Para além das interessantíssimas sessões do Fórum Fantástico – na apresentação da edição portuguesa de Brasyl e na sessão aberta da Oficina Trëma de escrita criativa fantástica, o britânico Ian McDonald teve ainda tempo para estar um pouco, que não foi tão pouco quanto isso, à conversa com o Viagem a Andrómeda. O resultado é a longa entrevista que será publicada em três partes ao longo desta semana – com esta primeira a incidir sobretudo sobre a sua obra literária na ficção científica, desde a mais recente trilogia temática composta por River of Gods (2004), Brasyl (2007) e The Devrish House (2010), ao Marte descrito no seu primeiro romance, Desolation Road (1988).
João Campos/Viagem a Andrómeda (VA): O Ian McDonald nasceu em Inglaterra e mudou-se para a Irlanda ainda em criança, onde vive desde então. E acabou por escrever três livros de ficção científica com histórias que decorrem em países completamente diferentes em termos culturais, históricos e sociais. O que o motivou para isto?
Ian McDonald (IMD): Ainda que tenha escrito histórias de ficção científica situadas no país, a Irlanda do Norte – mesmo a Irlanda do Norte “problemática” onde cresci e onde vivi – nunca seria um daqueles grandes locais para ficção científica. Não está no centro das coisas, como os Estados Unidos ou o Japão; não é “fixe” como eles. E isso levou-me a pensar em algumas coisas: por que motivo tomamos alguns contextos como padrão para a ficção cientifica? Passa sempre pelos americanos, ou pelos japoneses com os seus robots gigantes – é sempre sobre como o futuro será na perspectiva destes países. Outra: que países nunca vimos verdadeiramente representados na ficção científica? Costumava – costumo ainda – seguir Star Trek, e um dia reparei que nunca lá vira um indiano. Star Trek orgulha-se de ser internacional e multi-étnica, quando na verdade é apenas um reflexo da estrutura étnica dos Estados Unidos. Em termos práticos, são os americanos no espaço. A partir daqui acabei por chegar à conclusão de que nunca tinha visto um grande livro de ficção científica passado numa Índia futura, e sobre essa Índia futura. Por volta de 1999 todas estas ideias começaram a cristalizar-se na minha mente; num almoço com o meu editor e o meu agente – receita para o desastre, como se sabe – falei-lhes sobre isto, e o meu editor disse-me: tens de escrever tu esse livro. Comecei a desenvolver a ideia, e o resultado foi River of Gods – um livro grande e pesado sobre a Índia (a Índia costuma ter livros grandes e pesados), com uma história situada em 2047, um século após a independência do país. A ideia é ter uma visão transversal daquela sociedade, com a Índia dividida em vários sub-estados rivais, a monção a falhar pela terceira vez e a possibilidade da guerra pela água no Ganges. É sobre esse pano de fundo que as histórias das nove personagens acabam por convergir de forma gradual.

Na altura inclui duas personagens norte-americanas para tornar o livro mais… atractivo para o público dos Estados Unidos – quem me dera não o ter feito! Mas era algo que poderia ser corrigido no livro seguinte, que acabou por ser Brasyl – situado no Brasil, claro, em três períodos diferentes (2032, 2006, 1732). Há apenas um personagens estrangeiro em Brasyl, um missionário irlandês que estudou em Coimbra. O terceiro livro, The Dervish House, decorre na cidade de Istambul em 2027 – cinco anos após a entrada da Turquia na União Europeia; todas as suas personagens são turcas.
Cada livro aborda um grande tema da ficção científica à luz de um país e da respectiva cultura. River of Gods explora a inteligência artificial; dei por mim a pensar sobre o tema, sobre como poderia funcionar e como poderia ser encaixado no panteão e na teologia Hindu. Brasyl é sobre computação quântica e universos paralelos. E The Dervish House aborda nanotecnologia, economia e a forma como ambas estão relacionadas.
VA: Uma obra tão ambiciosa decerto terá exigido uma pesquisa muito intensiva e detalhada.
IMD: Bom, de certeza que não faltaram incorrecções e imprecisões, mas isso não me preocupa muito – de resto, é perfeitamente possível que eu descreva de forma incorrecta e imprecisa o que se passa ao fundo da minha rua (risos). Cada um destes livros leva três ou quatro anos a escrever, e exige muita leitura. E acabo sempre por comprar muita música destas culturas…
VA: No final de Brasyl há até uma lista de músicas.
IMD: É mais uma banda sonora. Continuo a gostar muito de música brasileira – compro imensa. Percebo como funciona e aprecio a sua estética própria, que é completamente diferente da música de outras partes do continente americano. Mas quanto à pesquisa: no final, 80 por cento da pesquisa acaba por não ser utilizada de forma directa, mas é fundamental para que se perceba o que irá de facto ser necessário para a história. No caso de River of Gods, sobrou imenso material que acabou incluído numa colecção de histórias intitulada Cyberabad Days (2009). Enfim, leio muito e tento, na medida do possível, visitar os locais. Há coisas que só se percebem estando lá, indo lá. Falo com as pessoas, tento aprender tudo da linguagem e da história, por pouco que seja. Tento encaixar-me naquela cultura, o que é algo bastante difícil. Mas diga-se de passagem que também não existe ninguém que seja completamente típico de uma determinada cultura – isso seria um estereótipo perfeito, e nunca resultaria em livro. As minhas personagens são todas individuais em si; todas reflectem algo fora do dito “mainstream” das suas sociedades. Mas sim, dá trabalho – como disse, três ou quatro anos.