19 de junho de 2012

A Ficção Científica e o Cinema: The Matrix


É possível que The Matrix seja, na ficção científica cinematográfica “recente” (o filme leva já treze anos), o último verdadeiro clássico do género, digno de figurar na galeria dos grandes como 2001: A Space Odyssey, Alien ou Blade Runner. Será sem dúvida o grande filme de ficção científica da minha geração, nascida entre meados e finais dos anos 80, longe dos clássicos já mencionados e de outros que marcaram o género. Recordo-me de quando o vi pela primeira vez: aqui entre nós, porque a coisa foi descaradamente ilegal, tinha catorze ou quinze anos (estava no nono ano) e um professor arranjou uma cópia em VHS que exibiu durante duas horas que, normalmente, seriam passadas a brincar com a “fórmula resolvente” ou a estrebuchar com o Teorema de Pitágoras. Poucos foram os filmes que vi posteriormente que conseguiram transmitir aquela sensação de que estava a assistir a algo absolutamente revolucionário - The Matrix conseguiu-o, de forma inesquecível, logo nos primeiros momentos. Bastou Trinity (Carrie-Anne Moss) levantar-se, ficar suspensa no ar enquanto a câmara rodopiava em seu redor numa slow motion elegantíssima. Hoje, o truque é banal: qualquer filme ou série medíocre repete o truque ad nauseam, com mais ou menos talento. Na viragem do milénio, porém, foi quanto bastou para Larry e Andy Wachowsky mudarem definitivamente a forma como as narrativas de acção são feitas.

Aliás, a ficção científica cinematográfica também é isto - inovação nos métodos, na forma, nas artimanhas utilizadas para provocar impacto visual e criar uma estética única. É certo que nem todos os grandes filmes de ficção científica requem uma componente visual assombrosa - mas muitas das mais memoráveis películas do género destacaram-se também - quando não em primeiro lugar - nesse campo. The Matrix não foi excepção. Podemos, para todos os efeitos, falar de cinema de acção pré-The Matrix e pós-The Matrix.

Naturalmente, um filme de ficção científica não é feito apenas pelas suas componentes visuais e de efeitos especiais (coisa que muitos realizadores contemporâneos continuam a ignorar) - mas The Matrix é uma obra superior mesmo no que ao enredo e à narrativa diz respeito. Sim, o filme é, todo ele, um autêntico portfolio de efeitos especiais - mas estes não sobrevivem por si só, antes enriquecem a narrativa, encaixando-se perfeitamente no todo que é o filme. O enredo remete-nos imediatamente para o universo cyberpunk, num futuro incerto no qual as inteligências artificiais - as “Máquinas” - destruíram a civilização humana e utilizam seres humanos gerados artificialmente (“cultivados”, como diz Morpheus) como fonte de energia. De forma a manter a Humanidade escravizada, as Máquinas “ligaram” todos os seres humanos a uma ilusão em forma de realidade virtual - The Matrix, a Matriz que dá nome ao filme, uma “alegoria da caverna” cibernética -, a qual é aceite por todos excepto os “últimos humanos livres”, de Zion, cidade escondida perto do centro do planeta a partir da qual se trava uma guerra contra as Máquinas - no mundo real e dentro da própria Matriz. O filme centra-se na tripulação da nave Nebuchadnezzar, comandada pelo icónico e idealista Morpheus (a inesquecível personagem de Lawrence Fishburne), que procura encontrar o Escolhido, o “Messias” que uma profecia diz ser capaz de subverter as rígidas regras da Matriz para a derrubar a partir de dentro, libertando a humanidade dos grilhões da ilusão em que vive. Esse “Messias” é Thomas A. Anderson, o hacker conhecido por “Neo” (interpretado pelo lacónico Keanu Reeves, provavelmente o actor com o melhor agente de Hollywood), que será libertado para combater as Máquinas. Mas contra eles estão os “Agentes”, inteligências artificiais que residem no interior da Matriz lideradas pelo Agent Smith, que Hugo Weaving imortalizou como um dos grandes vilões da ficção científica. 

