Mostrar mensagens com a etiqueta poul anderson. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta poul anderson. Mostrar todas as mensagens

28 de dezembro de 2013

2013 em retrospectiva (3): Os melhores livros de fantasia

Quem fizer a história da fantasia literária dos últimos 30 anos não poderá deixar de dar grande destaque a Discworld, o mundo secundário onde Terry Pratchett tem satirizado, com um humor ímpar na literatura contemporânea, tudo o que se possa imaginar – das obras de Shakespeare às convenções da fantasia moderna, das civilizações antigas à indústria cinematográfica. Em Small Gods, o décimo-terceiro volume de Discworld, a sátira afiada e inteligente de Pratchett apontou baterias no culto religioso – e o resultado é um dos melhores livros de fantasia dos anos 90. Om, em tempos uma divindade poderosa no Disco e centro de um dos seus mais importantes cultos, vê-se desprovido dos seus poderes e capturado no corpo insignificante de uma tartaruga – pois a sua religião, apesar de ter milhões de fiéis, não tem um único crente (e o poder dos deuses em Discworld, como se sabe, deriva da crença genuína). Resta-lhe Brutha, o mais simples de todos os acólitos do seu mosteiro, detentor de apenas duas qualidades dignas de nota: uma grande força física, e uma memória eidética infalível. Mas no lado oposto a Brutha – ou seja, no topo da hierarquia clerical do culto de Om – está Vorbis, grande inquisidor, homem de olhar fulminante e determinação insuperável, para quem o poder clerical e o poder secular devem ser uma e a mesma coisa. Com Om entre estas duas figuras, Pratchett traça uma sátira mordaz, inteligente e profundamente divertida ao fenómeno religioso, aos seus ritos e aos seus cultos, que talvez seja mais pertinente hoje do que o seria em 1991, quando foi publicado pela primeira vez. 

Em boa verdade, poderia completar esta lista apenas com os livros de Discworld que li durante 2013 – todos eles excelentes. Depois de Small Gods, destaco também Witches Abroad, décimo-segundo título da série, que regressa a Granny Weatherwax, a Nanny Ogg e a Magrat Garlic, as três impagáveis bruxas do pequeno reino de Lancre. A súbita herança de uma varinha mágica de uma fada madrinha por Magrat, e um detalhe antigo mas nunca esquecido do passado de Granny vai levar o pequeno círculo de bruxas (mais Greebo, o temível gato de Nanny Ogg) até um reino distante, dominado pelos contos de fadas – com os bailes faustosos e os indispensáveis finais felizes. Pelo caminho encontram anões, abóboras, lobos antropomorfizados, mais abóboras, rituais voodoo, espelhos encantados e um reino onde nada é o que aparenta ser – e pior, nada é o que devia ser. Witches Abroad é uma sátira inteligente aos contos de fadas tradicionais, e nenhum deles escapa ao olhar atento e perspicaz de Pratchett – só as inúmeras referências e as piadas hilariantes fazem valer a pena a leitura. Mas Witches Abroad é também uma história intrigante e muito bem construída, com uma das melhores personagens de Pratchett como protagonista – falo de Granny Weatherwax, evidentemente.

Tehanu, de Ursula K. Le Guin
Entre a publicação de The Farthest Shore, o terceiro volume da trilogia Earthsea original, e de Tehanu, obra que marca o regresso de Ursula K. Le Guin ao seu mundo secundário de fantasia, passaram-se quase vinte anos; e isso nota-se de forma muito positiva na leitura. Por oposição à trilogia anterior, mais próxima da fantasia literária convencional e das demandas do herói, Ged (por muito que tais convenções tenham sido contornadas), Tehanu retira o protagonismo a Ged para explorar o ponto de vista de Tenar, a jovem rapariga que o feiticeiro resgatara em The Tombs of Atuan. Mas muitos anos se passaram desde então, e isso nota-se: Ged está mais velho, e profundamente mudado pelos acontecimentos de The Farthest Shore; e Tenar, também já longe da juventude de outrora, também amadureceu e construiu uma vida familiar em Gont. Por um lado, é um prazer ver Le Guin a explorar o envelhecimento, o crescimento pessoal e as consequências das acções passadas das suas personagens; e por outro, esse enquadramento e o foco sobre Tenar dá à autora a oportunidade de explorar algumas das questões de género que se tornaram recorrentes na sua obra. Pelo contraste entre as vidas de Tenar e de Ged, Le Guin aborda o poder e a magia na perspectiva dos dois géneros naquele mundo - e fá-lo de forma mais intimista e pessoal, com resultados espantosos. 

