Mostrar mensagens com a etiqueta Arthur C. Clarke. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Arthur C. Clarke. Mostrar todas as mensagens

4 de setembro de 2014

This happening world (22)

Recuperando uma notícia já antiga: depois de ter demonstrado interesse no projecto, o SyFy Channel confirmou a produção da adaptação de Childhood's End, de Arthur C. Clarke, para uma mini-série televisiva de seis episódios, com estreia prevista para o próximo ano. A adaptação está entregue a Matthew Graham, o criador das séries Life on Mars e Ashes to Ashes, com o realizador Nick Hurran (Sherlock e Dr. Who) a estar a cargo do episódio piloto. É certo  que o facto de o projecto pertencer ao SyFy Channel obriga a uma certa dose de cepticismo - afinal, nos últimos anos o canal tem apostado nos seus filmes de série B(menos) do que na ficção científica de qualidade. Ainda assim, trata-se de Childhood's End - um clássico absoluto da ficção científica literária com mais de 60 anos, que ainda hoje se revela notável pelo seu alcance conceptual e pela sua trama emotiva. 

Can Automata's rise of the robots bring science fiction to life? A pergunta é de Ben Child no The Guardian, mas o título é enganador: a verdadeira pergunta é can Automata (...) finally deliver an intelligent robot movie? Diz quem já viu que Robot and Frank fez isso mesmo, e até ver não terei motivos para não acreditar; mas a verdade é que tudo em Automata me pareceu demasiado familiar para causar um entusiasmo genuíno. Enfim, é esperar para ver. 

E a propósito de robots (de cyborgs, se quisermos ser rigorosos): Margot Robbie (The Wolf of Wall Street) poderá ser a protagonista da adaptação live action de Ghost in the Shell, que está a ser produzida pela Dreamworks (com realização de Rupert Sanders, cujo currículo como realizador de longas-metragens inclui apenas... Snow White and the Huntsman). O que equivale a dizer: Margot Robbie irá interpretar o papel da icónica Major Motoko Kusanagi. Whitewashing à parte, a notícia tem relevo sobretudo por confirmar que o projecto live action de Ghost in the Shell não conheceu a mesma sorte que o de Akira, afortunadamente perdido no development hell de Hollywood - a readaptação vai mesmo avançar. Uma vez mais: considerando que o (excelente) filme de Mamoru Oshii, para além de ser uma obra-prima, permanece actual e pertinente, é difícil pensar em projecto mais desnecessário entre a mais recente fornada de remakes estreados e anunciados. 

Mas nem tudo são más notícias no que a remakes diz respeito: a Capcom encontra-se a adaptar para a geração actual de consolas (e para PC) a versão remasterizada do clássico Resident Evil, que à época foi desenvolvida apenas para a consola GameCube. Para quem, como eu, nunca teve a oportunidade de jogar o original na primeira Playstation e viu o remake (mais a prequela Resident Evil 0) ficar bloqueada pela exclusividade obtida pela Nintendo para a GameCube, isto só pode ser uma excelente notícia - mesmo que chegue com mais de uma década de atraso. 

Fontes: io9 / The GuardianPolygon

7 de junho de 2014

O som e a fúria (27)

Em 1994, e por sugestão do então presidente da Warner Records, Rob Dickins, o compositor britânico MIke Oldfield compôs e produziu um álbum conceptual intitulado The Songs of Distant Earth, inspirado no romance homónimo que Arthur C. Clarke publicou em 1986 (e que foi um dos seus últimos romances sem colaboração de outros autores). Quem tiver lido o livro irá facilmente identificar todas as referências contidas nos títulos dos dezassete temas do álbum, acompanhando a narrativa do início ao fim. De The Songs of Distant Earth foram retirados dois singles; Let There Be Light foi o segundo, e fica como sugestão para hoje.

28 de março de 2014

The Fountains of Paradise: Entre a Terra e o Céu

Em 1980, Arthur C. Clarke repetiu o feito do seu romance de 1972, Rendezvous With Rama, ao vencer os prémios Hugo e Nébula na categoria de "Best Novel" com The Fountains of Paradise: um romance conceptual ancorado com firmeza no território da hard science fiction no qual explora a possibilidade de se construir um elevador orbital que, unindo um ponto do equador terrestre a uma estação espacial suspensa em órbita geoestacionária a 36 mil quilómetros de altitude, seja capaz de transportar da superfície do planeta até à órbita baixa passageiros e mercadorias, com apenas uma fracção da energia necessária para tal através de foguetões - uma tecnologia, de resto, notória tanto pela sua ineficiência como pela ausência de alternativas viáveis para sair da superfície terrestre. A proposta, em termos meramente científicos, não é de Clarke - de acordo com o próprio, a viabilidade de construção de um "funicular celestial" é proposta pela primeira vez em 1960 pelo engenheiro soviético Y. N. Artsutanov; Clarke, porém, toma esta possibilidade como ponto de partida e explica, com o rigor que lhe é conhecido, como poderia tal estrutura ser construída, e quão importante seria para a exploração do cosmos e para as relações comerciais de uma Humanidade dispersa por várias colónias no Sistema Solar. 

Em certa medida, The Fountains of Paradise é tanto a história deste projecto megalómano como do seu construtor, Vannevar Morgan,o mais conceituado engenheiro estrutural daquele Século XXII, e um homem que para todos os efeitos já terá assegurado a sua imortalidade através da construção da ponte que atravessa o Estreito de Gibraltar. Em contraponto às personagens que o rodeiam, menos desenvolvidas e colocadas de forma precisa, Morgan surge desenvolvido com alguma profundidade, com motivações reais e dotado de uma humanidade muito sui generis. Talvez não seja de todo descabido afirmar que há qualquer coisa de randiano em Morgan, estabelecendo um certo paralelismo entre o protagonista de The Fountains of Paradise e o de The Fountainhead no seu desejo de superação individual através de desafios puramente técnicos, ao arrepio das opiniões - e, com frequência, das acções - dos seus opositores. Mas Morgan é, acima de tudo, outra figura arquetípica: o engenheiro-tornado-herói de tanta ficção científica de outras décadas (dos anos 80 para cá tem caído em desuso), inabalável na sua convicção científica e desejoso de chegar mais longe - e de levar toda a Humanidade consigo nesse salto evolutivo. 

