Num dia dedicado a Philip K. Dick, não poderia deixar de adaptar para aqui um texto já antigo, publicado no Delito de Opinião, sobre aquele que considero o melhor livro que li deste autor americano: A Scanner Darkly (em português, O Homem Duplo). A Scanner Darkly, com a sua escrita alucinada e uma narrativa tão psicadélica como as drogas de que fala, pode muito bem ser o exemplo perfeito de um livro de ficção científica que, por si só, devia afastar qualquer preconceito de género. Houve alguns livros de ficção científica que pularam a cerca, passe a expressão, e se impuseram como referências na literatura mundial, talvez não por serem obras de ficção científica, mas apesar de serem obras de ficção científica - como bons exemplos, poderia apresentar Farenheit 451, de Ray Bradbury, A Clockwork Orange, de Anthony Burgess, ou, claro, Nineteen Eighty-Four, de George Orwell. Pessoalmente, A Scanner Darkly não fica atrás de nenhum destes - e é, muito justamente, considerada uma das obras maiores de Philip K. Dick, ele mesmo considerado por muitos um dos maiores escritores de ficção científica de sempre.
Repleto de elementos autobiográficos (com uma dedicatória final impressionante), A Scanner Darkly tem no consumo de drogas e respectivos efeitos o núcleo da história. Bob Arctor, o protagonista, um polícia de narcóticos sob disfarce (o célebre scramble suit), está a investigar o tráfico de uma droga particularmente forte e destrutiva: "Substance D", mais conhecida por "Death". Nem a própria polícia conhece a identidade de Arctor, que se identifica apenas pelo nome "Fred", a fim de evitar a habitual corrupção que grassa neste tipo de investigações. E a investigação de "Fred" gira em redor de Jim Barris, Ernie Luckman e Donna Hawthorne - respectivamente, colegas de casa e namorada de... Bob Arctor. Que, para efeitos do seu trabalho enquanto "Fred", tem de consumir as próprias drogas que está a investigar, levando-o a investigar-se a ele mesmo.
Confuso? Mais do que isso: uma verdadeira alucinação, numa narrativa psicadélica sustentada por uma escrita vertiginosa. Faltam-me adjectivos melhores, confesso; mas a verdade é esta: as quatro personagens principais da história estão quase sempre sob o efeito de drogas, e Philip K. Dick soube traduzir com mestria a vertigem desse estado para a escrita. Algumas passagens são autênticas alucinações, pela forma como prendem a atenção do leitor e insistem em desafiar uma lógica que se sabe não existir (há momentos em que não estamos certos de estar realmente a ler aquilo). Há uma passagem muito interessante (e famosa) que disso é exemplo: quando Arctor, Barris, Luckman e Donna discutem acaloradamente sobre a quantidade de mudanças que uma bicicleta tem. Isto colocado assim parece algo parvo, eu sei, mas a verdade é que desta ideia surge toda uma cena com um diálogo absolutamente brilhante - sem dúvida, uma das melhores passagens que tive o prazer de ler.
A Scanner Darkly (como muitas outras de Philip K. Dick) foi já também adaptada para cinema em 2006. O realizador foi Richard Linklater, e o filme conta com as interpretações de Keanu Reeves, Robert Downey Jr., Woody Harrelson e Winona Ryder. Não sendo uma obra-prima, é um filme bastante bom e interessante, com momentos deliciosamente adaptados do livro (como a discussão sobre as mudanças da bicicleta, uma vez mais) e que utiliza uma curiosa técnica de animação. Sim, é um filme de animação, criada, tanto quanto sei, em pós-produção, como se o filme fosse reconvertido para animação, ou algo assim: falta-me a linguagem técnica. O que pouco importa aqui: o efeito é surpreendente, sobretudo devido ao enredo já de si "alucinado".
(Aqui, uma excelente e mais elaborada crítica a este livro)
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