Mostrar mensagens com a etiqueta ian mcdonald. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta ian mcdonald. Mostrar todas as mensagens

31 de março de 2014

Ian McDonald (1960 - )

No que à ficção científica contemporânea diz respeito, poucas vozes se revelam em simultâneo tão originais e tão arrojadas como a de Ian McDonald, escritor inglês radicado na Irlanda no Norte aos cinco anos de idade, e que se estreou como escritor em 1982 com um conto intitulado The Island of the Dead, publicado na Extro, uma revista irlandesa de ficção científica. Esse seria o início da sua carreira enquanto contista; seis anos mais tarde, em 1988, estrear-se-ia como romancista com o extraordinário Desolation Road, um romance futurista que combina um Marte terraformado e em processo de colonização com um realismo mágico mais próximo da literatura sul-americana do que da ficção de género, e com uma prosa notável pela sua fluidez e pelo seu carácter evocativo. 

A ficção científica de Ian McDonald tornou-se distintiva pela forma como transporta as convenções e as ideias do género para cenários pouco explorados ao longo dos anos (mesmo o Marte de Desolation Road e da sua sequela de 2001, Ares Express, é substancialmente diferente do Marte de muita ficção científica - e bem mais bradburyano). A trilogia temática composta pelos aclamados River of Gods (2004), Brasyl (2007) e The Dervish House (2010) será disso o exemplo perfeito, ao desenvolver histórias intricadas em versões futuras da Índia, do Brasil e da Turquia, respectivamente. Tal como a série Chaga (composta pelos romances Chaga e Kirinya, de 1995 e 1997, e o conto Tendeléo's Story, de 2000), situada numa África futura após uma invasão alienígena. A sua vasta bibliografia inclui, entre dezenas de contos, os romances Towards Kilimanjaro (1990), King of Morning, Queen of Day (1991) e Necroville (1994), assim como várias colectâneas de ficção curta (entre as quais merece destaque Cyberabad Days, de 2009, com contos relacionados com River of Gods). 

Actualmente, encontra-se a trabalhar em Everness, uma série de cinco livros de ficção científica (teslapunk, segundo o próprio) para um público young adult, da qual três livros já foram publicados: Planesrunner (2012), Be My Enemy (2013) e Empress of the Sun (2014). E está ainda a desenvolver um díptico de ficção científica intitulado Luna, com uma trama passada numa Lua colonizada. 

Ian McDonald nasceu em Manchester, no Reino Unido, em 1960. Celebra hoje o seu 54º aniversário.

14 de março de 2014

River of Gods: Fragmentos de uma Índia futura

Vários têm sido os autores de ficção científica que, ao longo dos últimos anos, se têm esforçado para trazer ao género uma diversidade cultural que este não experimentou durante o seu apogeu - numa tentativa de superação do paradigma caucasiano, ocidental e anglo-saxónico que deu, e dá ainda, forma a uma fracção muito significativa do que se publica todos os anos no género. Poucos, porém, terão feito dessa premissa uma carreira tão bem sucedida como Ian McDonald, um inglês radicado na Irlanda (atente-se na ironia do exercício), que desde a publicação do seu primeiro romance em 1988, Desolation Road, tem trazido um exotismo muito próprio para os lugares tradicionais da ficção científica, ou transportado as premissas e os temas típicos do género para locais e culturas onde estes poucas vezes foram explorados. Em 2004, transportou para uma Índia futura e fragmentada o tema da Inteligência Artificial e em algumas ideias próximas do cyberpunk, e o resultado foi o romance vencedor na categoria de "Best Novel" dos British Science Fiction Awards desse ano: River of Gods.