Mas The Fountains of Paradise é também mais do que Vannevar Morgan ou do que o elevador orbital: é ainda a história de um Sri Lanka alternativo, sempre designado por Taprobana, com a sua história e os seus mitos. É a história - o mito? - da ambição desmedida de um tirano de outros tempos, o rei Kalidasa, que construiu nas alturas de uma das mais altas montanhas da ilha um palácio com o qual pretendia alcançar os céus - e onde, num feito de engenharia notável, foram construídas pelos seus engenheiros as célebres Fontes do Paraíso. É precisamente neste ponto que The Fountains of Paradise se supera: na combinação, extraordinária pela sua harmonia, que tece entre o mito, o passado e o futuro. E fá-lo através da prosa sólida e a espaços poética de Clarke, sempre evocativa nas visões que conjura - da complexidade controlada das "Fontes do Paraíso" ao caos aparente das borboletas proféticas, da sombra da montanha projectada até ao horizonte numa hora muito específica da madrugada às fabulosas auroras boreais. A narrativa encontra-se estruturada em capítulos curtos mas intensos, como é típico na ficção de Clarke - o que dá à leitura um ritmo muito rápido. 

The Fountains of Paradise é considerado por muitos um dos melhores romances de Arthur C. Clarke, e é fácil perceber porquê: a forma como o arrojo conceptual da sua premissa científica surge harmoniosamente combinado com os mitos de Taprobana e o dia-a-dia daquela Humanidade futura é excepcional, e transmite aquele sense of wonder primordial do género, contagiante pela visão que evoca. A previsão de alguns aspectos tecnológicos que se tornaram realidade poucos anos após a sua publicação (os sistemas de informação ao estilo de news feeds são disso um exemplo) será talvez um bónus para os leitores contemporâneos, e um traço de actualidade num romance que, noutros aspectos, denuncia um pouco os seus mais de trinta anos de idade (a caracterização das personagens secundárias será talvez o exemplo mais flagrante - ainda que, como sempre acontece em Clarke, acabe por ser algo mitigado pela sua força conceptual). Mas mais do que isso, é um romance optimista e positivo sobre a superação humana, e a sua capacidade infinita para imaginar, para criar, para chegar mais longe através da sua racionalidade e do seu engenho. E, neste sentido, é um texto notável, e uma peça fundamental no legado que Arthur C. Clarke deixou à ficção científica. 

23 de março de 2014

Citação fantástica (118)

Over the years Rajasinghe - himself the bearer of a royal name, and doubtless host to many regal genes - had often thought of those words; they demonstrated so perfectly the ephemeral nature of power, and the futility of ambition. "I am the King." Ah, but which King? The monarch who had stood on these granite flagstones - scarcely worn them, eighteen hundred years ago - was probably an able and intelligent man; but he failed to conceive that the time could ever come when he would fade into an anonymity as deep as that of his humblest servants. 


Arthur C. Clarke, The Fountains of Paradise (1979)

3 de fevereiro de 2014

This happening world (3)

No blogue de gaming da Forbes, Erik Kain pergunta: estará na altura de deixarmos a visão de Peter Jackson da Terra Média de Tolkien para trás? Sim. E repito: sim. O trabalho do neozelandês na adaptação cinematográfica da trilogia The Lord of the Rings foi notável a todos os níveis (já aqui o defendi várias vezes), mas a verdade é que a iconografia dos três filmes tornou-se praticamente na imagem "oficial" daquele universo ficcional (para além de The Hobbit já acusar o desgaste em demasia). Kain coloca bem a questão: está na altura de dar a oportunidade a outras interpretações, se possível mais próximas da fonte. Uma tarefa sem dúvida hercúlea - tal como os três livros originais de Tolkien projectaram uma vasta sombra sobre toda a fantasia literária durante anos, é bem possível que a visão de Jackson condicione quaisquer adaptações audiovisuais da Terra Média. 

No Tor.com, Leah Schnelbach desmonta o extraordinário Groundhog Day nos seus vários elementos constituintes - e mostra como consegue subverter todos os géneros dos quais retira ideias e influências. A análise de Schnelbach é detalhada e inteligente, analisando todas as peças que fazem desta comédia romântica com Bill Murray e Andie MacDowell um filme especialmente difícil de caracterizar - mas inesquecível tanto na sua premissa como na forma irrepreensível com que a executa e a leva às últimas consequências.

Na Kirkus Reviews, Andrew Liptak (do SF Signal) recorda Arthur C. Clarke - o cientista e o escritor. Qualquer dia é um bom dia para recordar Clarke, e Liptak fá-lo de forma tão sucinta como completa: da sua descoberta do género à sua carreira científica e do desenvolvimento da teoria que possibilitaria a utilização de satélites geoestacionários; da influência de Olaf Stapledon à parceria com Stanley Kubrick para 2001: A Space Odyssey, clássico maior do cinema de ficção científica (e não só). 

Dose dupla da Telltale Games: Segundo episódio de The Wolf Among Us com lançamento previsto para os próximos dias; e segundo episódio da segunda temporada de The Walking Dead, ainda sem título, anunciado "para breve". (via Polygon)

Ao que parece, Duke Nukem está de volta - e desta vez em formato de action role-play. Depois do fiasco de Duke Nukem Forever, as expectativas não são elevadas; mas talvez saia daqui algo interessante. Só é pena que a equipa da Interceptor tenha deixado em águas de bacalhau o seu projecto de actualização do vetusto Duke Nukem 3D. (via Rock, Paper, Shotgun)

1 de dezembro de 2013

Citação fantástica (95)

There was another thought which a scanning of those tiny electronic headlines often invoked. The more wonderful the means of communication, the more trivial, tawdry or depressing its contents seemed to be. Accidents, crimes, natural and man-made disasters, threats of conflict, gloomy editorials - these still seemed to be the main concern of the millions of words being sprayed into the ether. Yet Floyd also wondered if this was altogether a bad thing; the newspapers of Utopia, he had long ago decided, would be terribly dull.

