25 de março de 2012

Mass Effect 3: Um final terrível para uma série brilhante

Ponto prévio a esta crítica ao final de Mass Effect 3 (e, para todos os efeitos, ao final de toda a série Mass Effect): para mim, um bom final não é um final feliz, mas um final coerente, com sentido - e, muitas vezes, essa coerência consegue-se com finais emocionalmente devastadores. Sou, por exemplo, um leitor ávido da série A Song of Ice and Fire, de Georgre R.R. Martin, e mesmo os momentos mais difíceis de digerir (Red Wedding - ou melhor, toda a segunda parte de A Storm of Swords, até ao brutal epílogo) fizeram sentido, e deram valor à obra no seu todo. Aquele que considero ser o melhor livro de ficção científica que já li, Childhood's End, de Arthur C. Clarke, tem um final tão poderoso que, após lê-lo, não me ocorreu nada para dizer sobre ele durante mais de duas horas. Tal como o final do filme Melancholia, de Lars Von Trier, de longe o melhor filme do ano passado (no momento em que o filme acabou, toda a gente que estava no cinema ficou em silêncio durante longos minutos, enquanto os créditos passavam - não se ouviu uma palavra, não se viu ninguém levantar-se e sair). Ou tal como The Children of Húrin, de Tolkien, com o seu final trágico e o epílogo ainda mais violento do ponto de vista emocional. Com Mass Effect 3, esperava algo do género - um final difícil de digerir, que envolvesse enormes sacrifícios, mas que fizesse sentido, fosse coerente com a narrativa em desenvolvimento ao longo de três grandes jogos, e que me permitisse dizer, algumas horas depois, que tinha sido extraordinário.

O que não esperava é que a Bioware - sobretudo depois dos finais de Mass Effect e Mass Effect 2, e de alguns momentos narrativos excepcionais em Mass Effect 3 (como as cenas de Tuchanka e Rannoch), puxasse da cartola o maior e mais literal deus ex machina que vi desde o final de The Matrix Revolutions, mas sem a coerência daquele (um dia destes explico porque gostei do final daquela trilogia), destruindo em dez minutos uma série de centenas de horas com plot holes e incoerências narrativas tão grandes que, por comparação, até fazem o início do filme Alien 3 parecer bom e coeso. Na parede de texto que se segue - repleta de spoilers - tentarei explicar, com base nas minhas percepções e em alguns textos e comentários que li pela Internet, os motivos pelos quais o final (ou os finais, se quiserem) de Mass Effect 3 não fazem de todo justiça a esta trilogia de excelentes videojogos.

1. É isto o final? Bom, é caso para dizer so long and thanks for all the fish, não é?
É certo que podemos argumentar que, por mais escolhas que sejam feitas ao longo dos três Mass Effect, o jogador está sempre a seguir a história nos carris deixados pela Bioware. Também é certo que muitas escolhas feitas nos jogos anteriores têm impacto na narrativa do terceiro jogo - a preservação da informação sobre o Genophage será porventura o melhor exemplo disso. No entanto, há escolhas que se tornaram irrelevantes (a salvação da rainha Rachni, por exemplo - se a poupámos ela regressa, se a eliminámos aparece um clone), e outras que nem são mencionadas. Por exemplo:

  1. ME1: Salvarmos a nave capital do Conselho ou deixá-la à sua sorte (neste caso, é destruída pelos Geth);
  2. ME2: Os upgrades feitos à Normandy;
  3. ME2: Os colegas de equipa que sobreviveram na missão suicida.
  4. ME3: Que diabo, nem a peça que o engenheiro da nave nos pede para impedir que o núcleo sobreaqueça faz diferença - quando, no segundo jogo, todos os upgrades que fazíamos à Normandy faziam diferença, na medida em que por cada upgrade em falta, morria um personagem do grupo durante o assalto à base dos Collectors.
O ponto 3 é particularmente irritante. Ao longo do jogo, sabemos que Mordin morre (naquela que será porventura a sequência mais épica e bem escrita de todo o jogo), que Tali pode ou não morrer, dependendo da nossa decisão em Rannoch, e que Legion e Thane morrem. Grunt pode ou não morrer, dependendo de a sua missão de lealdade no segundo jogo ter sido feita. As restantes personagens de Mass Effect 2 - Jack, Miranda, Jacob, Samara ou Morinth, Zaeed e Kasumi (para quem jogou os DLC) fazem aparições ocasionais, e em algumas missões são personagens secundárias - no entanto, na missão final não têm qualquer aparição (creio que dá para contactar algumas delas, mas essa parte passou-me ao lado). Dada a importância daquela missão e tudo o que está em causa - com as frotas de praticamente todos os povos da galáxia a combater os Reapers na órbita da Terra - seria de esperar que estas personagens participassem de alguma forma na missão final de Shepard. Mas a coisa é ainda pior do que isto: escolhemos dois parceiros para as duas partes da missão, e perdemos o rasto aos restantes. 

