Decorreu ontem à noite a primeira sessão do Clube de Leitura do Fantástico na Livraria Bertrand do Chiado (Lisboa). Com moderação do Rogério e Luís Filipe Silva como convidado, a tertúlia acabou por debater menos o seu tema original - Dune, de Frank Herbert - e mais outras questões, nem por isso menos interessantes.
Luís Filipe Silva traçou um breve percurso pessoal pela ficção científica nacional, com os altos e baixos que o género conheceu no país, tanto em termos de produção como em termos editoriais. Falou da importância do conto - formato tão incomum em Portugal, para não dizer desprezado - como um "laboratório" de experiências de estilo e de temas fundamentais à escrita de uma obra de maiores dimensões, passível de desenvolver o género de forma mais sustentada (não por acaso, acrescento, muitos dos grandes autores de ficção científica notabilizaram-se antes de mais por contos notáveis - recordemos, a título de exemplo, Nightfall, de Asimov). Sobre isto, o escritor referiu ainda que actualmente os editores nem sempre protegem os autores, não cultivando e acarinhando o género e os seus leitores.
Com a ficção científica como mote, falou-se do futuro do livro tal como o conhecemos na actual "revolução digital". E aqui gerou-se o debate mais interessante da noite, dividido entre a apologia do ebook e a imortalidade do livro clássico. Para Luís Filipe Silva, o livro convencional manter-se-á enquanto "objecto" - edições elaboradas, com valor para além do mero texto -, enquanto os formatos de consumo e leitura rápida (paperbacks) tenderão a desaparecer e a dar lugar aos livros electrónicos que hoje em dia podem ser lidos em vários dispositivos portáteis. Todavia, referiu que o modelo actual do livro electrónico, que passa por uma emulação da experiência em papel no formato digital (com o "passar de página", por exemplo), é o caminho errado a seguir (nas suas palavras, "uma estupidez"). Em defesa do formato electrónico, o autor sublinhou a liberdade criativa, de forma e de formato que o meio electrónico possibilita. João Barreiros, na assistência, contrapôs com o argumento (e com muito humor, como sempre) de que o livro electrónico representa a destruição da memória do livro, com o meio electrónico a ser vítima de uma eterna substituição (e consequente perda). Luís Filipe Silva, por seu lado, defendeu que o livro electrónico permite aos escritores sair do formato romance e pensar em alternativas às estruturas convencionais.
Antes de se falar de Dune, houve ainda tempo para se falar do estado do país, com uma referência muito interessante, e merecedora de reflexão, da parte do autor convidado: até ao advento da troika, ninguém falava do futuro em Portugal. Definindo Portugal como "um acidente histórico", dada a escassez de recursos, Luís Filipe Silva mencionou que, nos tempos actuais de globalização, podemos estar a assistir ao fim do conceito de Estado-nação enquanto o tal "acidente histórico", e identificou a perda de identidade - e tudo o que isso acarreta - como consequência natural da perda de independência.
Sobre o tema da tertúlia - Dune -, o debate arrancou com uma questão muito interessante da parte de Luís Filipe Silva: escrito hoje, em que género literário se encaixaria esta obra de Frank Herbert? Dada a marginalidade que a tecnologia assume na obra, e considerando que, na sua essência, Dune é uma história familiar, assente nos arquétipos clássicos de império, de dever superior à sobrevivência individual, da importância da família e de manutenção do status quo, uma versão moderna de Dune poderia dispensar os (poucos) elementos de ficção científica e definir-se confortavelmente na fantasia épica.
Houve ainda tempo para se falar de outros elementos interessantes de Dune, como o orientalismo e a estranheza, e para uma breve análise à obra de Frank Herbert - que, para João Barreiros, morreu enquanto autor num processo de autocópia com as várias sequelas de Dune, ainda que tenha para trás algumas obras notáveis.
Findo o (excelente) debate, e com o próximo já agendado - para 13 de Abril, no mesmo local, e com O Livro de Areia de Jorge Luís Borges como tema -, teve lugar a Tertúlia Noite Fantástica, que juntou muitos interessados no Fantástico à mesa de um restaurante indiano ao Largo do Carmo. Independentemente da qualidade do serviço - digna de um restaurante de Ankh-Morpork não fôssemos nós os comensais -, foram algumas horas muito bem passadas, com conversas interessantes sobre o Fantástico, e não só. Para mim, que conheço muito pouca gente dos círculos do Fantástico, foi uma noite extremamente interessante, e sem dúvida a repetir.
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