Arthur C. Clarke, 2001: A Space Odyssey (1968)

29 de novembro de 2013

2001: A Space Odyssey a dois tempos: a visão literária de Arthur C. Clarke

Ao contrário do que alguns hábitos resultantes dos cruzamentos mediáticos na ficção científica possam sugerir, 2001: A Space Odyssey, livro assinado pelo mestre Arthur C. Clarke, não é uma simples novelização do filme que Stanley Kubrick co-escreveu e realizou, e que se viria a tornar numa das mais fundamentais peças da iconografia do género. Como o filme, aliás, não se trata de uma adaptação cinematográfica de um livro; ambas as obras foram produzidas em simultâneo; quis o acaso que, ao contrário do pretendido por ambos, o livro apenas fosse publicado após a estreia do filme. Quanto ao processo de escrita, esse foi singular pela forma como colocou dois notáveis de áreas distintas a trabalhar em simultâneo no mesmo projecto a partir de dois meios diferentes; uma raridade que o próprio Clarke reconheceu, como se pode ler em Back to 2001, texto escrito em 1989 e publicado em jeito de prefácio nas edições de 2001 da Orbit:
(...) though towards the end novel and screenplay were being written simultaneously, with feedback in both directions. Thus I rewrote some sections after seeing the movie rushes - a rather expensive method of literary creation, with few other authors can have enjoyed. Though I am not sure if 'enjoyed' is the right word.
Divergências entre autor e realizador à parte, a verdade é que várias são as diferenças que podemos encontrar entre as duas versões de 2001, a de Kubrick em filme e a de Clarke em livro, em larga medida recorrentes das diferenças entre meios. A mais notável, e porventura mais conhecida, será talvez a mudança no destino da missão Discovery, enviada para Júpiter no filme quando nas versões iniciais do guião e na versão final do livro Bowman seguiu para Saturno. A mudança foi aconselhada pelo supervisor de efeitos especiais do filme, Douglas Trumbull, perante a impossibilidade de se conseguir reproduzir de forma convincente os famosos anéis de Saturno - uma alteração que Clarke acabaria por reconhecer e continuar nas sequelas literárias desta história, a partir de 2010: Odyssey Two. Muitas outras, com maior ou menor importância, poderiam ser mencionadas; talvez possam servir para estimular a curiosidade de alguns leitores, que ainda não se tenham aventurado na palavra escrita de 2001.

Em termos narrativos, 2001: A Space Odyssey, o livro, segue mais ou menos o mesmo percurso do filme. A primeira parte, "Primeval Night", passa-se três milhões de anos antes do nosso tempo, quando os nossos antepassados proto-humanos deambulavam pela savana primordial, selvagem e intocada. É uma passagem notável de Clarke, descrevendo com o rigor possível a uma perspectiva estranha - ou primitiva, se quisermos - um acontecimento extraordinário, que potenciará o salto evolutivo que cedo se vai começar a evidenciar. E segue-se o match cut, no caso pela forma, tão inevitável como banal, de passagem de capítulos, para "TMA-1", sobre a visita do cientista Heywood Floyd à base lunar de Clavius, bloqueada por quarentena, e à cratera de Tycho, onde se descobriu a anomalia magnética impossível. Para além de colocar o leitor uma vez mais perante a impossibilidade da primeira parte do livro e de precipitar a expedição da Discovery, "TMA-1" é notável pela forma como, através da viagem de Floyd, descreve aquele 2001 imaginado - da plataforma em órbita, dividida pelos vários blocos geopolíticos; da tecnologia desenvolvida para lançar naves para o espaço a partir da superfície terrestre, para sobreviver em órbita ou para manter expedições na Lua; e até mesmo de coisas tão banais para as sociedades contemporâneas, como o infodump noticioso, passagem de pouca importância no texto mas que ganha contornos proféticos muito curiosos.

A terceira parte de 2001: A Space Odyssey, "Between Planets", trata da expedição  da Discovery, descrevendo os detalhes, as rotinas e outras tarefas da viagem, para além de introduzir a tripulação composta por David Bowman, Frank Poole, os três cientistas em hibernação e, claro, Hal-9000, a mais célebre das inteligências artificiais da ficção científica. Será na quarta parte, "The Abyss", situada no vazio que separa Júpiter de Saturno, que terá lugar o célebre "confronto" entre Bowman e um Hal transtornado - e esse confronto é radicalmente diferente daquele que se pode ver no filme de Kubrick, explorando com mais detalhe as origens do erro do computador através de uma suposição de "culpa" - ou de um processo análogo na perspectiva de uma inteligência artificial. A diferença, porém, nem por isso retira a tensão ao momento; essa está lá, diferente mas também eficaz.

"The Moons of Saturn", a quinta parte, marca a transição entre os dois momentos fundamentais de 2001: o erro de Hal e a passagem de Bowman pela "Star Gate", tornado icónico pela última transmissão do solitário astronauta, omitida no filme*: "The thing's hollow - it goes on forever - and - oh my God - it's full of stars!" A sequência final, talvez a passagem mais polémica do filme de Kubrick devido à extraordinária abstracção obtida pelo visual psicadélico de Trumbull, é descrita com pormenor por um Bowman incrédulo, à medida que atravessa tempo e espaço rumo ao infinito aparente, a um destino que desconhece e que está para além da sua imaginação. É uma passagem formidável pela belíssima estranheza que evoca, pelos mundos que sugere, e pela metamorfose final, metáfora derradeira de toda a aventura da Humanidade. 

Mas de 2001, o livro, surge mais do que uma metáfora a sugerir - ou melhor, a exigir - interpretações; surge um futuro próximo (para a sua época) bem estruturado a partir da sua realidade contemporânea, descrito com rigor e verosimilhança, e com uma ou outra profecia menos evidente, mas nem por isso menos certeira. Não terá decerto sido o livro de ficção científica proverbial, como Kubrick queria fazer em filme; mas é sem dúvida uma obra notável da hard science fiction mais pura, bem ao estilo de Clarke e digna de figurar entre os seus melhores trabalhos. 

Colocado lado a lado com o filme de Kubrick, obra-prima de uma arte visual, aquilo o livro de Clarke faz é tornar evidentes as diferenças fundamentais entre ambos os meios, entre cinema e literatura, mesmo quando estão a contar, sem tirar nem pôr, a mesma história. Porque é apenas disso que se trata: não sendo novelização ou adaptação uma da outra, as duas obras intituladas 2001: A Space Odyssey, a cinematográfica e a literária, mais não são do que duas versões factualmente - digamos assim para simplificar - exactas mas radicalmente distintas de uma mesma história, vista pelas especificidades de cada meio. Onde Kubrick optou pelo simbolismo, Clarke prosseguiu com factos; onde o realizador arriscou na abstracção, o escritor assegurou-se na descrição. Mas o mesmo rigor que atravessa o filme e que se tornou num dos seus elementos distintivos pode ser encontrado nas descrições pormenorizadas, mas não exaustivas de Clarke, e na qualidade analítica das suas palavras - tanto quanto examinam o familiar como o desconhecido, ou mesmo inimaginável. Mais do que uma curiosidade para quem apreciou ou filme no grande ecrã ou do que um manual for dummies de uma película que continua a confundir espectadores pelo seu elevado grau de simbolismo e abstracção, 2001: A Space Odyssey é um texto fundamental da hard science fiction, uma peça única da criação literária do género e um épico arrojado com a ambição de explorar a evolução humana, desde a pré-Humanidade à uma possível pós-Humanidade. E, nesse sentido, é um texto raro, e de leitura imprescindível para os fãs de ficção científica.