Se Poul Anderson fosse vivo e estivesse hoje a escrever este seu clássico de 1954, The Broken Sword seria esticado para, pelo menos, uma trilogia, com cada livro a ter entre 400 e 600 páginas. Mas nos longínquos anos 50, este épico de inspirações na mitologia escandinava coube num único volume de pouco mais de duzentas páginas – e a sua trama, intensa e convulsa como só as grandes sagas sabem ser, é uma autêntica lição de storytelling. Michael Moorcock considerou-o melhor do que “o outro” livro de fantasia daquele ano, The Fellowship of the Rings – o que não faz justiça nem à obra de Anderson, quanto mais à de Tolkien. Com uma história situada na Inglaterra durante a era dos Vikings, e com a oposição entre as divindades tradicionais do Norte da Europa e o Cristianismo em ascensão, The Broken Sword parte da conquista de um território nas ilhas britânicas por Orm the Strong, e da inimizade que gera junto do reino de faerie de Elfheug. A troca do primogénito de Orm por um changeling híbrido de elfo e troll, porém, vai gerar um conflito muito amargo entre os Homens e as criaturas de faerie, e entre elfos e trolls - com os deuses do Aesir e os Jotuns envolvidos para os seus próprios fins. E, pelo meio, há ainda uma espada antiga, quebrada, que só poderá ser reforjada pelo gigante Bolverk na sua terra distante. Com um tom mais próximo das sagas nórdicas, The Broken Sword é uma aventura prodigiosa de Poul Anderson (que, recorde-se, também se notabilizou na ficção científica), um clássico da literatura de fantasia firmemente ancorado nas mitologias europeias. 

12 de julho de 2013

Quando a mitologia e a fantasia se entrelaçam: The Broken Sword

1954 foi um ano muito especial para a fantasia literária, tendo sido publicadas duas obras que cedo se tornariam em clássicos incontornáveis do género: o primeiro, The Fellowship of the Ring, do académico britântico J. R. R. Tolkien, universalmente conhecido e aclamado; o segundo, The Broken Sword, do autor norte-americano Poul Anderson. A coincidência das datas e o facto de ambas as obras irem beber directamente à imensa fonte das mitologias e dos textos escandinavos antigos levou a que desde cedo as comparações se tornassem inevitáveis; a crítica comparativa de Michael Moorcock (que sempre teve o romance de Anderson como uma referência para a sua própria fantasia literária) tornou-se célebre, e fez escola perante a tremenda popularidade da Terra Média, que o mundo de faerie que o norte-americano desenvolveu com mestria nunca conseguiu acompanhar. Mas a verdade é outra: se à superfície ambas as obras parecem ter muitas semelhanças, um mergulho mais profundo mostra quão distintas são, e como ambos os autores, bebendo na mesma fonte, conseguiram desenvolver mundos secundários tão distintos e com propósitos tão diversos; como tal, comparar The Broken Sword a The Lord of the Rings* torna-se num exercício não só irrelevante, como também injusto para ambas as obras.

Mas sobre Tolkien e respectivas comparações falarei em Setembro; hoje, o tema é The Broken Sword.

Poul Anderson não se limitou a inspirar-se nas mitologias; ele criou o seu próprio universo ficcional  centrado numa Inglaterra em plena era dos Vikings, com a guerra entre o Aesir e os Jotuns a pairar no horizonte e a inevitabilidade do Ragnarok a projectar uma sombra em todas as terras de faerie; o panteão nórdico está presente, tal como o irlandês - ambos considerados pagãos e em recuo perante o avanço do cristianismo pelo norte da Europa. Outras mitologias são mencionadas (a grega, por exemplo), tal como criaturas mitológicas e fantásticas de várias partes do mundo, de faunos e demónios chineses à Wild Hunt - criando um mundo rico em textura e em diversidade, no qual os Homens convertidos ao "White Christ" vivem ao lado de um mundo fantástico que desconhecem, e que não podem sequer vislumbrar.