Em certa medida, o que McDonald faz em River of Gods é um pouco o que John Brunner fez em Stand on Zanzibar (de resto, uma influência declarada do autor para esta obra): desenvolve uma premissa multifacetada e explora a partir dela toda uma visão transversal de uma sociedade ao mesmo tempo familiar e futurista, fazendo convergir para o centro da narrativa um conjunto de personagens com origens, personalidades e ambições radicalmente distintas - e profundamente verosímeis na sua plena individualidade. No caso, a sociedade presente e futura onde se situa a acção (ou a maioria da acção) é a Índia de 2047, um século volvido após o seu centenário enquanto nação independente. Que não se pense, porém, que este cenário serve apenas de pano de fundo a uma história de ficção científica mais "convencional", que poderia talvez ser contada com outro enquadramento; com a sua prosa sofisticada e evocativa, rica nas descrições e desafiante na mistura quase musical que faz de expressões hindi no seu inglês elaborado, a Índia de McDonald assume quase o estatuto de protagonista: oscilando entre o seu conservadorismo social e a sua sofisticação tecnológica, fragmentada num sem-número de estados que mantém entre si relações tensas, à beira de entrarem em guerra pela água que escasseia após alguns anos sem monção. 

Toda esta realidade política e social é central à narrativa; e é para ela que vai convergir um elenco tão díspar como curioso. Temos Shiv e o seu sidekick Yogendra, dois pequenos criminosos que se irão envolver numa conspiração mais profunda do que imaginaram possível; Mr. Nandha, o Krishna Cop, um autêntico Rick Deckard moderno que caça Inteligências Artificiais (aeais, como McDonald as designa) ilegais e as desfaz com projécteis EMP; a sua mulher, Parvati, oriunda da Índia rural e perdida no meio da vasta e antiga Varanasi; Vishram Ray, o terceiro filho de um magnata da indústria energética, que se vê obrigado a abandonar a sua carreira de comediante na Europa por uma questão familiar inesperada; Tal, um nute (indivíduo que se submeteu a intervenções de uma complexidade inimaginável para abdicar da sua identidade sexual) que trabalha na produção de Town & Country, uma novela virtual interpretada por Inteligências Artificiais que são em simultâneo actores e celebridades (e o exemplo perfeito da mestria de McDonald de tornar o estranho plausível e humano); Shaheen Badoor Khan, muçulmano e o cérebro por detrás do governo de Sajida Rana; Najia Askarzadah, uma jornalista sueca de origem afegã que dá por si no meio do furo jornalístico da década; Lisa Durnau, uma física norte-americana que irá encontrar num asteróide próximo da Terra algo extraordinário e impossível; Thomas Lull, um dos mais reputados académicos mundiais na área da Inteligência Artificial, em exílio auto-imposto na Índia; e Ajmer Rao, uma jovem rapariga com a capacidade desconcertante de comunicar com os deuses, numa cruzada pessoal para descobrir os seus pais biológicos.

Ao longo das várias histórias é possível encontrar registos muito distintos entre si - e McDonald manipula-os com a mesma destreza com que mantém sob controlo as várias narrativas individuais, quais tributários de um rio que irão convergir no curso principal no local mais apropriado. A algumas cenas de acção intensa, quase cinematográfica no seu ritmo frenético, juntam-se momentos dignos de um filme cyberpunk - como a excomunhão de uma aeai que Mr. Nandha leva a cabo, ajudado pelos seus avatares virtuais com a forma e os atributos das divindades hindu. O mistério, esse, é revelado com rigor e mestria - e lido o clímax, há uma vontade súbita, quase irresistível, de fazer uma releitura que revele vários indícios e inúmeras pistas deixadas ao longo do texto.

