que o final se aproxima. Por fim, quem tem abraçado a recente tendência do steampunk deverá olhar com interesse para os artefactos e as inúmeras construções mecânicas que Urza, Mishra (e Gix) desenvolvem para travar a sua guerra épica, e talvez até com o próprio conceito de Phyrexia. 

The Brothers’ War foi publicado com o rótulo Magic: The Gathering, que terá sem dúvida diminuído de forma considerável a sua projecção. O que não deixa de ser uma pena: a escrita de Jeff Grubb, não estando obviamente ao nível da de um Tolkien ou de um Pullman (quem está?), é bastante competente e confere àquele mundo e àquelas personagens a densidade e a ambiguidade necessárias para a narrativa funcionar. Na sua essência, The Brothers’ War é uma excelente história muito bem contada. Não fosse o rótulo, e provavelmente seria hoje considerada uma obra essencial dos últimos 20 anos do género. Para mim, contudo, é um livro formidável. Não o posso recomendar mais. 

(A quem interessar, a edição que mostro na imagem é bastante difícil de encontrar hoje em dia. Há, no entanto, uma edição omnibus intitulada Artifacts Cycle I que junta The Brothers’ War a The Thran, livro de J. Robert King publicado com o bloco de cartas de Invasion que conta a história da queda do império Thran e da ascensão de Yawgmoth em Phyrexia (e este é também muito bom). Em termos de sequelas directas, a narrativa de The Brothers’ War tem continuidade em Planeswalker, de Lynn Abbey, Time Streams, de J. Robert King, e Bloodlines, de Loren L. Coleman (os dois primeiros também são muito interessantes). Estes três volumes estão também reunidos na edição omnibus Artifacts Cycle II. Ambas as edições são de 2009 e relativamente fáceis de encontrar.) 

*Note-se que por “convencionais” refiro-me a jogos não virtuais, como jogos de cartas coleccionáveis, de tabuleiro ou de pen & paper - e não à malha ou à bisca lambida. 

**Dois pontos: se na literatura podemos encontrar bons livros baseados em jogos, no cinema a coisa fica bem mais difícil: tanto quanto sei, apenas Silent Hill deu origem a um filme acima de mediano (Resident Evil, por exemplo, é o que se sabe). Por outro lado, existe já um exemplo muito interessante de um videojogo que é a adaptação para o formato de um livro, o que também coloca algumas coisas em perspectiva. 

***O outro, como referi aqui, é The Snow Queen, de Joan D. Vinge

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