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9 de maio de 2014

Ficção curta em português (2): Três contos de Luís Filipe Silva

Na ficção científica em português, o nome de Luís Filipe Silva merece destaque - tanto no romance como na ficção curta, como até na sua breve mas relevante actividade como antologista (recordemos Os Anos de Ouro da Pulp Fiction). No que ao romance diz respeito, publicou em 1993 o díptico A Galxmente, composto por Cidade da Carne e Vinganças; e, em 1996, colaborou com João Barreiros na criação daquele que será sem dúvida um dos mais importantes romances que o género já conheceu em língua portuguesa: Terrarium: Um romance em mosaicos. Mas Luís Filipe Silva tem uma obra igualmente relevante na ficção curta, dispersa por antologias, fanzines, publicações online e outros suportes - para além, claro, da sua própria antologia, O Futuro à Janela, vencedora do Prémio Editorial Caminho de Ficção Científica em 1991. Hoje, recupero aqui no Andrómeda três contos dispersos de Luís Filipe Silva:

A Recordação Imóvel é um conto muito curto publicado na antologia Inconsequências na Periferia do Império (ed. André Vilares Morgado), de 1996, que impressiona pela capacidade que o autor tem de, em tão poucas palavras, construir um universo ficcional interessante e emotivo. Num futuro pós-apocalíptico indefinido, a Humanidade que resta se debate contra a fúria dos elementos descontrolados - em especial de um vento "mortífero vindo de norte". Todo o conto é, na prática, a descrição da sobrevivência de um grupo de humanos num abrigo durante a passagem desse vento -  as acções e reacções, a expectativa, as reparações, a tentativa de adiar por tempo indeterminado a tragédia. E é dessa descrição que emerge o drama pessoal do protagonista, nunca nomeado - com um momento especialmente evocativo no final, quando contempla o que o vento deixou à superfície. A Recordação Imóvel pode ser lido aqui.

No Coração do Deserto é um conto publicado pela primeira vez no fanzine brasileiro Somnium nº 62 (1995) e republicado em 2001 no webzine E-nigma Light (ed. Jorge Candeias). Como o próprio Luís Filipe Silva assume numa breve nota de autor à reedição de 2001, este conto "existe mais como estudo [do mundo árabe] do que como produto acabado. Isso nota-se, é certo; mas nem por isso retira o interesse a esta interessante peça de ficção científica ecológica que reflecte sobre diferenças culturais, políticas e ecológicas ao colocar uma delegação de representantes de uma União Europeia futura em visita diplomática ao Sahara argelino, devastado pelo desaparecimento do petróleo que durante tanto tempo animou a economia local e pelas alterações climáticas que empurram os locais para a miséria. Pelo meio, Luís Filipe Silva apresenta um mundo fragmentado em blocos geopolíticos, uma reflexão ambiental porventura mais pertinente hoje do que em 1995 e uma ideia que talvez merecesse ser alargada e trabalhada noutros contos, ou mesmo num formato mais longo. E, num acesso de nostalgia para o leitor contemporâneo, recupera a célebre designação ecu para a moeda única europeia (a gargalhada, admita-se, é difícil de suprimir). 

The Rodney King Global Mass Media Artwork foi publicado na antologia Efeitos Secundários, de 1997 (ed. Maria Augusta e António de Macedo) e tem como premissa uma extrapolação das consequências do incidente de Rodney King em 1991 que levaria aos motins de Los Angeles no ano seguinte. Em simultâneo uma reflexão sobre a irracionalidade dos conflitos racionais e sobre o poder subversivo da publicidade e dos meios de comunicação social, este conto imagina o desencadear de uma nova crise política e social por via de uma série de mensagens enigmáticas que aparecem, sem como nem porquê, em billboards espalhados por toda a cidade; e essas mensagens, que constituem primeiro uma pergunta incómoda, depois um aviso e, por fim, um apelo à luta - que irrompe por fim. O mistério das mensagens é explicado sem ser esclarecido (e a ideia, num contexto de propaganda como meio de guerra, tem imenso potencial), e o conto vai aflorando com eficácia a sua mensagem - enfraquecendo porém na última parte, explicada pelo testemunho de um sobrevivente do estado de sítio em Los Angeles (diminuído pela alusão nazi - é sempre forte, mas já nos anos 90 estava demasiado batida) e pelo fragmento do discurso do Presidente, numa espécie de Marshal McLuhan meets John Galt (no tom, não na ideologia). Mas o último parágrafo é de uma ironia magnífica e cristalina, e eleva o conto bem acima das suas fraquezas. The Rodney King Global Mass Media Artwork encontra-se disponível aqui para leitura online. 