* Esta será talvez a única passagem do livro que lamento não ter passado para o filme - as últimas palavras de Dave em 2001 são formidáveis -, ainda que entenda por que motivo Kubrick preferiu o silêncio da personagem e a sugestão da banda sonora para montar a transição da Star Gate

26 de novembro de 2013

2001 depois de 2001: O regresso à odisseia espacial de Kubrick e Clarke

2001: A Space Odyssey foi um dos primeiros filmes de que falei neste blogue, logo ao seu segundo mês de existência – um filme que vi pela primeira vez já bastante tarde (salvo erro, em 2009), mas que logo se tornou numa das mais fascinantes longas-metragens que tivera oportunidade de ver até então, ou que vi desde aí. Agora que o filme regressou, durante alguns dias, às salas de cinema portuguesas, tive enfim a oportunidade de o ver como ele merece: no grande ecrã, com som a condizer – e, mais do que nunca, importa regressar a este clássico de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke que mudaria a ficção científica cinematográfica para sempre.

De facto, a ideia original de Stanley Kubrick quando abordou Arthur C. Clarke nos anos 60, após a estreia de Dr. Strangelove, era desenvolver “o filme de ficção científica proverbial”, algo que se demarcasse do que se fizera no género até então. E, em bom rigor, foi isso que foi feito – ainda que de forma bastante improvável. O conto The Sentinel, de Clarke, serviu de base ao argumento do filme, e ao livro que foi escrito em simultâneo (e que seria publicado alguns meses após a estreia). Mas Kubrick decidiu fazer de 2001 algo diferente – uma experiência essencialmente visual, mais simbólica do que descritiva, mais estética do que narrativa.


Para isso, os melhores efeitos especiais feitos à época (e que, 45 anos volvidos, envelheceram como o Vinho do Porto) foram combinados com uma selecção cuidada de música clássica. A savana primordial faz-se acompanhar de Thus Sprach Zarathustra, de Richard Strauss – uma batida poderosa, evocativa, arrebatadora como convém ao momento, sem no entanto perder uma certa qualidade de enigma. O bailado espacial de "TMA-1" segue ao som de outro Strauss, de Johann, com a valsa The Blue Danube, perfeita para a lentidão coreografada dos movimentos nos abismos entre a Terra e a Lua. E a tradicional exposition da ficção científica deu lugar ao simbolismo e à abstracção – o espectador é desafiado a interpretar os símbolos e a construir o seu significado. A última sequência do filme, tão polémica pelo seu carácter abstracto, é disso um exemplo perfeito.


Que não se pense, porém, que na primazia do visual e do simbólico a narrativa se perdeu. Longe disso: reduzida ao seu mínimo denominador comum, a narrativa de 2001 apresenta-se pela combinação improvável de diálogo minimalista (banal, mesmo) e um vasto simbolismo, dos primeiros planos ao imprevisível desfecho. Dividido em quatro partes, 2001 começa por mostrar a “Madrugada do Homem”, ou o Homem antes de o ser – os primatas na savana primordial. Estes, pelo contacto com um objecto impossível descobrem a utilização do que os rodeia como ferramenta, como arma que lhes permite moldar e dominar o meio envolvente. O célebre split-cut, a mais longa elipse do cinema, descreve de forma tão perfeita como virtuosa a evolução humana na extraordinária transição do osso arremessado para a nave espacial em órbita: da savana pré-humana ao vazio que antecede as estrelas.


TMA-1, abreviatura de Tycho Magnetic Anomaly One, dá conta da descoberta que coloca todos os acontecimentos do filme em marcha: um objecto estranho, impossível mesmo, foi encontrado na Lua, “deliberadamente enterrado” quatro milhões de anos antes. Um monólito negro, idêntico àquele que levou os macacos primordiais a pegar num osso e a ver nele uma arma, que por uma emissão de rádio precipita a Humanidade a enviar a expedição Discovery One, para Júpiter, com cinco astronautas e o supercomputador HAL-9000 a bordo.


HAL será talvez a mais icónica das inteligências artificiais tornadas vilãs da ficção científica em todas as suas formas – contemporânea da AM criada por Harlan Ellison em I Have No Mouth, And I Must Scream, inspirou todas as variações do tema que se seguiriam, até mesmo à icónica GlaDOS do interactivo Portal (não deixa de ser curioso pensar que, nos rascunhos mais antigos de 2001, HAL teria uma voz feminina), também esta celebrizada na cultura popular pelo seu voice acting, à imagem do computador que a voz monocórdica Douglas Rain imortalizou no cinema. A forma como HAL elimina a tripulação é arrepiante – mas não menos do que o seu encerramento pelo sobrevivente Bowman, perdendo as suas capacidades cognitivas de forma progressiva até ao esquecimento.


Em termos práticos, e não sem ironia, o propósito de HAL era o mesmo de Bowman – levar a bom porto a missão da Discovery. E esta é concluída, de forma indefinida, na órbita de Júpiter, perante um novo monólito que irá servir de passagem para o maior salto dado pela Humanidade. “My God – it’s full of stars!”, diz um atónito Bowman no livro de Clarke; palavras que no filme deram lugar a um silêncio ominoso, ao qual se segue uma das mais arrebatadoras e abstractas sequências alguma vez feitas em cinema.
 

Quarenta e cinco anos depois da sua estreia, 2001: A Space Odyssey continua a ser um filme polémico e divisivo – e é também, com toda a justiça, considerado um dos melhores filmes de sempre pela crítica especializada. Uma prova do seu carácter incontornável e fundamental, tal como a sua persistência na cultura popular – mesmo apesar da sua elevada abstracção. Satirizado e parodiado, homenageado e aludido – muitas foram, e são ainda, as referências feitas a esta obra de Kubrick e Clarke, em meios tão distintos como a banda desenhada e os videojogos. A sua influência na indústria de efeitos especiais é evidente; e foi pedra de toque para cineastas tão populares como Steven Spielberg ou George Lucas.