Considerando quão espectacular é a missão suicida de Mass Effect 2 (mesmo dando o desconto à luta final), é incompreensível como a Bioware meteu o pé na argola desta maneira. Era aqui irrelevante se sobreviviam todos ou se Shepard, à semelhança da missão em Virmire no Mass Effect 1, tivesse a dada altura de escolher quem sobreviveria e quem morreria (isto, na verdade, seria excelente) - incluir todos os elementos da equipa actual e os sobreviventes das anteriores teria dado uma maior atmosfera à missão final. Que, sim, é intensa, mas bastante insípida. 

2. Harbinger? Where art thou?
O segundo jogo estabelece Harbinger como o novo grande vilão entre os Reapers depois da queda de Sovereign. Considerando que Shepard abate um em Rannoch e outro na Terra, seria de esperar que houvesse um showdown contra Harbinger. Ao que parece, porém, o responsável pelo jogo, Casey Hudson, julgou que não valia a pena introduzir uma boss fight porque tal seria, e cito literalmente, too videogamey (erm...). A alternativa? Simples: Harbinger aterra e frita todo o esquadrão Hammer - Shepard e companheiros incluídos. Claro que Shepard sobrevive (mal), e há a possibilidade, já na Citadel, de enfrentar um Illusive Man completamente dominado pelos Reapers. Mas isto não significa uma boss fight - apenas uma sequência onde podemos matá-lo ou convencê-lo a estoirar os próprios miolos, como Saren fizera em Mass Effect. Insípido.

3. Olha! O miúdo dos sonhos! Espera lá...
O facto de a manifestação deus ex machina literal do Crucible assumir a forma do míudo que Shepard viu morrer na Terra - e que lhe assaltou os sonhos desde aí - despoletou na comunidade várias teorias - entre estas, a mais interessante explica que o miúdo nunca existiu, sendo apenas uma manifestação da influência dos Reapers (indoctrination) na mente de Shepard. A ideia seria boa, mas parece que não é bem isso - e o miúdo é apenas uma manifestação "familiar" a Shepard, atirada de pára-quedas nos últimos dez minutos da narrativa, para dar ao protagonista três escolhas para o final do jogo. 

4. Com que cor quer fritar a galáxia?
E eis que as três escolhas para o final são apresentadas ao jogador, caídas de pára-quedas naquele momento - destruir os Reapers e toda a "vida sintética" (como os Geth ou a EDI - mesmo que Shepard tenha conseguido reconciliar os Geth e os Quarians), controlar os Reapers e fazê-los ir embora, ou fundir a vida orgânica com a sintética numa nova etapa evolutiva. Isto, claro, sem ter em conta inúmeras escolhas feitas anteriormente, e sem Shepard por um momento questionar o discurso da "Starchild" (que, em termos básicos, se resume a algo do género: "a vida orgânica e a sintética acabam por se massacrar, por isso foi criada uma raça de sintéticos para massacrar os orgânicos a cada cinquenta mil anos) e todas as falácias que este contém. Mais interessante ainda: nas três opções, os Mass Relays são destruídos (o que é interessante, pois sabe-se que a destruição de um Mass Relay provocaria uma explosão da potência de uma supernova, obliterando por completo os sistemas planetários mais próximos), o que para todos os efeitos marca o fim da civilização galáctica. Mais interessante ainda: independentemente da escolha feita pelo jogador, a única diferença é... a cor da explosão do Catalyst - vermelho para o fim dos Reapers, azul para o controlo dos Reapers e verde para a fusão entre vida orgânica e sintética. 