29 de dezembro de 2013

2013 em retrospectiva (4): Os melhores livros de ficção científica

Será talvez difícil pensar noutra antologia tão importante para a ficção científica como Dangerous Visions, a ambiciosa e revolucionária colectânea de dezenas de contos de alguns dos mais consagrados autores que o género conhecia em 1967 – assim como algumas estrelas em ascensão e até mesmo escritores de outros temas e géneros. Ao leme do projecto esteve o inevitável Harlan Ellison – enfant terrible da ficção científica, contista exímio, antologista delirante. As suas introduções aos autores deram um cunho invulgarmente pessoal à antologia; os contos, esses, foram naquela época uma demonstração perfeita não daquilo que a ficção científica fora até ali, mas daquilo que ela poderia ser a partir dali. Com autores tão distintos como Lester Del Rey, Frederik Pohl, Robert Silverberg, Roger Zelazny, Samuel R. Delany, J. G. Ballard, John Brunner, Philip K. Dick, Poul Anderson, Larry Niven, Philip José Farmer, Miriam Allen deFord, Brian Aldiss, Norman Spinrad, Sonya Dorman, John Sladek, Keith Lauder, Theodore Sturgeon, Damon Knight ou Carol Emshwiller, entre outros, Dangerous Visions tornou-se no baluarte da “New Wave” norte-americana, mostrando as infinitas possibilidades da ficção científica e chocando os círculos tradicionalmente conservadores do género com o seu carácter experimentalista e o seu arrojo narrativo, estilístico e temático. 45 anos volvidos sobre a sua publicação original, parte do seu shock value ter-se-á sem dúvida perdido – mas a qualidade dos seus textos, essa, continua intocada. 

O magnum opus da ficção científica nacional – lusófona? – data de 1996, e resultou da combinação de dois dos maiores talentos que o género conheceu na língua portuguesa: João Barreiros e Luís Filipe Silva. O resultado não serve para introdução à ficção científica – exige uma leitura atenta, e um leitor mais experimentado nas convenções e nos temas do género. Mas para esses, Terrarium é um tesouro: um vasto romance fragmentado e meta-referencial numa Terra futura na qual a Humanidade partilha o planeta, de forma um tanto ou quanto forçada, com um sem-número de raças alienígenas, exiladas na superfície e no vasto anel orbital composto pelas suas frotas destruídas – e com as enigmáticas Potestades, sempre vigilantes, a impor a coexistência. Num mundo onde as antigas revistas pulp e de comics são relíquias de valor incalculável, várias personagens aparentemente improváveis vão ver os seus destinos cruzarem-se num jogo de poder que, estando viciado à partida, não tem vencedor definido. Poderemos sempre lamentar a falta de desenvolvimento que a ficção científica conheceu, e conhece ainda, no nosso país; mas não deixa de impressionar que um género tão pouco cultivado tenha sido capaz de produzir um romance deste calibre: ambicioso, complexo e extremamente recompensador. 

O britânico M. John Harrison considera esta sua space opera de 1975 a pior coisa que já escreveu na vida. Após lê-la, será talvez inevitável pensar quão boa será a sua obra subsequente, se The Centauri Device já se revela num romance a todos os níveis impressionantes. A prosa magnética e delirante de Harrison começa nos primeiros capítulos a dar forma àquilo que parece ser uma combinação talvez improvável entre a space opera e os policiais noir; mas Harrison cedo começa a desconstruir temas, ideias e convenções para dar forma a um texto revolucionário e influente, de uma riqueza conceptual impressionante e de um fascínio inegável, repleto de imagens que perdurarão na memória dos leitores – da “mais longa festa do Universo” aos fanáticos religiosos do culto dos “Openers”. Um clássico soturno, com um certo tom pessimista e nihilista que se tornaria recorrente uma década mais tarde no advento do cyberpunk

Escrever um romance como Desolation Road não é para todos – e mais impressiona ao saber que foi o primeiro livro escrito por Ian McDonald. Situado num Marte futuro terraformado, e indo beber tanto às crónicas melancólicas de Bradbury como à hard science fiction e ao realismo mágico sul-americano do qual Garcia Marquez é um dos expoentes máximos, McDoland cria um vasto mosaico de histórias individuais de pessoas diferentes – de cientistas a revolucionários, de aviadores a vagabundos, de famílias rivais a aventureiros. E o que toda esta gente tem em comum é Desolation Road – uma aldeia na orla de um vasto e rubro deserto, fundada pelo mais improvável dos acasos por um cientista solitário e na qual parou, durante os anos que se seguiram, todo o tipo de pessoas. Desolation Road segue todas essas personalidades para aquele ponto, e para fora dele, e para dentro dele novamente – e traça uma vasta crónica sobre como um lugar tão insignificante conseguiu ser tão decisivo para os destinos de um planeta inteiro. É um romance com um ritmo intenso, um tom atravessado de melancolia, e mais episódios mirabolantes do que seria sensato descrever por aqui – e um texto único na ficção científica. 

