Em Julho último deu-se o milagre: por dica do Rui (devo-te esta) na última sessão da Oficina de Escrita Criativa Fantástica da Trëma, fui à Gare do Oriente desencantar numa pequena feira do livro aquele que seria porventura um dos pouquíssimos exemplares ainda em circulação de Terrarium: Um romance em mosaicos, obra de João Barreiros e Luís Filipe Silva publicada em 1996 na antiga colecção "azul" da Caminho e regra geral considerada como a grande obra da ficção científica portuguesa. Andava há já algum tempo a tentar conseguir um exemplar - em parte por conhecer os autores, mas sobretudo por saber tratar-se de um livro que, para todos os efeitos, ocupa um lugar de destaque na pequena e dispersa história da ficção científica nacional. Seja pela ambição de criar um épico longo e multifacetado com uma escala impressionante, seja pela colaboração - ao que parece, fenómeno raro por cá - entre dois dos mais consagrados autores do meio, seja até pela forma como dialoga com todo um género artístico, desde as suas raízes populares nas pulps até às suas transposições para o cinema. E o resultado, não sendo infalível, nem por isso deixa de ser extraordinário.
E aquilo que Terrarium tem de mais extraordinário é o seu worldbuilding - um futuro não muito distante, no qual a Terra recebeu enfim a visita de inteligências alienígenas. E o plural é importante: são muitas as raças de extraterrestres que chegam à Terra - das simulatrix aos kreepo, dos volpex aos bonecreiros, e de muitos outros, relevantes ou mencionados apenas de passagem -, mas não vêm nem em paz nem em guerra: vêm para o exílio. Um exílio imposto em circunstâncias misteriosas pelas Potestades, os quase-deuses que, através do Fragmento no planetóide de Ceres, comandam os destinos do melting pot galáctico em que a Terra se tornou; e são essas circunstâncias que vão ser exploradas ao longo dos vários mosaicos que constituem a obra.
Pois o subtítulo não é acidental: Terrarium é, de facto, um romance em mosaicos, com uma estrutura narrativa dividida em vários mosaicos, noveletas e novelas cronologicamente separadas e com pontos de vista distintos. Cada mosaico apresenta outras personagens, outros locais e outros acontecimentos da narrativa mais vasta que emerge da combinação sequencial das várias histórias. E assim, o leitor é convidado a conhecer o vasto anel orbital que rodeia a Terra, um big dumb object formado pela união de milhares de naves alienígenas; a Londres semi-inundada, com pragas exóticas e uma mistura cultural de escala galáctica; várias naves de diferentes raças; uma vila americana e as florestas mexicanas; a Amazónia; um simulacro; e até um paradoxo temporal ramificado em várias alternativas.
E que não restem dúvidas: Terrarium é mesmo um exemplo perfeito da velha máxima que diz ser o todo mais do que a mera soma das suas partes. Retiradas do seu contexto e lidas a título individual, as várias histórias revelam graus diferentes de autonomia; mas juntas como azulejos no painel desenhado por João Barreiros e Luís Filipe Silva ganham uma fulgurante vida própria, formando um conjunto fascinante. Sobretudo no início, mais conciso e refinado: O segredo, conto que funciona como prólogo, atira o leitor para um dos enigmas recorrentes da narrativa - e, com a melhor prosa de todo o livro, segue Abdul, o rapaz cego que vive no orbital e que encontra um tesouro de valor incalculável; e A arder caíram os anjos, o verdadeiro início, é uma história de acção de ritmo elevado com uma abertura soberba; a manifestação de Ariel em Londres é uma das mais memoráveis passagens de todo o livro. Somewhere, under the rainbow introduz Clara de Sousa e uma oferta irrecusável - que, como todas as ofertas irrecusáveis, terá consequências imprevisíveis, com um alcance muito mais vasto do que os limites do seu ponto de vista. A agonia da arte reprimida introduz um convidado muito peculiar, duas crianças de espécies diferentes unidas por um costume de uma delas, e uma tecnologia procurada por toda a gente, no planeta ou em órbita - e A madrugada dos deuses introduz o desenlace dessa aventura, abrindo caminho para o último capítulo, No coração da luz, que posiciona com rigor as várias peças - leia-se, personagens - no vasto tabuleiro deste épico, preparando os eventos não para um final mas para três alternativas finais.
Este mosaico encontra-se muito bem temperado por dois dos mais distintivos traços de Terrarium. O primeiro é a mistura espantosa de elementos de vários tipos e de vários géneros de ficção científica (do cyberpunk à space opera, dos simulacros ao jeito de Philip K. Dick a um certo tom pós-apocalíptico). Quase como reflexo da variedade das raças alienígenas exiladas no nosso planeta, os autores misturam inteligências artificiais com agendas próprias, armas do fim do mundo, biotecnologia, pseudodivindades, conspirações em tom quase noir com acção digna de um blockbuster - e tudo isto num épico (o termo não é desproporcionado) de proporções galácticas. O surpreendente: a mistura funciona, e dá a todo este universo ficcional um maior grau de verosimilhança. O segundo traço é o carácter manifestamente meta de Terrarium - a unir os vários elementos do enredo está um sem-número de referências, umas óbvias e outras porventura obscuras, à ficção científica enquanto género literário (das suas origens nas pulps), e mesmo à cultura popular em termos mais abrangentes, com o cinema a merecer um generoso destaque (julgo - decerto não terei detectado metade). Algumas das referências são utilizadas para fins humorísticos, com relativo sucesso; como fã de 2001: A Space Odyssey, não pude deixar de soltar uma sonora gargalhada quando me deparei com a seguinte passagem:
(...) Imagina só, se em vez de uma esfera tivéssemos usado um monólito, os direitos de autor que não teríamos recebido!