É neste mundo que The Broken Sword arranca, com Orm the Strong a conquistar um território em Inglaterra e a se fixar na ilha; lá, converte-se ao cristianismo para desposar Aelfrida, e juntos começam a constituir uma família. Mas Imric, elfo e senhor do domínio de Elfheugh, toma conhecimento do nascimento do primogénito de Orm, e decide interferir, trocando a criança por um changeling híbrido de elfo e troll, e criando a criança humana entre os Elfos. O que Imric não sabe é que, sem querer, os seus actos colocaram-no a ele e ao seu povo numa cruzada de vingança contra Orm - e que tanto o Aesir como os Jotuns estão envolvidos, utilizando os povos de faerie nos seus esquemas. Ao jovem Skafloc os deuses enviam uma espada antiga, cujo tremendo poder só pode ser comparado à maldição que a sua lâmina encerra, e que foi quebrada muitos anos antes - e apenas o seu criador, o gigante Bolverk, a poderá voltar a forjar na hora mais desesperada.

Anderson mostra não só um vasto conhecimento das várias mitologias europeias, como também um enorme talento para delas tirar partido no desenvolvimento de uma aventura sombria num mundo povoado por toda a sorte de criaturas fantásticas (a passagem do fauno, por exemplo, é excepcional). A narrativa tem um ritmo narrativo extremamente rápido (escrito hoje por um autor contemporâneo de fantasia, The Broken Sword não teria menos de 800 páginas - se não fosse mesmo uma série), cuja prosa económica e eficaz nem por isso deixa de ter poesia e de evocar as sagas antigas (problemas menores, como a repetição de algumas expressões, não interferem no encantamento). A edição que li, da Gollancz, recuperou o texto da edição original de 1954 - e não da edição revista de 1971 -, mostrando um autor ainda a descobrir a sua voz, mas com uma visão muito concreta da história que pretende contar, sem em momento algum se desviar do seu propósito. 

Não há dúvida de que The Broken Sword merece um lugar no panteão da fantasia literária - ao lado de autores como Tolkien, Le Guin, Pullman, Martin e muitos outros que ao longo dos anos deram forma e variedade a um género com raízes milenares. Merece sair da sombra de Tolkien, sob a qual nunca mereceu estar, e ser lida e relida hoje, pelos méritos próprios da sua extraordinária narrativa e pelo fascinante mundo que Anderson tece com as mitologias antigas. Para os leitores de fantasia contemporâneos será sem dúvida uma leitura recomendada. 


*Há alguma ironia aqui: se há uma obra de Tolkien passível de ser comparada com The Broken Sword, essa obra seria The Children of Húrin

7 de julho de 2013

Citação fantástica (74)

Better a life like a falling star, bright across the dark, than a deathlessness that can see naught above or beyond itself.

Poul Anderson, The Broken Sword (1954)

8 de fevereiro de 2013

Dangerous Visions em retrospectiva (1): Contos de Robert Silverberg, Philip José Farmer, Brian Aldiss e Poul Anderson

Ao longo do último mês tenho-me entretido com Dangerous Visions, a célebre e polémica antologia de ficção curta inédita editada por Harlan Ellison em 1967 e que se tornou num dos mais importantes livros da "New Wave" da ficção científica. No total, a antologia reúne 33 contos e agrega submissões de alguns dos maiores autores do género nos anos 60, de outros que começavam a destacar-se e ainda de alguns escritores que, não escrevendo habitualmente ficção científica, aqui se aventuraram no género. Tenciono, ao longo das próximas semanas, regressar várias vezes a este livro: primeiro para falar de vários dos seus contos a título individual, para depois avaliar a antologia no seu todo - com a ficção dos vários autores e as muitas apresentações e introduções de Ellison. Na semana passada referi o conto Faith of Our Fathers, de Philip K. Dick, porventura (e sem surpresa) um dos melhores de todo o livro; hoje, dedicarei este artigo a quatro submissões de quatro outros autores. 