18 de outubro de 2013

A Terra enquanto Terrarium: O épico em mosaicos de João Barreiros e Luís Filipe Silva

Em Julho último deu-se o milagre: por dica do Rui (devo-te esta) na última sessão da Oficina de Escrita Criativa Fantástica da Trëma, fui à Gare do Oriente desencantar numa pequena feira do livro aquele que seria porventura um dos pouquíssimos exemplares ainda em circulação de Terrarium: Um romance em mosaicos, obra de João Barreiros e Luís Filipe Silva publicada em 1996 na antiga colecção "azul" da Caminho e regra geral considerada como a grande obra da ficção científica portuguesa. Andava há já algum tempo a tentar conseguir um exemplar - em parte por conhecer os autores, mas sobretudo por saber tratar-se de um livro que, para todos os efeitos, ocupa um lugar de destaque na pequena e dispersa história da ficção científica nacional. Seja pela ambição de criar um épico longo e multifacetado com uma escala impressionante, seja pela colaboração - ao que parece, fenómeno raro por cá - entre dois dos mais consagrados autores do meio, seja até pela forma como dialoga com todo um género artístico, desde as suas raízes populares nas pulps até às suas transposições para o cinema. E o resultado, não sendo infalível, nem por isso deixa de ser extraordinário.

E aquilo que Terrarium tem de mais extraordinário é o seu worldbuilding - um futuro não muito distante, no qual a Terra recebeu enfim a visita de inteligências alienígenas. E o plural é importante: são muitas as raças de extraterrestres que chegam à Terra - das simulatrix aos kreepo, dos volpex aos bonecreiros, e de muitos outros, relevantes ou mencionados apenas de passagem -, mas não vêm nem em paz nem em guerra: vêm para o exílio. Um exílio imposto em circunstâncias misteriosas pelas Potestades, os quase-deuses que, através do Fragmento no planetóide de Ceres, comandam os destinos do melting pot galáctico em que a Terra se tornou; e são essas circunstâncias que vão ser exploradas ao longo dos vários mosaicos que constituem a obra.

Pois o subtítulo não é acidental: Terrarium é, de facto, um romance em mosaicos, com uma estrutura narrativa dividida em vários mosaicos, noveletas e novelas cronologicamente separadas e com pontos de vista distintos. Cada mosaico apresenta outras personagens, outros locais e outros acontecimentos da narrativa mais vasta que emerge da combinação sequencial das várias histórias. E assim, o leitor é convidado a conhecer o vasto anel orbital que rodeia a Terra, um big dumb object formado pela união de milhares de naves alienígenas; a Londres semi-inundada, com pragas exóticas e uma mistura cultural de escala galáctica; várias naves de diferentes raças; uma vila americana e as florestas mexicanas; a Amazónia; um simulacro; e até um paradoxo temporal ramificado em várias alternativas. 

E que não restem dúvidas: Terrarium é mesmo um exemplo perfeito da velha máxima que diz ser o todo mais do que a mera soma das suas partes. Retiradas do seu contexto e lidas a título individual, as várias histórias revelam graus diferentes de autonomia; mas juntas como azulejos no painel desenhado por João Barreiros e Luís Filipe Silva ganham uma fulgurante vida própria, formando um conjunto fascinante. Sobretudo no início, mais conciso e refinado: O segredo, conto que funciona como prólogo, atira o leitor para um dos enigmas recorrentes da narrativa - e, com a melhor prosa de todo o livro, segue Abdul, o rapaz cego que vive no orbital e que encontra um tesouro de valor incalculável; e A arder caíram os anjos, o verdadeiro início, é uma história de acção de ritmo elevado com uma abertura soberba; a manifestação de Ariel em Londres é uma das mais memoráveis passagens de todo o livro. Somewhere, under the rainbow introduz Clara de Sousa e uma oferta irrecusável - que, como todas as ofertas irrecusáveis, terá consequências imprevisíveis, com um alcance muito mais vasto do que os limites do seu ponto de vista. A agonia da arte reprimida introduz um convidado muito peculiar, duas crianças de espécies diferentes unidas por um costume de uma delas, e uma tecnologia procurada por toda a gente, no planeta ou em órbita - e A madrugada dos deuses introduz o desenlace dessa aventura, abrindo caminho para o último capítulo, No coração da luz, que posiciona com rigor as várias peças - leia-se, personagens - no vasto tabuleiro deste épico, preparando os eventos não para um final mas para três alternativas finais. 