O que torna The Matrix tão interessante do ponto de vista do enredo é a mistura de filosofias que contém, e a forma como, sem responder a algumas das mais relevantes questões de forma explícita, deixa pistas suficientes para várias interpretações - e muitas das respostas dadas nas sequelas são logo dadas no primeiro filme (o “monólogo” de Smith com Morpheus, porventura o momento-chave do filme, explica de forma muito interessante a ideia das múltiplas realidades simuladas que, em Reloaded, o Arquitecto ilustra de forma bastante clara, e deixa no ar o primeiro indício de que Zion não é exactamente a “última cidade livre”). Denso, intenso, cheio de pistas e com espaço para o debate. Dificilmente poderia ser melhor.

Junte-se a isto um conjunto de excelentes personagens (de Morpheus a Trinity, de Neo a Smith, sem esquecer a enigmática Oracle), óptimas interpretações (sim - Keanu Reeves pode não ser grande actor, mas fez um excelente Neo), um ritmo praticamente perfeito e sequências de acção inesquecíveis. O resultado é um filme a todos os níveis memorável, que deu origem a um universo muito interessante, ainda que nem sempre executado da melhor forma (as sequelas têm os seus problemas, tal como os videojogos, mas as nove curtas que compõem Animatrix são soberbas). Talvez não tenha passado ainda tempo suficiente para determinar se sobrevive mesmo ao teste do tempo (julgo que sim), mas vai no bom caminho - em termos de influência, nenhum filme de ficção científica posterior a 1999 lhe fez sombra até agora.  9.5/10

6 comentários:

Loot disse...

Concordo e senti o mesmo precisamente nessa primeira cena com a trinity, encostei-me na cadeira do cinema e a partir daquele momento sabia que o que ia ver não me deixaria indiferente.

E acho mesmo que passará no teste do tempo. As sequelas não ajudaram fizeram com que caísse mais no esquecimento, se fosse só este seria apenas lembrado como um grande filme e não como um grande filme cujas sequelas foram piorando.

Se é o último grande filme de FC até à data não sei. Pensar nisso. Que tenha chegado a tantos, possivelmente é.

João Campos disse...

Há vários filmes de ficção científica muito bons desde Matrix. Por exemplo, gosto muito de Children of Men, e muita gente já me disse maravilhas de Moon (que ainda não vi). Simplesmente nenhum foi tão icónico. Poderia mencionar outros. Inception é interessante, mas não foi muito bem concretizado; Avatar é formidável - até mesmo revolucionário - do ponto de vista visual, mas o argumento é muito fraquinho; e Prometheus... não cumpriu o que prometeu (pun intended). Em termos de impacto, The Matrix foi mesmo o último (ou melhor: o mais recente) grande momento da ficção científica cinematográfica.

Loot disse...

Em termos de impacto no grande público sem dúvida. E talvez mesmo até em mim, mas como me costumo esquecer de muita coisa é possível que haja aí alguma pérola (idêntica).

Dos que dizes, não vi todos e os que vi realmente não são e estão longe disso. O prometheus será mais justo comparar com as sequelas, porque o Alien sim é um digno concorrente mas de 79 então não interessa de momento :)

O inception é mais show off do que outra coisa e eu gostei, mas podia ter sido melhor.

Abraço

João Campos disse...

O Inception também foi uma desilusão para mim. Quer dizer, gostei do filme, mas acho-o sobrevalorizado. Quanto ao Prometheus, sim, é comparável às sequelas, mas não a todas. Aliens, de James Cameron, é um excelente filme.

Abraço

Loot disse...

Desculpa estar a encher isto de comentários lol.

Queria dizer que o prometheus se devia comparar às sequelas do Matrix e não ao primeiro. A esse compara-se com o Alien.

O Aliens de Cameron é brutalíssimo jamais o desvalorizaria :)

joão campos disse...

Ora essa, os comentários são sempre muito bem vindos.

Sim, é um bom ponto de vista. Pessoalmente, eu gostei das sequelas do Matrix (e gosto ainda), e julgo que a ideia central do filme passou de forma muito interessante. Reconhecendo, contudo, que enquanto filme são bem mais fracos que o original. Um dia destes logo escreverei sobre isso (mesmo que vá com nove anos de atraso!).