Em 1960, cientistas na Terra descobriram que as emissões de neutrinos pelo Sol estavam muito abaixo dos níveis esperados. Após mais algumas décadas de pesquisa, chegaram à conclusão de o problema não residia nos enquadramentos teóricos ou nos equipamentos de medição, mas sim na própria estrela - que, de acordo com as estimativas mais rigorosas, iria transformar-se numa supernova para lá do ano 3000, dando à Humanidade pelo menos um milénio para abandonar o planeta e colonizar outros locais do Universo. Os avanços tecnológicos neste sentido não permitiram, durante vários séculos, que a Humanidade enviasse para as estrelas mais do que cápsulas de colonização com embriões e robots que deles cuidassem para vários planetas possivelmente habitáveis entre os detectados. Mas já no último século antes de o Sol se expandir, tornou-se possível desenvolver motores quânticos que permitiram por fim construir naves capazes de transportar seres humanos vivos - e começou o derradeiro - desesperado - esforço de evacuar do planeta o máximo de pessoas possíveis e as transportar em animação suspensa para um planeta possivelmente habitável.
Esta é a premissa a partir da qual Arthur C. Clarke desenvolveu The Songs of Distant Earth, obra de 1986 que o autor desenvolveu a partir de um conto com o mesmo título vários anos antes. E este desenvolvimento não surgiu por acaso, mas um pouco em jeito de "resposta" à ficção científica da época, sobretudo televisiva e cinematográfica, que considerava mais fantasia do que ficção científica. Pretendendo regressar à hard science fiction e criar uma história cientificamente verosímil a distâncias mais vastas, concebeu a nave "Magellan", uma das últimas a deixar a Terra em busca de um novo planeta, identificado como "Sagan II", antes de o Sol a obliterar. Com milhares de seres humanos em animação suspensa a bordo, a nave tem uma paragem programada: Thalassa, um planeta cuja superfície está coberta por um vasto oceano à excepção de um arquipélago. O objectivo principal da paragem é reconstruir o tremendo escudo de gelo que protege a "Magellan", mas o planeta tem também um enigma por solucionar: Muitos séculos antes, Thalassa foi um dos muitos planetas para onde foram enviadas cápsulas de colonização - e um dos poucos nos quais os esforços foram bem sucedidos, e uma colónia humana nasceu. O contacto entre Thalassa e a Terra foi mantido durante algum tempo, até que parou; e desde então não se soube o que aconteceu àquela civilização nascente. Isto, claro, até ao momento em que a "Magellan" chega à órbita daquele planeta...
Clarke desenvolve com mestria uma história fascinante sobre o choque do encontro entre a tripulação da "Magellan", os últimos sobreviventes da Terra, com uma civilização isolada que se fixou e cresceu num mundo idílico e que nunca conheceu verdadeiros desafios - e que por isso não tem verdadeiras ambições. Para os viajantes, aquele é um mundo simultaneamente estranho e familiar, e muita coisa muda para todos os envolvidos durante os dois anos necessários para a reconstrução do escudo de gelo. O enredo assenta numa mão-cheia de personagens principais e secundárias, e nas interacções estabelecidas entre os elementos da tripulação, entre os nativos, e entre ambos os grupos. A narrativa flui ao ritmo habitual das histórias de Clarke - rápida, intensa e enquadrada por muita informação científica dispersa de forma a dar densidade e verosimilhança à premissa e ao universo criado, mas sem se tornar excessiva ou maçadora (a crónica dos Lords of the Last Days é fascinante). Com um punhado de ideias tão interessantes como sólidas e alguns enredos secundários promissores, The Songs of Distant Earth é mais um excelente livro do "mestre" Arthur C. Clarke (que, ao que consta, considerava-o o seu preferido) - e apesar de hoje se saber que a questão dos neutrinos não irá originar uma supernova por estes lados daqui a pouco mais de um milénio, continua a ser uma excelente leitura de hard science fiction.
3 comentários:
que grande livro este. pura fé utópica na ciência e intelecto como forma de transcender as armadilhas que se atravessam no caminho da humanidade, que é das coisas que mais gosto em clarke. e boa escolha de capa, é a da minha edição :)
Como complemento da leitura sugiro o álbum homónimo de Mike Oldfield datado de 1994.
Artur, também gostei muito deste livro. E também tenho esta bela edição paperback.
Thanatos, obrigado pela sugestão. Já tinha lido algo a propósito do álbum, mas ainda não calhou ouvir. Vou ver se o encontro.
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