Mais do que o “filme de ficção científica proverbial”, Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke criaram com 2001: A Space Odyssey filme de ficção científica perfeito e definitivo: em termos temáticos, a sua relevância só é comparável à sua ambição; em termos visuais, estabelece o padrão qualitativo para todo um género; e, no seu vasto legado, deixa ainda uma das mais memoráveis e influentes personagens que a ficção científica, cinematográfica ou literária, jamais produziu. Quando Ridley Scott diz que, com 2001, Kubrick “matou a ficção científica no cinema”, não é difícil notar, no evidente exagero do realizador britânico, um certo fundo de verdade: a fasquia foi colocada demasiado alta, entre as estrelas; e, até hoje, não foi ainda superada. Pergunto-me se algum dia será. 10/10

2001: A Space Odyssey (1968)
Realizado por Stanley Kubrick
Argumento de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke, com base no conto The Sentinel
Com Keir Dullea, Douglas Rain, Gary Lockwood, William Sylvester e Daniel Richter
160 minutos

8 de novembro de 2013

2001: A Space Odyssey regressa aos cinemas portugueses

A alguns, pelo menos. A partir do próximo dia 21 de Novembro será possível assistir, nos cinemas UCI El Corte Inglés (Lisboa) e Arrábida 20 (Vila Nova de Gaia), à reposição de 2001: A Space Odyssey, clássico maior da ficção científica cinematográfica, realizado por Stanley Kubrick. Com um argumento baseado no conto The Sentinel de Arthur C. Clarke, 2001: A Space Odyssey resultou de uma intensa colaboração entre Kubrick e Clarke, de onde resultou um livro e um filme - e este cedo se tornou num clássico do cinema pelo seu visual arrojado, pelos seus temas filosóficos e metafísicos, pelos efeitos especiais state of the art, e pelo realismo absoluto como o espaço foi filmado. No ano passado, a revista britânica Sight & Sound colocou-o na sua lista dos "10 Melhores Filmes de Sempre" - sinal não só da sua influência para lá dos limites da ficção científica enquanto género cinematográfico, mas também da relevância dos seus temas e da genialidade da sua execução, volvidos 45 anos sobre a sua estreia original.

Fonte: Magazine HD

31 de julho de 2013

Arthur C. Clarke: Science fiction does not attempt to predict. It extrapolates. It just says what if? (entrevista)

No universo da ficção científica, Arthur C. Clarke (1917 - 2008) dispensa apresentações - um dos "três grandes" que o género conheceu (a par de Asimov e Heinlein), foi o autor de clássicos como Childhood's End ou Rendezvous With Rama, e colaborou com Stanley Kubrick na criação de um dos mais importantes filmes que o género já conheceu: 2001: A Space Odyssey. Em 1995, Tod Mesirow deslocou-se ao Sri Lanka, onde Clarke vivia desde a década de 50, para o entrevistar - numa longa e interessante conversa sobre a sua paixão pela ficção científica, o carácter presciente do género e a sua colaboração com Kubrick. Essa entrevista foi entretanto publicada na LA Review of Books. Alguns destaques:
TM: Why has science fiction seemed so prescient?
ACC: Well, we musn't overdo this, because science fiction stories have covered almost every possibility, and, well, most impossibilities — obviously we're bound to have some pretty good direct hits as well as a lot of misses. But, that doesn't matter. Science fiction does not attempt to predict. It extrapolates. It just says what if? — not what will be? Because you can never predict what will happen, particularly in politics and economics. You can to some extent predict in the technological sphere — flying, space travel, all these things, but even there we missed really badly on some things, like computers. No one imagined the incredible impact of computers, even though robot brains of various kinds had been — my late friend, Issac Asmiov, for example, had — but the idea that one day every house would have a computer in every room and that one day we'd probably have computers built into our clothing, nobody ever thought of that.
(...)
TM: Describe the impact you think it [2001: A Space Odyssey] had eventually. 
ACC: Well, it turned on a whole generation, I believe in some cases with certain chemical assistance. [laughs] But, um, and it still has its impact. In fact, I'm always coming across references to it, sometimes indirect. A lot of TV commercials now. I'm sure you're — there's one on the local TV. It shows somebody throwing a paintbrush up into the air, some paint commercial, and the paintbrush goes up to the sounds of 2001 — And, oh, I caught an episode of the Simpsons the other day and there's a marvelous parody of apes all around the the slab. [laughs] Very funny.
A entrevista completa pode (e deve) ser lida no LA Review of Books.


9 de junho de 2013

Citação fantástica (70)

There was no substitute for reality; one should be aware of imitations.

Arthur C. Clarke, The Fountains of Paradise (1979)

11 de abril de 2013

Childhood's End e Ringworld adaptados para mini-séries televisivas pelo SyFy Channel

Após anos a produzir séries medíocres, adaptações pouca qualidade para o seu potencial e filmes do calibre de Mega Python vs. Gatoroid e Arachnoquake , o SyFy Channel dá indícios de querer regressar às suas raízes e voltar a produzir e transmitir ficção científica de qualidade. Daqui a dias estreará nos Estados Unidos Defiance, a nova e promissora aposta do canal; The Man in the High Castle, a adaptação do clássico de Philip K. Dick para mini-série, também está a avançar; e, ao que parece, já se encontra em produção Helix, série criada por Ronald D. Moore, produtor do (bem sucedido) remake de Battlestar Galactica

Mas há mais novidades - e estas ainda mais interessantes. De acordo com a Entertainment Weeklydois clássicos da ficção científica literária estão a ser adaptados para mini-séries: Ringworld, de Larry Niven, e Childhood's End, de Arthur C. Clarke. A primeira será uma produção de Michael Perry (Paranormal Activity 2, The River) e deverá ser uma mini-série de quatro horas - com quatro ou cinco episódios, certamente. Já Childhood's End contará com Michael DeLuca (The Mask, Blade, The Social Network) como produtor executivo.

Para além destas produções, o SyFy anunciou ainda vários outros projectos de ficção científica, conforme revela o portal The Hollywood Reporter.


29 de março de 2013

The Songs of Distant Earth: Do fim do mundo ao mundo novo

Em 1960, cientistas na Terra descobriram que as emissões de neutrinos pelo Sol estavam muito abaixo dos níveis esperados. Após mais algumas décadas de pesquisa, chegaram à conclusão de o problema não residia nos enquadramentos teóricos ou nos equipamentos de medição, mas sim na própria estrela - que, de acordo com as estimativas mais rigorosas, iria transformar-se numa supernova para lá do ano 3000, dando à Humanidade pelo menos um milénio para abandonar o planeta e colonizar outros locais do Universo. Os avanços tecnológicos neste sentido não permitiram, durante vários séculos, que a Humanidade enviasse para as estrelas mais do que cápsulas de colonização com embriões e robots que deles cuidassem para vários planetas possivelmente habitáveis entre os detectados. Mas já no último século antes de o Sol se expandir, tornou-se possível desenvolver motores quânticos que permitiram por fim construir naves  capazes de transportar seres humanos vivos - e começou o derradeiro - desesperado - esforço de evacuar do planeta o máximo de pessoas possíveis e as transportar em animação suspensa para um planeta possivelmente habitável.