5. Normandy, WTF?
Mas o pior ainda está para vir. Os momentos finais mostram Joker no cockpit da Normandy a tentar escapar à onde de choque do Catalyst - quando era suposto a Normandy estar a combater os Reapers com o resto da frota do Almirante Hackett. OK, o Joker desertou. Pior ainda: a nave despenha-se num planeta aparentemente semelhante à Terra, juntamente com alguns dos membros da equipa de Shepard - que, da última vez que os tínhamos visto, estavam na Terra. Ou seja, Joker não só desertou como também teve tempo de ir à Terra, recolher a malta e pôr-se na alheta assim que percebeu que a história do Catalyst ia dar para o torto. Pior ainda: alguns jogadores indicaram que as personagens que acompanharam Shepard na carga suicida para chegar à Citadel foram vistas depois a sair da Normandy, quando supostamente deviam ter morrido. Ou seja, temos aqui um plothole maior que um Mass Relay.

6. No final, safam-se os Krogan
Independentemente de os Reapers serem destruídos ou controlados, no final desaparecem, e os Mass Relays são destruídos - deixando uma frota de milhares de naves tripuladas por Krogans, Turians, Salarians, Asari e Quarians presa no Sistema Solar, sem qualquer hipótese de regressarem aos seus mundos de origem em tempo útil. Nem no seu máximo a Terra - o único planeta habitável das redondezas - conseguiria suportar tanta gente; devastada pela guerra, muito menos. Sabe-se que Turians e Quarians não podem consumir alimentos humanos, pelo que a coisa iria dar para o torto. Mesmo partindo do princípio que os Quarians, habituados à vida de vagabundos galácticos, conseguiam sobreviver no espaço profundo e, eventualmente, chegar a Rannoch, e que a vida milenar das Asari lhes permitiria regressar um dia a Thessia, parece-me evidente que a aliança construída por Shepard não iria durar muito. Como muitos apontaram em várias discussões pela Internet, o cenário mais provável é que voltaria a haver guerra, e que os Krogan acabariam por comer todos (a começar pelos Salarians, certamente). 

Para artigos melhores e mais detalhados sobre o disparate que é o final de Mass Effect 3, recomendo a leitura deste artigo, nos fóruns da Bioware Social Network, e deste, no Game Front. Os comentários a este artigo no Ars Technica também são muito bons (recomendo também a leitura deste guião alternativo). 

Um último ponto sobre os disparates narrativos de Mass Effect 3, este spoiler-free: a introdução de Javik, o último dos Prothean, num DLC lançado no dia de estreia do jogo é um enorme disparate. Não falamos de uma personagem lateral, como Kasumi ou Zaeed em Mass Effect 2, mas no último elemento vivo da última raça que enfrentou os Reapers (e perdeu). A personagem - à qual tive acesso, pois o DLC From the Ashes estava incluído na edição de coleccionador que comprei - é demasiado importante do ponto de vista narrativo para ser deixada de fora, sendo oferecida apenas a quem compra a edição de coleccionador (o que nem toda a gente consegue) ou a quem está disposto a pagar dez dólares (não sei o preço exacto do DLC em euros) por conteúdos que deviam estar incluídos num jogo que, normalmente, já custa sessenta euros. Esta política não é contudo nova: Mass Effect 2 também incluiu vários DLC importantes, dos quais destaco Lair of the Shadow Broker. Mas nem por isso deixa de ser uma má política. 

Para além disto, colocar o modo multiplayer a contribuir para a Effective Gallactic Readiness do modo individual é um disparate ainda maior que os plot holes do final. Nada contra os modos online multiplayer - quem os quiser jogar, força. Mas que estes contribuam para a narrativa principal é francamente abusivo - pessoalmente, se eu quisesse entreter-me num jogo online multiplayer, não tinha deixado de jogar World of Warcraft. 

De qualquer forma: Mass Effect 3 continua a ser um grande jogo, e a série toda continua a ser excelente. É pena o final do último capítulo, que de facto retira brilho à narrativa, mas os três jogos continuam a ser uma excelente experiência. Resta saber se, perante o tremendo barulho que a comunidade tem feito, a Bioware e a Electronic Arts vão ceder e fazer um final alternativo ou não; e, caso o façam, se a coisa será disponibilizada de borla ou como conteúdos pagos. Bem vistas as coisas, é preferível manterem a cabeça enviada na areia e não mexerem uma palha a lançarem finais e explicações adicionais a pagar. Isso seria, parafraseando uma bela expressão inglesa, somar o insulto à injúria, e não me parece que os jogadores de Mass Effect estejam com disposição para tanto. 

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