Denso, volumoso e fragmentado por quase uma dezena de enredos paralelos assentes em personagens tão distintas como individualizadas e situado numa Índia futura descrita e extrapolada com um nível de detalhe a todos os níveis impressionante, River of Gods revela-se um livro exigente para o leitor: pede-lhe tempo, requer disponibilidade, obriga à reflexão sobre a sociedade que mostra (com todas as suas idiossincrasias e contradições) e sobre os conceitos que apresenta, quase sempre de forma muito pouco convencional. Mas o momento em que as várias tramas dispersas, quais fios soltos de uma vasta tapeçaria, começam a convergir para o centro da acção na cidade em simultâneo antiga e moderna de Varanasi, nas margens do Ganges, River of Gods recompensa em larga medida a persistência do leitor para se revelar num trabalho a todos os níveis excepcional, elevado pela riqueza da sua prosa, pela complexidade do seu enredo e pelas questões que a premissa, e a forma como esta é abordada, suscita. Se em 2004 Ian McDonald ainda precisasse de confirmar o seu estatuto de uma das vozes mais irreverentes e talentosas da ficção científica contemporânea, River of Gods seria a sua confirmação definitiva: sem dúvida, um dos grandes trabalhos que o género conheceu neste novo milénio.

9 de março de 2014

Citação fantástica (110)

Daley Suarez-Martin and Sam Rainey look at each other and Lisa Durnau realizes that these are the people her country must rely on its first meeting with the alien. Not super-heroes, not super-scientists, not super-managers. Not super-anything. Workday scientists and civil servants. Working through, making it up as they go along. The ultimate human resource: the ability to improvise.

Ian McDonald, River of Gods (2004)

29 de dezembro de 2013

2013 em retrospectiva (4): Os melhores livros de ficção científica

Será talvez difícil pensar noutra antologia tão importante para a ficção científica como Dangerous Visions, a ambiciosa e revolucionária colectânea de dezenas de contos de alguns dos mais consagrados autores que o género conhecia em 1967 – assim como algumas estrelas em ascensão e até mesmo escritores de outros temas e géneros. Ao leme do projecto esteve o inevitável Harlan Ellison – enfant terrible da ficção científica, contista exímio, antologista delirante. As suas introduções aos autores deram um cunho invulgarmente pessoal à antologia; os contos, esses, foram naquela época uma demonstração perfeita não daquilo que a ficção científica fora até ali, mas daquilo que ela poderia ser a partir dali. Com autores tão distintos como Lester Del Rey, Frederik Pohl, Robert Silverberg, Roger Zelazny, Samuel R. Delany, J. G. Ballard, John Brunner, Philip K. Dick, Poul Anderson, Larry Niven, Philip José Farmer, Miriam Allen deFord, Brian Aldiss, Norman Spinrad, Sonya Dorman, John Sladek, Keith Lauder, Theodore Sturgeon, Damon Knight ou Carol Emshwiller, entre outros, Dangerous Visions tornou-se no baluarte da “New Wave” norte-americana, mostrando as infinitas possibilidades da ficção científica e chocando os círculos tradicionalmente conservadores do género com o seu carácter experimentalista e o seu arrojo narrativo, estilístico e temático. 45 anos volvidos sobre a sua publicação original, parte do seu shock value ter-se-á sem dúvida perdido – mas a qualidade dos seus textos, essa, continua intocada. 

O magnum opus da ficção científica nacional – lusófona? – data de 1996, e resultou da combinação de dois dos maiores talentos que o género conheceu na língua portuguesa: João Barreiros e Luís Filipe Silva. O resultado não serve para introdução à ficção científica – exige uma leitura atenta, e um leitor mais experimentado nas convenções e nos temas do género. Mas para esses, Terrarium é um tesouro: um vasto romance fragmentado e meta-referencial numa Terra futura na qual a Humanidade partilha o planeta, de forma um tanto ou quanto forçada, com um sem-número de raças alienígenas, exiladas na superfície e no vasto anel orbital composto pelas suas frotas destruídas – e com as enigmáticas Potestades, sempre vigilantes, a impor a coexistência. Num mundo onde as antigas revistas pulp e de comics são relíquias de valor incalculável, várias personagens aparentemente improváveis vão ver os seus destinos cruzarem-se num jogo de poder que, estando viciado à partida, não tem vencedor definido. Poderemos sempre lamentar a falta de desenvolvimento que a ficção científica conheceu, e conhece ainda, no nosso país; mas não deixa de impressionar que um género tão pouco cultivado tenha sido capaz de produzir um romance deste calibre: ambicioso, complexo e extremamente recompensador. 