Esta é a premissa a partir da qual Arthur C. Clarke desenvolveu The Songs of Distant Earth, obra de 1986 que o autor desenvolveu a partir de um conto com o mesmo título vários anos antes. E este desenvolvimento não surgiu por acaso, mas um pouco em jeito de "resposta" à ficção científica da época, sobretudo televisiva e cinematográfica, que considerava mais fantasia do que ficção científica. Pretendendo regressar à hard science fiction e criar uma história cientificamente verosímil a distâncias mais vastas, concebeu a nave "Magellan", uma das últimas a deixar a Terra em busca de um novo planeta, identificado como "Sagan II", antes de o Sol a obliterar. Com milhares de seres humanos em animação suspensa a bordo, a nave tem uma paragem programada: Thalassa, um planeta cuja superfície está coberta por um vasto oceano à excepção de um arquipélago. O objectivo principal da paragem é reconstruir o tremendo escudo de gelo que protege a "Magellan", mas o planeta tem também um enigma por solucionar: Muitos séculos antes, Thalassa foi um dos muitos planetas para onde foram enviadas cápsulas de colonização - e um dos poucos nos quais os esforços foram bem sucedidos, e uma colónia humana nasceu. O contacto entre Thalassa e a Terra foi mantido durante algum tempo, até que parou; e desde então não se soube o que aconteceu àquela civilização nascente. Isto, claro, até ao momento em que a "Magellan" chega à órbita daquele planeta...

Clarke desenvolve com mestria uma história fascinante sobre o choque do encontro entre a tripulação da "Magellan", os últimos sobreviventes da Terra, com uma civilização isolada que se fixou e cresceu num mundo idílico e que nunca conheceu verdadeiros desafios - e que por isso não tem verdadeiras ambições. Para os viajantes, aquele é um mundo simultaneamente estranho e familiar, e muita coisa muda para todos os envolvidos durante os dois anos necessários para a reconstrução do escudo de gelo. O enredo assenta numa mão-cheia de personagens principais e secundárias, e nas interacções estabelecidas entre os elementos da tripulação, entre os nativos, e entre ambos os grupos. A narrativa flui ao ritmo habitual das histórias de Clarke - rápida, intensa e enquadrada por muita informação científica dispersa de forma a dar densidade e verosimilhança à premissa e ao universo criado, mas sem se tornar excessiva ou maçadora (a crónica dos Lords of the Last Days é fascinante). Com um punhado de ideias tão interessantes como sólidas e alguns enredos secundários promissores, The Songs of Distant Earth é mais um excelente livro do "mestre" Arthur C. Clarke (que, ao que consta, considerava-o o seu preferido) - e apesar de hoje se saber que a questão dos neutrinos não irá originar uma supernova por estes lados daqui a pouco mais de um milénio, continua a ser uma excelente leitura de hard science fiction

19 de março de 2013

Arthur C. Clarke (1917 - 2008)

Arthur C. Clarke é habitualmente considerado um dos "três grandes" da Ficção Científica, a par de Isaac Asimov e Robert A. Heinlein. Com toda a justiça, diria, considerando o vasto e importantíssimo legado deixado por este britânico radicado no Sri Lanka. Autor de clássicos do género como Childhood's End (1953), The City and the Stars (1956, a partir do conto Against the Fall of Night), Rendezvous With Rama (1972), The Fountains of Paradise (1979) e The Songs of Distant Earth (1986), entre muitos outros, tendo conquistado vários prémios Hugo e Nébula. Publicou também dezenas de contos, alguns dos quais muito reconhecidos dentro do género, como The Nine Billion Names of God (1953). Mas foi The Sentinel, escrito em 1948 para um concurso da BBC, que se tornaria num marco fundamental da sua carreira ao servir de fundação para um dos mais importantes projectos da história da ficção científica: 2001: A Space Odyssey (1968). 

Realizado por Stanley Kubrick, 2001: A Space Odyssey foi a todos os níveis um projecto invulgar, tendo resultado da parceria e de uma intensa colaboração entre o cineasta e o autor para a escrita do argumento - do qual também resultou o livro homónimo de Clarke (que, importa sublinhar, não é uma novelização do filme). 2001 tornou-se num marco cinematográfico, sendo com frequência considerado não só um dos melhores filmes do género, mas também um dos melhores filmes da história do cinema. Arthur C. Clarke viria a escrever três sequelas, das quais apenas a primeira conheceu uma adaptação cinematográfica: 2010: Odyssey Two (1982), 2061: Odyssey Three (1986) e 3001: The Final Odyssey (1997). 

Em sua honra é atribuído anualmente o prémio Arthur C. Clarke ao melhor livro de ficção científica publicado no ano anterior no Reino Unido.

Para além da sua intensa carreira literária e desta sua curta mas intensa passagem pelo mundo do cinema, Clarke também ficou conhecido pelos seus programas televisivos: Arthur C. Clarke's Mysterious World, Arthur C. Clarke's World of Strange Powers e Arthur C. Clarke's Mysterious Universe. Sem esquecer, claro, a sua notável carreira científica, tendo desenvolvido os pressupostos teóricos da utilização de satélites geoestacionários para telecomunicações. Antecipou também, na sua obra literária e nos seus ensaios, vários dispositivos tecnológicos hoje comuns, mas à sua época considerados impossíveis. E legou-nos também algumas ideias muito interessantes, das quais se destacam as "três leis de Clarke" (das quais a mais célebre é a terceira: "qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia").

Nascido em Sommerset, no Reino Unido, a 16 de Dezembro de 1917, Arthur C. Clarke faleceu há exactamente cinco anos, a 19 de Março de 2008 - o último dos "três grandes" da ficção científica a deixar este mundo. Abaixo, deixo um curto documentário sobre este extraordinário autor e cientista, retirado do site oficial da Fundação Arthur C. Clarke:

29 de junho de 2012

Rendezvous With Rama

O primeiro desafio Arthur C. Clarke coloca ao leitor com Rendezvous With Rama (1972) é de perspectiva, implodindo qualquer noção de familiaridade ao apresentar um mundo cilíndrico - no interior do cilindro. É um pouco como a ideia antiga da Hollow Earth, mas alguns passos mais à frente - um mundo completo com cidades e mares construído na superfície interior de um gigantesco cilindro oco a viajar pelo espaço.