Este mosaico encontra-se muito bem temperado por dois dos mais distintivos traços de Terrarium. O primeiro é a mistura espantosa de elementos de vários tipos e de vários géneros de ficção científica (do cyberpunk à space opera, dos simulacros ao jeito de Philip K. Dick a um certo tom pós-apocalíptico). Quase como reflexo da variedade das raças alienígenas exiladas no nosso planeta, os autores misturam inteligências artificiais com agendas próprias, armas do fim do mundo, biotecnologia, pseudodivindades, conspirações em tom quase noir com acção digna de um blockbuster - e tudo isto num épico (o termo não é desproporcionado) de proporções galácticas. O surpreendente: a mistura funciona, e dá a todo este universo ficcional um maior grau de verosimilhança. O segundo traço é o carácter manifestamente meta de Terrarium - a unir os vários elementos do enredo está um sem-número de referências, umas óbvias e outras porventura obscuras, à ficção científica enquanto género literário (das suas origens nas pulps), e mesmo à cultura popular em termos mais abrangentes, com o cinema a merecer um generoso destaque (julgo - decerto não terei detectado metade). Algumas das referências são utilizadas para fins humorísticos, com relativo sucesso; como fã de 2001: A Space Odyssey, não pude deixar de soltar uma sonora gargalhada quando me deparei com a seguinte passagem:
(...) Imagina só, se em vez de uma esfera tivéssemos usado um monólito, os direitos de autor que não teríamos recebido!
Este diálogo constante com as raízes e os ícones da ficção científica, e também com a cultura popular, pode porém revelar-se um pau de dois bicos e expor uma potencial fraqueza do romance: se por um lado enriquece a obra e dá aos leitores mais experimentados do género uma segunda camada referencial, por outro poderá torná-la demasiado hermética a leitores menos conhecedores da tradição literária onde Terrarium se insere.

Mais problemáticos poderão ser alguns aspectos menos conseguidos relacionados com a prosa. Em termos gerais, a escrita "a dois" revela-se sólida - em alguns momentos, sobretudo nas duas primeiras histórias, está bastante acima da média; e consegue, ao longo de todo o livro, conjurar imagens de grande força (Terrarium tem uma forte componente visual) e introduzir bastantes infodumps de forma algo ligeira, por vezes irónica, quase sempre bem humorada - mesmo nos momentos mais sombrios do texto (se bem que, enfim, infodumps sejam infodumps). No entanto, cai em algumas repetições irritantes (juro: ainda nem ia a metade da leitura e já não podia ler a expressão "com o máximo de prejuízo"); e nem sempre consegue ser eficaz a individualizar as muitas personagens que figuram nos vários mosaicos. O resultado é a ausência de uma voz própria, única e individual e várias personagens fundamentais - nota-se em demasia a voz dos autores*, o que acaba por retirar a força a algumas personagens (Clara de Sousa, Joel e Todd são disso exemplo; Roy Baker será talvez a excepção, ainda que não de forma consistente). A ambição dos autores neste épico de quase 600 páginas - é o maior livro de ficção científica portuguesa, título que deverá manter por muito tempo - também pode funcionar contra a história que estão a contar. O prólogo e o primeiro mosaico possuem um ritmo muito bom que não é reproduzido no resto da obra - e talvez as partes subsequentes tivessem beneficiado de uma edição mais aprofundada que lhes limasse as arestas e as carregasse com a mesma energia do início.

Mas a ambição, reconheça-se, está muito longe de ser um aspecto negativo - João Barreiros e Luís Filipe Silva propuseram-se compor um épico de ficção científica na melhor tradição do género, e mesmo que alguns dos seus elementos não estejam elevados ao seu expoente máximo, nem por isso diminuem a experiência de leitura. E essa, para os fãs de ficção científica, é soberba, diversificada e muito recompensadora. O mundo secundário de Terrarium é a todos os níveis excepcional, de uma riqueza conceptual e referencial rara; não fica de todo atrás de muito clássicos do género da melhor tradição anglo-saxónica; e a forma como os dois autores desenvolvem uma trama intricada e ramificada em várias histórias interligadas que forma um quadro maior, unindo todas as pontas soltas com perícia (os finais alternativos, longe de serem um cop-out, são uma forma elegante - e também referencial - de brincar com a tradição dos paradoxos); e, pesem embora as fraquezas de algumas personagens, as suas aventuras particulares são envolventes, e a forma como se conjugam nesta manta de retalhos em forma de romance é superlativa. 

