15 de agosto de 2012

As narrativas incompletas

No cinema actual, uma das coisas que o formato DVD (e, mais recentemente, o Blu-Ray) possibilitou foi a introdução de conteúdos adicionais que acrescentam valor a um filme. Qualquer edição actual de um filme inclui todo o tipo de extras, que podem ir de conteúdos simples como trailers a material mais elaborado, como documentários sobre a produção e a realização, curiosidades, informação sobre o elenco e o argumento e mesmo cenas adicionais que foram excluídas do filme durante o processo de edição para o lançamento oficial. Praticamente todas as grandes produções fazem isto hoje em dia, e em alguns casos o filme original melhora substancialmente com a introdução destas cenas adicionais, previamente cortadas. Ao ponto de ser possível encontrar muita gente a esperar pelo lançamento em DVD ou Blu-Ray de um filme que nas salas de cinema se apresentou medíocre ou exibiu demasiadas falhas. A título de exemplo, algumas conversas recentes - pessoais ou apanhadas em fóruns de discussão e comentários online - indicam que há uma quantidade considerável de pessoas à espera das cenas adicionais de filmes como Prometheus ou The Dark Knight Rises para ver se melhoram (a desilusão será tremenda - os problemas de ambos os filmes não podem ser solucionados por cenas adicionais porque residem não nas cenas que faltam, mas nas cenas que lá estão). 

Tendência idêntica marca actualmente a indústria dos videojogos. Com o aumento da largura de banda disponível e o acesso através de consolas, a distribuição dos videojogos tem vindo a conhecer profundas alterações, com o mercado a mover-se rapidamente para o digital - o que abre novas possibilidades à distribuição de conteúdos adicionais. Se no final dos anos 90 era comum um jogo ter continuidade através de expansões, instaladas sobre o jogo original e desenvolvendo em grande medida a narrativa e a jogabilidade originais, esse modelo entrou em declínio para dar lugar aos DLC - sigla inglesa para downloadable content, conteúdos desenvolvidos pela produtora e distribuídos de forma gratuita ou mediante um preço. Curiosamente, assiste-se neste mercado a uma situação idêntica à da indústria cinematográfica: as distribuidoras excluem conteúdos dos jogos - enredos laterais, personagens, epílogos, itens - para os distribuírem em formato DLC e assim fazer o jogo render mais algum dinheiro (convém aqui lembrar que videojogos novos não têm preços propriamente módicos). O resultado: polémicas como a de Mass Effect 3, cuja produtora (BioWare) excluiu da versão final do jogo uma personagem de grande importância (Javik) para a dar em exclusivo à Edição de Coleccionador e torná-la disponível aos restantes jogadores através de um DLC pago. Ou a ainda mais descarada situação do jogo Street Fighter Vs. Tekken, no qual a Capcom impediu o acesso a conteúdos que estão no disco do jogo (no caso, alguns lutadores) para obrigar os jogadores a desbloqueá-los mediante pagamento. Ou o ainda quente caso da próxima aventura de 007, que pode ser lido aqui

A título pessoal, não vejo com maus olhos que as indústrias do cinema e dos videojogos utilizem a explosão do digital para acrescentarem valor aos seus produtos. Apenas condeno que esse valor seja acrescentado à custa da integridade narrativa do produto final. Se o enredo de um filme é mais coerente após a introdução de algumas cenas cortadas, então talvez aquelas cenas não devessem ter sido cortadas durante a edição. Da mesma forma, se uma personagem ou uma sub-narrativa são relevantes para a história principal de um videojogo, então não devem ser excluídas para se facturar mais uns cobres. Nestes casos, já não se trata de acrescentar valor aos produtos - trata-se, sim, de retirar deliberadamente valor aos produtos, num misto de preguiça com ganância, para facturar mais à custa dos clientes que realmente interessam. Isto, claro - e lamento dizê-lo -, só é possível porque os consumidores continuam a agir como ovelhas. No caso dos filmes, continuam a receber os conteúdos adicionais como uma benesse das produtoras; já os gamers são por natureza um público colectivamente imbecil, ou, no mínimo, propenso à imbecilidade (passe a generalização injusta). Resta saber qual será o impacto real de movimentos como o Retake Mass Effect (que gerou uma ampla cobertura mediática), mas nada garante que se venha a traduzir em algo que force as produtoras a deixarem-se de merdas. 

Quando pago um bilhete de cinema, queremos ver o filme todo. Quando um videojogo me entusiasma o suficiente para o comprar (mais caro) nos primeiros dias após o lançamento, quero jogá-lo todo. Não quero pagar um bilhete de cinema para descobrir que o filme não faz muito sentido, para após um ano ver a coisa ser composta em cenas adicionais introduzidas numa edição de blu-ray que custou 20 euros. Tal como não quero pagar 50 ou 60 euros por um jogo para perceber que, se quiser jogar mais uma hora e ter outra perspectiva da história, terei de pagar mais dez euros para descarregar e instalar conteúdos que deviam estar no CD. Isto é o mínimo que um consumidor pode e deve esperar - tal como quando se compra um livro e ele está completo*. Conteúdos adicionais extra, sim. Conteúdos extra essenciais, não. Quanto a mim, gosto pouco das narrativas incompletas. 

* No entanto, não é difícil imaginar que, quando os e-readers estiverem tão banalizados como um paperback, capítulos adicionais passem a ser comercializados à peça, com histórias passadas e paralelas das várias personagens. Ou seja: que as piores práticas das indústrias cinematográfica e dos videojogos cheguem também à literária. Que não se acabe o papel.

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