Está então apresentado Rama, nome dado a um misterioso objecto que é detectado ao entrar no Sistema Solar, num futuro no qual a Humanidade já se expandiu para fora da órbita da Terra e colonizou vários planetas e luas. É, inicialmente, tomado por um asteróide; no entanto, essa teoria cai por terra quando análises à sua trajectória indicam não estar a orbitar o Sol. Mais: indicam que aquele objecto é um cilindro perfeito e gigantesco, completamente liso, com um movimento de rotação incrivelmente rápido. O que torna evidente que não pode ser um objecto natural - foi criado por alguém, e poderá ser uma nave espacial. De imediato é preparada uma missão, liderada pelo Comandante Norton da nave Endeavour, para chegar a Rama e tentar perceber o que é, de onde vem e qual é o seu objectivo antes de se aproximar demasiado do centro do Sistema Solar e de o Sol inviabilizar qualquer tentativa de exploração. 

Rendezvous With Rama é a história da tripulação da Endeavour durante a sua exploração de Rama - com todo o engenho e toda a improvisação que foi necessária para tentarem desvendar os mistérios daquele artefacto extraterrestre. Clarke desenvolve a narrativa a um ritmo perfeito, com capítulos curtos e intensos, mostrando aos poucos as maravilhas que a tripulação, qual exploradores de outros tempos, vai descobrindo naquele estranho mundo cilíndrico onde o familiar assume frequentemente formas estranhas e o estranho está para lá da mais rebuscada imaginação. Não é dada especial atenção à caracterização das personagens, pois a verdadeira personagem não faz parte da Endeavour - é, sim, a própria Rama; e toda a concepção de Rama é um prodígio que desafia constantemente a percepção do leitor ao apresentar o impossível de forma tão plausível e rigorosa. É frequentemente considerado um dos grandes livros de Clarke, e uma obra fundamental na hard science fiction; quando foi publicado, venceu os prémios Nébula e Hugo. Percebe-se bem porquê.

(Seria fascinante ver Rendezvous With Rama adaptado para o cinema - e não sou só eu a dizê-lo. Morgan Freeman está há mais de uma década envolvido no projecto que teima em não sair do development hell. David Fincher é um dos realizadores apontados para o projecto, mas, ao que parece, falta ainda um guião realmente bom. Que seja escrito, e depressa.)

8 de junho de 2012

A Fall of Moondust

As décadas de 50 e 60 ficaram marcadas (entre outros acontecimentos) pela corrida espacial que colocou os Estados Unidos da América e a União Soviética a competir para ver qual das super-potências conseguia chegar mais longe na exploração do espaço. O resultado já nós conhecemos, e quem viveu em 1969 pode assistir, em directo, ao famoso passeio de Neil Armstrong, o primeiro homem a pisar a superfície lunar. Esse momento, contudo, foi o culminar de uma série de avanços tecnológicos desenvolvidos ao longo de vários anos, capazes de entusiasmar o mundo inteiro - e, creio, esse entusiasmo pelo espaço terá contribuído para a ficção científica da época, tanto na qualidade dos seus autores como na sua adesão por parte dos leitores. 

Claro que, ganha a corrida, o entusiasmo pelo espaço foi-se desvanecendo. Não fizemos colónias na Lua, nem construímos enormes estações espaciais em órbita. Não viajámos até Marte nem explorámos os asteróides para prospecção mineira. Muito menos nos aventurámos para fora do sistema solar, para lá da misteriosa Nuvem de Oort. A economia, com ou sem crise, ditou que enviar sondas, robôs e telescópios para o espaço era e é mais rentável para o conhecimento humano do que mandar gente para muito longe da confortável atmosfera da Terra. Longe de mim, que passo horas a ver com fascínio os arquivos de imagens recolhidas pelos vários equipamentos da NASA, desvalorizar essa abordagem; mas a verdade é que enviar mais uma sonda robótica a Marte, ou mesmo a uma das luas de Júpiter, é incomparável menos entusiasmante do que pegar em dois ou três astronautas e pô-los a tripular uma nave numa expedição com elevadas probabilidades de não incluir viagem de regresso (o que também pode explicar muita coisa sobre o estado da ficção científica actual, mas logo tentarei desenvolver esse tema noutro dia). 

De qualquer forma, começam a surgir bons sinais: a recente viagem da sonda da SpaceX à Estação Espacial Internacional foi um sucesso, e há por aí um consórcio multimilionário a falar na exploração dos asteróides mais próximos. Pode ser que nos próximos anos novas e arrojadas expedições ao vazio que nos rodeia façam renascer os entusiasmo pelo espaço, pela ficção científica, e por coisas que quem viveu há sessenta anos imaginava serem comuns hoje em dia. Como haver uma presença humana permanente na Lua e uma indústria de turismo lunar em expansão.

É neste contexto que trago hoje, como livro de Sexta-feira, uma obra muito curiosa de Arthur C. Clarke: A Fall of Moondust, de 1961. A premissa é muito simples: com a exploração do espaço a decorrer a bom ritmo e a humanidade confortavelmente instalada em órbita e na Lua, começa a ganhar força o turismo espacial. Uma das principais atracções turísticas do nosso satélite é também um dos seus mais intrigantes enigmas: uma vasta planície coberta por uma poeira de propriedades estranhas, que quase parece líquida (e age como tal), designada por "Sea of Thirst". Até aos nossos dias, nada foi encontrado na Lua que se pareça com isto - o que, claro, não quer dizer que não se venha ainda a encontrar. O próprio Clarke alude a esse facto no prefácio da edição de 1987 de A Fall of Moondust (reproduzido na recente edição da colecção SF Masterworks). No entanto, mais relevante para efeitos narrativos do que a existência do "Sea of Thirst" é a sua verosimilhança - e essa, Clarke consegue transmitir na perfeição.