Que Terrarium nunca tenha sido traduzido e publicado nos mercados internacionais, como merecia, é uma das muitas tragédias da ficção científica portuguesa - sinal de uma tremenda falta de visão da parte do mercado editorial do género, mesmo na época em que ainda existiam colecções com publicação regular. Tal falta de visão tornou este livro, em simultâneo e não sem ironia, na obra seminal da ficção científica portuguesa e no seu "canto do cisne" (a expressão, muito apropriada, é do Rogério Ribeiro). Não houve, antes ou depois de Terrarium, algum romance de ficção científica em Portugal capaz de o desafiar - e o género, já de si frágil, cedeu e desapareceu para parte incerta (a destruição aparente dos exemplares em stock na editora, há poucos anos, atesta a falta de visão e confirma o declínio). Mas mesmo num mercado literário como o nacional, pouco dado a experimentalismos e a géneros, e com uma escassa e irregular tradição de ficção científica, foi publicada uma obra com a ambição, o arrojo e a ousadia de Terrarium. E isso será sempre louvável. 

* Note-se que esta sensação pode muito bem dever-se ao facto de eu conhecer pessoalmente ambos os autores. 

26 de novembro de 2012

Fórum Fantástico 2012: Dia 3

Chegou ontem ao fim mais uma edição do Fórum Fantástico - e despediu-se com um dia a todos os níveis fantástico, que começou logo pela manhã com a segunda parte do Workshop de Escrita Criativa Fantástica Trëma, que hoje contou com Luís Filipe Silva, Mário de Freitas e Dan Wells. No seguimento da sessão de Sábado, Luís Filipe Silva abriu o workshop com alguns dos principais obstáculos que os aspirantes a escritores enfrentam - como julgar que se escreve até se escrever de facto, ou a apatia ("o grande inimigo do escritor"), a importância da opinião e da personalidade própria da escrita, e as expectativas que os autores devem quebrar - as dos leitores e as suas próprias, e não as de género. Mário de Freitas, da Kingpin, falou sobre as expectativas dos candidatos a autores, sobre as mudanças introduzidas pela impressão digital no mercado, na importância da qualidade e no papel de eventos e prémios para a divulgação. Já Dan Wells centrou a sua apresentação na investigação necessária à escrita de ficção, sublinhando quão fundamental é a pesquisa para o trabalho de escrita. Esta pesquisa pode ser feita através de dois tipos de fontes: directas, quando o autor experiência ele mesmo algo, ou quando chega à fala com alguém que o fez; e indirectas, quando o autor não tem acesso directo à fonte e tem de recorrer a métodos indirectos de pesquisa, como imagens, artigos ou livros. Contudo, reafirma que por vezes o estilo é mais importante que o rigor, e que a qualidade de uma obra não se avalia apenas pelo rigor ou pela qualidade da escrita - mas também, e porventura sobretudo, pela capacidade de despertar emoções nos leitores e de prendê-los à narrativa. Concluiu reafirmando que o mais importante é contar uma boa história.

A parte da tarde começou com uma curiosa apresentação de Luís Filipe Silva sobre a história da ficção científica portuguesa, a partir de uma investigação que está actualmente a desenvolver. Traçando a origem da ficção científica nacional em textos especulativos de finais do século XIX (O Que Há-de Ser o Mundo no Ano 3000, de Suppico de Moraes, em 1895) e inícios do século XX (Lisboa no Ano 2000, de Melo de Matos, em 1906), avaliou a capacidade premonitória dos autores da ficção científica das primeiras décadas do século XX, que anteciparam acontecimentos relevantes e invenções que marcariam os anos que se seguiriam. Encontra-se também em alguns dos textos apresentados uma forte componente panfletária e doutrinária, mas desconhece-se o seu verdadeiro impacto na sociedade, ou a forma como recebidos na imprensa e nos círculos intelectuais (se foram de facto recebidos, claro).

Na apresentação que se seguiu, o professor Jorge Martins Rosa apresentou o livro Cibercultura e Ficção, resultado de uma investigação que procura compreender o discurso da cibercultura nas suas várias formas. Esta investigação já esteve anteriormente no Fórum Fantástico, na edição de 2010, e foi agora apresentada na sua forma completa por Jorge Martins Rosa, Artur Alves e Daniel Cardoso, que contribuíram para este trabalho com ensaios próprios em várias temáticas. No painel seguinte, sobre "Ficções Além-Género", João Morales conversou com os escritores Afonso Cruz e Pedro Guilherme-Moreira sobre as aproximações ao universo do Fantástico nas suas obras literárias.