Flies, de Robert Silverberg: O conto de Silverberg é o segundo a figurar na antologia - e é a todos os níveis impressionante. No centro da narrativa está Richard Cassiday, que sobreviveu à destruição da sua nave espacial numa das luas de Saturno. Capturado por misteriosos alienígenas (os golden ones),  é "reconstruído" com um upgrade: uma maior sensibilidade empática para com os seus semelhantes, para melhor os estudar e reportar as emoções humanas aos alienígenas. Estes, porém, cometeram um pequeno erro que vai assumir proporções monstruosos: ao aumentar a sua capacidade de sentir aquilo que os outros sentem, eliminaram a sua consciência, tornando-o incapaz de sentir, ele mesmo, o que quer que seja - o que terá resultados tão inesperados como chocantes. Flies é a todos os níveis um conto extraordinário, combinando um estilo narrativo invulgar e uma escrita tão eficaz como rica para descrever o calvário de Cassiday. Apesar de não ter sido premiado, figura sem dúvida entre os melhores trabalhos da antologia. 

Riders of the Purple Wage, de Philip José Farmer: Na prática uma novela (e o trabalho mais longo da antologia), a submissão de Philip José Farmer venceu nessa categoria o Prémio Hugo de 1968. Com um estilo muito próprio e muito invulgar - para não dizer histriónico -, Riders of the Purple Wage é uma história de tons quase surrealistas que acompanha o jovem artista Chib enquanto este tenta ascender na sua comunidade fechada de "Ellay" para poder continuar a pintar e a não ser obrigado a emigrar para o Egipto. Entretanto, em sua casa esconde-se o seu avô (na prática o bisavô), um dos últimos empresários do país que anos antes, perante a nacionalização da sua empresa, deu um autêntico golpe do baú e simulou a própria morte - um esquema que enganou toda a gente menos um detective empenhado em descobrir a verdade e resolver aquele crime. Riders of the Purple Wage é uma novela complexa e multifacetada, que cruza na narrativa sobre Chib e a sua família uma abordagem peculiar à sexualidade (tema afastado da ficção científica da época), uma reflexão especialmente polémica sobre o universo artístico e uma crítica muito pouco subtil ao desprezo a que já na época era votada a ficção científica pela crítica literária e o jornalismo mainstream - isto num futuro um tanto ou quanto distópico e descrito numa narrativa tão convulsa como fascinante, com uma premissa que consegue em simultâneo parodiar uma história popular irlandesa e... James Joyce. 

The Night That All Time Broke Out, de Brian Aldiss: Aldiss apresenta neste conto uma premissa fascinante: e se o tempo pudesse ser uma comodidade como a água, o gás ou a electricidade,  controlado e canalizado para que cada um de nós pudesse dispor dele da forma que nos fosse mais conveniente? Nesta futuro visionário, o fluxo normal do Tempo de cada pessoa pode ser alterado pela inalação de uma droga - na prática,  uma espécie de Tempo condensado, ou concentrado. Torna-se assim possível, ainda que dispendioso, regressar mentalmente a um momento específico do passado, ou ter várias divisões de uma casa em momentos temporais diferentes de acordo com um estado de espírito. A narrativa acompanha Tracey e Fifi, um casal que vive no campo e que decide instalar uma "canalização temporal" para poder usufruir de um luxo reservado a quem vive nas cidades. Mas no momento mais inoportuno vai surgir um problema na distribuição temporal que gera efeitos tão curiosos como dramáticos. Aldiss explora a premissa de forma muito simples e directa, deixando espaço ao leitor para imaginar todas as consequências daquele problema. É uma abordagem singular ao tema das viagens no tempo (ou na regressão no tempo), com efeitos inesperados. 

Eutopia, de Poul Anderson: Um conto muito interessante e um daqueles casos que pede uma segunda leitura quase de imediato: o twist final, tão simples, dá um novo significado a todo o texto. Anderson criou toda uma realidade alternativa para a América do Norte, quase feudal na sua caracterização (e no seu aparente "atraso" tecnológico), e nessa realidade colocou o protagonista, o estrangeiro Iason Philippou, em fuga. Tendo violado um tabu do reino de "Norland", Philippou procura uma forma de escapar para um dos reinos vizinhos e a partir daí conseguir transporte para o seu próprio reino. Mas essa fuga não estará isenta de peripécias... A prosa e as descrições de Poul Anderson quase fazem Eutopia parecer um conto de fantasia, e não de ficção científica - o que está longe de ser um defeito. É certo que os mais de quarenta anos que passaram desde a publicação de Dangerous Visions retiraram o shock value da premissa de Eutopia, mas a reflexão cultural e civilizacional de Anderson nos momentos finais da narrativa permanece tão actual como em 1967.