O britânico M. John Harrison considera esta sua space opera de 1975 a pior coisa que já escreveu na vida. Após lê-la, será talvez inevitável pensar quão boa será a sua obra subsequente, se The Centauri Device já se revela num romance a todos os níveis impressionantes. A prosa magnética e delirante de Harrison começa nos primeiros capítulos a dar forma àquilo que parece ser uma combinação talvez improvável entre a space opera e os policiais noir; mas Harrison cedo começa a desconstruir temas, ideias e convenções para dar forma a um texto revolucionário e influente, de uma riqueza conceptual impressionante e de um fascínio inegável, repleto de imagens que perdurarão na memória dos leitores – da “mais longa festa do Universo” aos fanáticos religiosos do culto dos “Openers”. Um clássico soturno, com um certo tom pessimista e nihilista que se tornaria recorrente uma década mais tarde no advento do cyberpunk

Escrever um romance como Desolation Road não é para todos – e mais impressiona ao saber que foi o primeiro livro escrito por Ian McDonald. Situado num Marte futuro terraformado, e indo beber tanto às crónicas melancólicas de Bradbury como à hard science fiction e ao realismo mágico sul-americano do qual Garcia Marquez é um dos expoentes máximos, McDoland cria um vasto mosaico de histórias individuais de pessoas diferentes – de cientistas a revolucionários, de aviadores a vagabundos, de famílias rivais a aventureiros. E o que toda esta gente tem em comum é Desolation Road – uma aldeia na orla de um vasto e rubro deserto, fundada pelo mais improvável dos acasos por um cientista solitário e na qual parou, durante os anos que se seguiram, todo o tipo de pessoas. Desolation Road segue todas essas personalidades para aquele ponto, e para fora dele, e para dentro dele novamente – e traça uma vasta crónica sobre como um lugar tão insignificante conseguiu ser tão decisivo para os destinos de um planeta inteiro. É um romance com um ritmo intenso, um tom atravessado de melancolia, e mais episódios mirabolantes do que seria sensato descrever por aqui – e um texto único na ficção científica. 

29 de novembro de 2013

Entrevista a Ian McDonald, parte 3: Fantasia e ficção científica: influências, preferências e o estado da arte

Terceira e última parte da longa entrevista com Ian McDonald, autor de obras como Desolation Road, River of Gods e Brasyl, que esteve em Lisboa há poucos dias na qualidade de convidado especial do Fórum Fantástico 2013. Mais informal, esta última parte acabou por ser mais uma conversa do que exactamente uma entrevista (e muitos foram os minutos que não inclui neste texto), onde se falou de tudo um pouco, sempre com a ficção científica e a fantasia como pano de fundo: influências, actividades, a passagem pela televisão, as tendências e os problemas da ficção de género contemporânea, John Brunner e o cinema. E mais alguns tópicos. Aqui fica:



João Campos/Viagem a Andrómeda (VA): Agora que já falámos da bibliografia passada, presente e futura, talvez seja uma boa altura para regressarmos ao início. Quando percebeu que queria vir a ser um escritor, e quando escreveu as suas primeiras histórias?

Ian McDonald (IMD): Creio que, como a maioria dos escritores, comecei em criança – e as minhas primeiras histórias caberiam naquilo que hoje é designado por “fan fiction”. Escrevia sobre aquilo de que gostava – e como costumava seguir Dr. Who e Star Trek, os meus textos tinham fortes influências do universo de Star Trek. Há um momento em que percebemos que é exactamente isto que queremos fazer – escrevemos alguma coisa e não a achamos tão má quanto isso. Em termos práticos, a coisa não é mais do que um grande truque de autoconfiança – levamo-nos a acreditar naquilo que escrevemos, e na vontade que outras pessoas terão de o ler. A minha primeira história, vendi-a em 1983, faz agora 30 anos; o meu primeiro romance foi publicado em 1988. Como o tempo passa!