Como tem sido habitual nos últimos anos, a banda desenhada assumiu o protagonismo na recta final do Fórum Fantástico, com João Lameiras a moderar um interessante painel com Jorge Oliveira, Nuno Duarte e Joana Afonso. Autor de Thermidor 1929, um projecto pessoal que tem desenvolvido desde 2008, Jorge Oliveira explicou a concepção daquele universo fantástico fortemente ancorado em factos, personagens e localizações reais para explorar o tema das viagens no tempo. Já Nuno Duarte e Joana Afonso falaram sobre O Baile, um original álbum de banda desenhada que coloca zombies numa aldeia costeira em pleno Estado Novo. Nuno Duarte é já conhecido no meio da banda desenhada nacional com A Fórmula da Felicidade, e para esta aventura juntou-se a Joana Afonso, vencedora do concurso do Amadora BD de 2011, que deu uma abordagem muito peculiar aos zombies" marítimos" e àquela macabra  narrativa. 

O tema dos super-heróis nacional foi o pretexto para juntar, num animado debate, José de Matos-Cruz, Daniel Maia, Nuno Amado e Luís Filipe Silva. Nuno Amado falou sobre o regresso de Zakarella, heroína clássica da BD portuguesa, num projecto que começou há alguns anos por nostalgia e que acabou na recuperação da personagem. José Matos Cruz apresentou o projecto O Infante de Portugal, que começou como uma pequena história para dar origem a um projecto mais vasto, com o objectivo de criar uma segunda realidade portuguesa num retrato algo irónico da realidade portuguesa que conhecemos. Daniel Maia é um dos ilustradores deste projecto, com o seu contributo pessoal a notar-se sobretudo nas narrativas em flashback. Luís Filipe Silva, por seu lado, foi buscar a antologia que organizou sobre Pulp Fiction para ilustrar uma história popular simulada, que se assume como verídica apesar de não o ser. 

Fiel à tradição de terminar com a exibição de uma curta, o Fórum Fantástico encerrou com a primeira parte do episódio piloto de Capitão Falcão, uma série televisiva de João Leitão (que por motivos familiares não pode estar presente no Fórum) que acompanha um peculiar e hilariante super-herói e o seu sidekick - Capitão Falcão e o Puto Perdiz - na sua defesa dedicada, intransigente e completamente tresloucada do Estado Novo e de Salazar. Para o ano, espera-se, haverá nova edição.

Ao longo dos próximos dias, publicarei no blogue mais algum material relativo ao Fórum Fantástico 2012: a lista completa de recomendações deixadas por mim, pelo João Barreiros e pelo Artur Coelho na nossa sessão de Sábado, e uma entrevista com Dan Wells. 

17 de agosto de 2012

O Futuro à Janela

Quis a sorte que a minha primeira leitura de ficção científica portuguesa fosse O Futuro à Janela (1991), de Luís Filipe Silva. Aqui, a palavra "sorte" revela-se particularmente adequada, dado o acaso que me levou a encontrar este livro, perdido entre centenas de volumes num alfarrabista de Lisboa. A antiga colecção de ficção científica da Caminho foi, como se sabe, extinta (e consta que literalmente destruída), pelo que encontrar alguns títulos daquele tempo não muito distante se pode revelar algo difícil. Neste caso concreto, O Futuro à Janela pode ser lido em formato digital aqui (recomendo a quem não conseguir uma edição em papel), com um prefácio do autor exclusivo para a versão digital. Este prefácio é muito interessante na sua recordação de um outro tempo no qual se escrevia ficção científica em Portugal, apesar das dificuldades que o género sempre enfrentou.

Distinguido com o Prémio Caminho de Ficção Científica no ano da sua publicação, O Futuro à Janela é uma compilação de vários contos, apresentados de forma muito apropriada pela introdução "A Importância do Conto", que destaca a relevância e as principais vantagens deste formato tão ignorado no nosso país (e ao qual, admito, não tenho dado a devida atenção). Seguem-se onze contos (e um poema), todos bastante diferentes na forma e no tom. Como acontece em qualquer compilação ou antologia de ficção curta, os vários contos que compõem este livro não são uniformes na qualidade ou na impressão que deixam; diria, contudo, que em termos gerais introduzem conceitos muito interessantes, e gostaria muito de ver algumas ideias e premissas apresentadas num formato mais alargado (há material para isso). O Futuro à Janela revelou-se um excelente primeiro (mas não último) contacto com a ficção científica nacional. Mais do que isso, reforça a ideia de que todos ficámos a perder com a fraca prevalência do género na literatura portuguesa - que não terá certamente sido por falta de potencial.  

