15 de maio de 2012

A ficção científica e o cinema: Melancholia

É algo difícil enquadrar Melancholia (Lars Von Trier, 2011) no género de ficção científica, ou mesmo num Fantástico mais abrangente. O filme foge às tropes clássicas do género ao apresentar-se desprovido de um enquadramento temporal identificativo (tanto quanto sabemos, a acção decorre nos nossos dias, e não num futuro distante) e com poucos elementos relevantes. Na verdade, só o motivo de fundo - a destruição da Terra - e uma certa intuição premonitória que Justine revela dão a este filme um carácter de Fantástico. O que não só não é invulgar como, pessoalmente, é também mais do que suficiente para mim. Numa altura em que a ficção científica "clássica" tem perdido força no grande ecrã, é refrescante ver trabalhos alternativos de qualidade, produzidos e realizados por pessoas que normalmente não associamos ao género - mesmo que o utilizem não como motivo principal, mas como pano de fundo para algo diferente. 

Para ir directo ao assunto: Melancholia é um filme a todos os níveis excepcional, de longe a melhor estreia que vi em muito tempo. Não sou particular conhecedor da obra de Von Trier, pelo que evitarei as comparações - mas em Melancholia, o dinamarquês tem sem dúvida uma obra-prima. É um filme muito contido, com um enredo simples e coeso, centrado na vida de duas irmãs durante as semanas que antecedem a destruição da Terra pela colisão com o planeta-nómada Melancolia. Isto, atenção, não é propriamente um spoiler: nos primeiros momentos do filme, através de uma sucessão de imagens quase estáticas de grande beleza, Lars Von Trier mostra vários momentos importantes do filme, entre eles a colisão planetária que oblitera o planeta Terra. Melancholia não é o convencional filme-catástrofe a pedir pipocas numa tarde chuvosa de domingo. Não há aqui uma tragédia anunciada, a notícia do apocalipse apresentada à imprensa por um líder mundial, o pânico generalizado pelo mundo, e a tentativa meio desesperada, meio heróica de resolver o problema, sabendo que no final os heróis triunfam e salvam a Terra. Em Melancholia, a destruição da Terra é um facto consumado, e nada poderá mudar isso. Lars Von Trier não está sequer preocupado em mostrar como o mundo vive os dias do fim (o que poderia ser um exercício interessante) - ao longo do filme, nenhuma pista é dada nesse sentido. Apenas as duas irmãs, Justine e Claire, interessam.

E é precisamente entre ambas que o filme se divide, em duas partes que recebem o nome de cada uma delas. A primeira, "Justine", retrata a cerimónia e a festa de casamento de Justine (Kristen Dunst num desempenho formidável), num momento de drama familiar onde sobressai a oposição entre a impulsividade e o carácter depressivo e auto-destrutivo de Justine e o rigor e o auto-controlo de Claire (Charlotte Gainsbourg), num cenário humano que tenta (em vão) compensar a sua vacuidade através da ostentação. As diferenças suscitam o conflito entre ambas, mas curiosamente são um ponto de união entre as duas irmãs nomeio de uma família disfuncional. Na segunda parte, intitulada "Claire", Justine cede por fim à depressão, e é Claire quem vai tomar conta dela enquanto o planeta Melancolia se aproxima da Terra - com John (Kiefer Sutherland), o marido de Claire, a garantir que o planeta passará pela Terra sem risco de colisão. Aqui dá-se uma inversão curiosa de papéis, entre uma Justine a sair progressivamente da sua depressão (ou a aprender por fim a viver com ela) e a aceitar de forma surpreendentemente estóica e controlada o fim da Humanidade quando se torna evidente que os planetas vão de facto colidir, e uma Claire a perder o auto-controlo e a mergulhar numa loucura induzida pelo desespero.

Este drama familiar é pautado por uma banda sonora formidável (Tristão e Isolda, de Wagner), que contribui de forma subtil mas decisiva para a atmosfera criada por Lars Von Trier - cada vez mais opressiva à medida que o fim se aproxima e sabemos nada poder ser feito para o evitar. Entrar em Melancholia induz uma sensação difusa de desconforto, uma angústia permanente que extravasa as imagens de grande beleza que Von Trier recria até ao último momento. Pessoalmente, a única experiência que tive do género foi quando li Childhood's End, de Arthur C. Clarke - que, não por acaso, é o meu livro de ficção científica preferido. Vi Melancholia no cinema, em Dezembro, e no momento em que o filme acabou, ninguém se moveu - durante longos minutos rolavam os créditos, e o público permaneceu sentado, em silêncio, sem desviar o olhar da tela. É possível que nem todos tenham gostado do filme - aliás, é muito provável que metade da audiência tenha detestado Melancholia. Mas ninguém lhe ficou indiferente. 9.5/10


[Que um filme deste calibre tenha sido praticamente posto de parte devido às declarações idiotas de Lars Von Trier numa conferência de imprensa só demonstra (como se ainda houvesse dúvidas) a estupidez reinante no meio cinematográfico.]

2 comentários:

Rita Santos disse...

Lars von Trier is not really my cup of tea mas um dia tentarei ver este filme.

joão campos disse...

Foi o único filme dele que vi até hoje. É formidável - e a Kristen Dunst tem aqui o melhor papel da sua carreira desde "Interview With a Vampire".