Este diálogo constante com as raízes e os ícones da ficção científica, e também com a cultura popular, pode porém revelar-se um pau de dois bicos e expor uma potencial fraqueza do romance: se por um lado enriquece a obra e dá aos leitores mais experimentados do género uma segunda camada referencial, por outro poderá torná-la demasiado hermética a leitores menos conhecedores da tradição literária onde Terrarium se insere.
Mais problemáticos poderão ser alguns aspectos menos conseguidos relacionados com a prosa. Em termos gerais, a escrita "a dois" revela-se sólida - em alguns momentos, sobretudo nas duas primeiras histórias, está bastante acima da média; e consegue, ao longo de todo o livro, conjurar imagens de grande força (Terrarium tem uma forte componente visual) e introduzir bastantes infodumps de forma algo ligeira, por vezes irónica, quase sempre bem humorada - mesmo nos momentos mais sombrios do texto (se bem que, enfim, infodumps sejam infodumps). No entanto, cai em algumas repetições irritantes (juro: ainda nem ia a metade da leitura e já não podia ler a expressão "com o máximo de prejuízo"); e nem sempre consegue ser eficaz a individualizar as muitas personagens que figuram nos vários mosaicos. O resultado é a ausência de uma voz própria, única e individual e várias personagens fundamentais - nota-se em demasia a voz dos autores*, o que acaba por retirar a força a algumas personagens (Clara de Sousa, Joel e Todd são disso exemplo; Roy Baker será talvez a excepção, ainda que não de forma consistente). A ambição dos autores neste épico de quase 600 páginas - é o maior livro de ficção científica portuguesa, título que deverá manter por muito tempo - também pode funcionar contra a história que estão a contar. O prólogo e o primeiro mosaico possuem um ritmo muito bom que não é reproduzido no resto da obra - e talvez as partes subsequentes tivessem beneficiado de uma edição mais aprofundada que lhes limasse as arestas e as carregasse com a mesma energia do início.
Mas a ambição, reconheça-se, está muito longe de ser um aspecto negativo - João Barreiros e Luís Filipe Silva propuseram-se compor um épico de ficção científica na melhor tradição do género, e mesmo que alguns dos seus elementos não estejam elevados ao seu expoente máximo, nem por isso diminuem a experiência de leitura. E essa, para os fãs de ficção científica, é soberba, diversificada e muito recompensadora. O mundo secundário de Terrarium é a todos os níveis excepcional, de uma riqueza conceptual e referencial rara; não fica de todo atrás de muito clássicos do género da melhor tradição anglo-saxónica; e a forma como os dois autores desenvolvem uma trama intricada e ramificada em várias histórias interligadas que forma um quadro maior, unindo todas as pontas soltas com perícia (os finais alternativos, longe de serem um cop-out, são uma forma elegante - e também referencial - de brincar com a tradição dos paradoxos); e, pesem embora as fraquezas de algumas personagens, as suas aventuras particulares são envolventes, e a forma como se conjugam nesta manta de retalhos em forma de romance é superlativa.
Que Terrarium nunca tenha sido traduzido e publicado nos mercados internacionais, como merecia, é uma das muitas tragédias da ficção científica portuguesa - sinal de uma tremenda falta de visão da parte do mercado editorial do género, mesmo na época em que ainda existiam colecções com publicação regular. Tal falta de visão tornou este livro, em simultâneo e não sem ironia, na obra seminal da ficção científica portuguesa e no seu "canto do cisne" (a expressão, muito apropriada, é do Rogério Ribeiro). Não houve, antes ou depois de Terrarium, algum romance de ficção científica em Portugal capaz de o desafiar - e o género, já de si frágil, cedeu e desapareceu para parte incerta (a destruição aparente dos exemplares em stock na editora, há poucos anos, atesta a falta de visão e confirma o declínio). Mas mesmo num mercado literário como o nacional, pouco dado a experimentalismos e a géneros, e com uma escassa e irregular tradição de ficção científica, foi publicada uma obra com a ambição, o arrojo e a ousadia de Terrarium. E isso será sempre louvável.
* Note-se que esta sensação pode muito bem dever-se ao facto de eu conhecer pessoalmente ambos os autores.
4 comentários:
Boas, joão!
Sabes se ainda existem mais exemplares na feira?
Abraço.
Viva.
A dica do Rui foi em... Julho, a dizer-me que tinha visto dois exemplares na feira do livro do Oriente (isto é quase como os avistamentos do Big Foot). Quando lá fui, só já havia um - em muito bom estado, que repousa agora ali na estante.
Talvez valha a pena dar uma volta pelas feiras do livro das estações de metro (Cais do Sodré, Entrecampos, Oriente... e mais alguma que me esteja a escapar). Havia lá vários da colecção "azul". Pode ser que se encontrem mais noutras.
Abraço.
Gostaste, claro... Ainda bem que ainda encontraste o livro!
A forma como acaba deixou-me completamente KO. E o wordbuilding é de facto fantaśtico... Personagem favorita?
O Roy Baker, por me ter parecido a mais consistente (e com a história mais interessante). A Clara de Sousa e o Joel têm alguns problemas na sua construção e nas suas vozes individuais... e a história lateral do Todd, sendo fascinante na sua construção de simulacro quase ao estilo de PKD, acaba por ser demasiado lateral.
Mas o worldbuilding, caramba. Li muito poucos livros de FC anglo-saxófona com mais ambição, alcance e detalhe no mundo secundário que criam. É o "Hyperion" lusitano (e considerando que a obra-prima do Dan Simmons é o meu livro de FC preferido... isto é mesmo um elogio).
Obrigado pela dica! Devo-te mesmo esta!
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