De forma sucinta, tentarei falar um pouco sobre cada um deles, pela ordem com que aparecem no livro.

"Dois estranhos, um destino" 
Este é um dos contos que gostaria de ver expandido para um romance de grande dimensão e alcance, dada a força da premissa sobre a qual constrói a sua narrativa. A história começa com Dom Henrique (o Navegador) a bronzear-se (mesmo), num futuro no qual é possível viajar no tempo e recuperar personalidades de pessoas há muito desaparecidas para as introduzir num clone perfeito. Foi exactamente isso que aconteceu ao Infante, que se prepara para conhecer o rei D. João II, trazido para o futuro pelo mesmo processo que o recuperou. A passagem inicial com D. Henrique rodeado por tecnologia impossível no seu tempo é excepcional pelo contraste, e a conversa que se segue com o rei faz querer ler mais sobre tão improváveis personagens em tão improvável tempo (fica a sugestão).

"Embaixadores da boa vontade, ou Contacto!" 
Numa palavra: hilariante. O tema do contacto com alienígenas que chegam à Terra - raramente com boas intenções - é bastante comum na ficção científica, mas é raro tal contacto ser feito, não com as grandes figuras políticas da época ou com um qualquer herói acidental, mas com as mais banais pessoas. Aprendi, entre outras coisas, que um rolo da massa pode ser bem mais perigoso que uma sofisticada arma laser

"Os poetas da rua"
Não é um conto, mas uma série de contos reduzidos e fragmentados, cada um com um protagonista sobre o qual se centra a história. Algumas premissas são interessantes (a de "Mister Machine", sobretudo), mas no geral estas micro-histórias não me cativaram, talvez pelo formato demasiado curto, talvez pelo afastamento de muitas delas da ficção científica.

"La Nausée II"
Um conto algo sombrio sobre a viragem do milénio, que em 1991 ainda era futuro e alvo de muitas especulações. Com o formato de um diário do protagonista, em contagem decrescente para o ano 2000, este conto retrata de forma muito interessante o sentimento de expectativa que viria a marcar os últimos anos do milénio que findou, e a vaga desilusão que se instalou após as doze badaladas. No fundo, nada muda. 

"O Fernando Pessoa electrónico"
Neste conto, Luís Filipe Silva regressa ao tema da recuperação de figuras históricas, mas desta vez em formato virtual. Como o título indica, a personagem recuperada foi a de Fernando Pessoa, e nesta curta narrativa a personalidade virtual do poeta é confrontada - pela enésima vez, aparentemente - por um estudante, mais interessando porém na natureza e na realidade do simulacro do poeta do que na obra por ele deixada. Uma premissa muito interessante, e à qual julgo que o formato de conto se adequa na perfeição.

"Pequenos prazeres inconfessáveis"
De longe, o melhor conto deste livro, "Pequenos prazeres inconfessáveis" é uma autêntica história de terror vivida por uma rapariga (anónima) às mãos do seu pai. Enigmático e cruel, erótico e perverso, tem todos os ingredientes para funcionar na perfeição: personagens interessantes, twists inesperados, e um mistério que só encontra solução nas últimas páginas. Formidável. 

"O jogo do gato e do rato"
Um conto com uma premissa curiosa, a qual só é compreendida na sua totalidade perto do final. Poderia ser interessante desenvolvê-la para horizontes um pouco mais vastos do que aqueles permitidos pelo estúdio de cinema onde se passa a acção, e onde a rodagem violenta é feita com criaturas verdadeiras e descartáveis. Ainda assim, funciona bastante bem enquanto narrativa curta, apesar de, pessoalmente, não o ter achado um dos contos mais cativantes deste conjunto.

"Série convergente"
Um conto de natureza (diria) experimental, que narra a história de uma paixão, uma traição e um homicídio através de uma cronologia fragmentada e irregular. Diria que vale mais pela forma invulgar do que pelo conteúdo.

"Também há Natal em Ganimedes"
Pelos vistos, há - e, mais importante do que a celebração do Natal concreto, é a memória de um tempo e de um lugar deixados há muito para trás, a manutenção de uma rotina que, se em termos teóricos faz pouco sentido, na prática revela-se como essencial para a aquela comunidade. É uma perspectiva original sobre as (clássicas) histórias da expansão e colonização do espaço, quando se perdem os elos de ligação com a Terra de origem. 