A história de A Fall of Moondust também não procura ser particularmente complexa (o que, em muitos casos, está longe de ser um defeito). O protagonista, Pat Harris, orgulha-se de ser o único capitão de um barco na Lua, a Selene - um veículo especialmente concebido para "navegar" no "Sea of Thirst" e mostrar aquela paisagem formidável aos ávidos turistas lunares. A viagem que dá início à narrativa parece ser apenas mais uma das muitas que Harris já fez - até ao momento em que um incidente geológico faz a Selene "naufragar" com os seus vinte e dois passageiros e tripulantes, levando-a ao fundo daquele mar de poeira. É aqui que a prosa rápida e fluída de Clarke, sempre com um ritmo perfeito, revela ao leitor os esforços desenvolvidos pelas autoridades e pelos cientistas da Lua e da Terra para encontrar a Selene e resgatar os seus ocupantes com vida, numa complexa e quase impossível missão de salvamento. Paralelamente, a narrativa mostra a luta pela sobrevivência da tripulação e dos passageiros, enquanto um jornalista veterano se lança à aventura para transmitir a cacha da sua carreira. Clarke junta estes três pontos de vista de forma perfeita para construir um enredo espantoso, repleto de reviravoltas e de elementos científicos que não só dão suspense à história, como permitem ao leitor aprender imenso sobre a Lua. 

A Fall of Moondust pode não ser o melhor livro de Clarke, mas nem por isso deve ser posto de parte: é uma história muito interessante, contada como só o velho mestre sabia. O seu final é potencialmente previsível, mas contém twists suficientes para dar vontade de continuar a ler. Diz-se muitas vezes, não exactamente por estas palavras, que as viagens valem pelo caminho percorrido, e não pelo destino. A Fall of Moondust é um excelente exemplo desta máxima: ao contrário de Rendezvous With Rama (esta, sim, uma das obras maiores de Clarke), no qual o autor coloca o leitor sempre em suspenso com os mistérios que irão ser revelados a seguir, aqui as perguntas são outras: será que as personagens se vão safar? E como?

Isso deixo à descoberta (ou redescoberta) dos leitores.

[adaptado deste artigo publicado no Delito de Opinião]

4 de junho de 2012

Julgar o livro pela capa (3)

Uma trope interessante das invasões extraterrestres na ficção científica consiste na chegada de naves gigantescas que entram no planeta e ficam a pairar sobre as principais cidades - por vezes com más intenções. É provável que muita gente se lembre desta trope a propósito do filme Independence Day, de 1995, mas ela é bem mais antiga. Não sei se foi Arthur C. Clarke quem a criou em 1953 com Childhood's End, que sem dúvida um dos seus melhores livros. Ao longo dos anos, Childhood's End tem tido algumas capas particularmente evocativas, capturando muito bem este motivo sem no entanto revelar o que está realmente em causa na chegada dos extraterrestres, como aquelas que apresento abaixo (julgo que algumas edições tiveram capas com um spoiler do tamanho de um elefante, mas não é o caso destas). 

Esquerda: edição antiga da Pan Science Fiction, com a ilustração da nave a chegar à cidade e o pânico generalizado; Direita: não me lembro qual é a edição desta capa, mas encontra-se facilmente nas livrarias hoje em dia. Ilustração mais "realista", e também bastante boa.

Duas edições da colecção SF Masterworks, da Gollancz - a da esquerda é uma edição mais antiga, enquanto a da direita é a (re)edição actual. É a mesma ilustração com diferentes cores (pessoalmente, prefiro a antiga). Existe ainda uma terceira ilustração de Childhood's End nesta colecção. 

13 de maio de 2012

Citação fantástica (13)

All explorers are seeking something they have lost. It is seldom that they find it, and more seldom still that the attainment brings them greater happiness than the quest.

Arthur C. Clarke, The City and the Stars (1956)

12 de maio de 2012

Notas sobre ficção científica (3)

Please do not misunderstand me: I have enormously enjoyed the best of Star Trek and Lucas/Spielberg's epics, to mention only the most famous examples of the genre. But these works are fantasy, not science fiction in the strict meaning of the term. It now seems almost certain that in the real universe we may never exceed the velocity of light. Even the very closest star systems will always be decades or centuries apart; no Warp Six will ever get you from one episode to another in time for next week's installment. The Great Producer in the Sky did not arrange his program planning that way. 

Arthur C. Clarke, The Songs of Distant Earth (1986): Introdução

11 de maio de 2012

The City and the Stars

De que falamos quando pensamos em ficção científica num futuro distante? A ficção científica, nas suas diversas formas, produziu várias respostas ao longo dos anos, e a tecnologia evolui até ao ponto em que a humanidade consegue viajar a velocidades superiores às da luz (ou encontrar uma estratégia que permita obter os mesmos resultados de outra forma) e colonizar as estrelas mais distantes. A noção de império galáctico não é de todo estranha ao género. No entanto, fica a pergunta: o que acontece após a Humanidade conquistar as estrelas? 

The City and the Stars, de Arthur C. Clarke, ensaia uma resposta possível numa obra admirável. Expandindo o seu primeiro trabalho publicado, a noveleta Against the Fall of Night (título formidável que devia ter permanecido), The City and the Stars situa-se, em termos cronológicos, mais distante no tempo do que qualquer outra obra de ficção científica que tenha lido: mais de mil milhões de anos no futuro. A sua história não tem lugar em qualquer outro planeta ou galáxia, mas na cidade fechada de Diaspar: a última cidade que existe numa Terra devastada e árida cujos oceanos há muito se evaporaram, o último reduto da Humanidade que vive pacificamente entre muros depois de ter conquistado e perdido as estrelas. Ninguém sai ou deseja sair de Diaspar - aliás, ninguém se lembra da última vez em que alguém saiu de Diaspar. Nela, os seres humanos não nascem - são criados artificialmente pelas máquinas que mantém a cidade. As mentes e as memórias individuais são preservadas e atribuídas aos novos cidadãos quando estes "nascem", e apenas uma pequena parte da população potencial de Diaspar vive a cada momento. 

Esta regra, porém, tem algumas excepções muito raras - como o caso de Alvin, o protagonista. Alvin é um Único - foi concebido sem memórias, é alguém que não possuiu outra vida antes, e que não tem assim quaisquer memórias de Diaspar. Ao contrário dos seus conterrâneos, Alvin não teme o exterior, e deseja deixar a protecção da cidade e saber o que existe fora dela. Eventualmente consegue-o - e fora dos muros fechados de Diaspar encontra um mundo que supera a sua imaginação.

The City and the Stars é um livro sobre o impulso humano de querer chegar mais longe. De descobrir, de explorar, de nos superarmos a cada demanda. É uma história sobre a superação do medo, sobre o desconhecido que tememos, que frequentemente embrulhámos em lendas ambíguas para justificar os nossos medos sem querer admitir a sua existência. É também um livro sobre a utopia, com a última sociedade humana a viver uma existência quase imortal e sem ambição entre as paredes de Diaspar, num mundo fascinante concebido por Arthur C. Clarke.