"A última tarde"
Um dos melhores contos do conjunto, aborda um tema que, até à data, poucas vezes vi abordado de forma realista na ficção científica: o amor perante os abismos das distâncias espaciais. Daria para muito mais do que as suas (curtinhas) cinco páginas. 

"Criança entre as ruínas"
O maior conto deste livro divide-se entre duas localizações distintas: a Terra devastada por uma invasão extraterrestre e a base espacial onde os últimos seres humanos procuram encontrar sobreviventes entre os escombros da civilização. É uma história tocante sobre os laços remotos que se estabelecem entre dois estranhos, e sobre a persistência nas condições mais difíceis (isto dito assim parece cliché, eu sei), num cenário pós-apocalíptico muito bem conseguido.

"Ala anima"
O Futuro à Janela termina - e muito bem - não com um conto mas com este original poema sobre a exploração espacial e a partida definitiva rumo ao desconhecido, com todos os obstáculos e perigos que este encerra. 

2 de agosto de 2012

Leituras de Verão*

As férias já acabaram, e em grande medida a preguiça e os videojogos Portal e Portal 2 levaram a melhor face à leitura. Enfim, o pouco tempo que sobrou deu para concluir a leitura de A Canticle For Leibowitz, de Walter M. Miller Jr. (excelente), e para entrar em Wyrd Sisters, o sexto livro da série Discworld, de Terry Pratchett (uma gargalhada, como é habitual).

Mas para o que sobra do Verão, que já vai a meio, ainda haverá tempo para a leitura - e já tenho algumas programadas**. A coisa deverá seguir mais ou menos assim:


O Futuro à Janela, de Luís Filipe Silva
Encontrei-o durante as férias - que se não foram produtivas em termos de leitura, foram muito interessantes para encontrar relíquias. Tenho bastante curiosidade quanto aos "anos de ouro" da Ficção Científica portuguesa, e já vai sendo altura de ler alguma coisa em português (coisa que não faço há mais ou menos dois anos). 







Stand on Zanzibar, de John Brunner
Estou curioso quanto a este livro - vencedor do Prémio Hugo em 1968 e muito recomendado por Joe Haldeman. Recebi-o há dias e, considerando que 1) é volumoso*** e 2) a avaliar pela rápida olhadela que lhe dei, parece ter um estilo narrativo muito peculiar, julgo que me deverá ocupar durante quase todo o mês de Agosto. Mas agora que o tenho aqui ao lado, estou ainda mais curioso.







Ender's Game, de Orson Scott Card
Outro que me tem deixado bastante curioso - até porque gosto bastante de ficção científica militar, e tenho lido coisas muito boas sobre este livro. A adaptação cinematográfica sai para o ano - e o autor está envolvido na produção**** -, pelo que é altura de me dedicar a ele. 









O resto fica para o Outono.

* Em jeito de "resposta" a este post. O Frankenstein e as sequelas de Dune também cá andam, e há bastante tempo, à espera de vaga. 
** Naturalmente, as leituras programadas não serão necessariamente as leituras lidas. Os meus planos costumam não passar disso mesmo - de planos. 
*** Não é volumoso, é mesmo um doorstopper em formato paperback - só não é o maior livro da colecção SF Masterworks porque, se não me engano, Helliconia, de Brian Aldiss, é ainda maior.
**** Claro que, depois de alguns desastres recentes, as minhas expectativas para com qualquer adaptação cinematográfica estão consideravelmente mais moderadas.

20 de julho de 2012

Arqueologia literária do Fantástico português

Se é que podemos chamar de "arqueologia" à procura de livros publicados há pouco mais de 20 anos. Enfim, é o mercado editorial português. Aproveitei uma tarde de férias para sair da preguiça e fazer uma ronda pelos alfarrabistas de Lisboa (não por todos, entenda-se), à procura dos clássicos perdidos da Ficção Científica portuguesa. Não encontrei o que procurava (o já clássico Terrarium, de João Barreiros e Luís Filipe Silva), mas encontrei algumas relíquias a preços muito convidativos. Como estas, também do Luís Filipe Silva:

[Se ignorarmos uma mancha (de café, talvez?), o Vinganças parece novinho em folha]

Para além do único álbum do Astérix que nunca tinha lido (A Foice de Ouro) e de de O Quarto Planeta, de João Aniceto, também da velhinha colecção de Ficção Científica da Caminho, de capa azul (e publicidade da Sagres na contracapa). Amanhã de manhã repete-se a odisseia.