Em criança, lia tudo o que podia. Em parte, o que me motiva a direccionar a minha série juvenil para miúdos de treze ou catorze anos é ser essa a idade em que eles deixam de ler. Os rapazes lêem com gosto até essa idade; a partir daí, muitos passam para obras audiovisuais, como videojogos e filmes. Alguns continuam a ler, é certo, mas muitos não; espero que a minha série os atraia e os faça continuar a ler.

VA: Referiu Dr. Who e Star Trek. Algumas das suas primeiras influências foram então audiovisuais?

IMD: Julgo que a maior parte das pessoas começa de facto na televisão. Bom, temos de começar em algum lado, não é? Lembro-me de coisas como Tintin: Destination Moon, por exemplo. Mais tarde acabei por passar mais da cultura visual para a palavra escrita simplesmente por uma questão de disponibilidade: não havia muito espaço na televisão e no cinema para ficção científica, mas havia imensos livros na biblioteca. E eram melhores do que o que dava na televisão: tinham grandes ideias, grandes efeitos especiais… autores como E. E. “Doc” Smith e afins. Lembro-me de ter mais ou menos onze anos e de ter lido os livros de Lensman todos – tentei relê-los há poucos anos, e são péssimos! Mas quando se tem 11 anos, é do melhor que há. Agora passar aquilo para o cinema – o orçamento seria astronómico.

VA: Quais foram então os primeiros contactos e as primeiras influências em termos de literatura? Para além de “Doc” Smith, que já foi mencionado.

IMD: Num grupo de amigos na escola tínhamos o hábito de trocar livros de ficção científica entre nós. Lembro-me de ler o Capitão W. E. Johns, um autor britânico de aventuras de pilotos temerários, com o Capitão “Bigglesworth”. Histórias bem escritas e bem concebidas – excelente ficção para crianças, sobretudo para rapazes. Descobri que ele também escreveu alguma proto-ficção científica, passada na cintura de asteróides. Procurei-os na biblioteca, e depois passe para outros livros de ficção científica. Havia um clube de leitura na escola; lembro-me de começar a ler livros mais juvenis, e depois passar para obras mais complexas. A biblioteca local tinha uma excelente selecção de ficção científica; li-a praticamente toda. Também a livraria local tinha uma óptima prateleira de ficção científica; quando comecei a ter algum dinheiro disponível, lembro-me de escolher com muito cuidado que livros comprar, e em que livros gastar dinheiro… lá está, quando é o teu dinheiro…

VA: … tem de valer a pena.

IMD: Mesmo! Tem de ser O livro!

27 de novembro de 2013

Entrevista a Ian McDonald, parte 2: Da fantasia à ficção científica young adult, do teslapunk à Lua

Segunda parte da entrevista a Ian McDonald, realizada durante a visita do autor britânico ao nosso país por ocasião do Fórum Fantástico. Aqui, falou-se de fantasia, da sua recente série young adult (e de algumas tendências particulares deste mercado), e dos seus próximos projectos literários. A primeira parte pode ser lida aqui.

João Campos/Viagem a Andrómeda (VA): Em termos genéricos, muitos autores de ficção especulativa – usemos o termo para simplificar – optam pela ficção científica ou pela fantasia. O Ian McDonald optou por ambos, ainda que a sua entrada na fantasia, por via de King of Morning, Queen of Day [1990], não tenha propriamente seguido a mais popular corrente de fantasia épica.

Ian McDonald (IMD): Não queria escrever esse tipo de fantasia. E, uma vez mais, King of Morning, Queen of Day foi mais uma daquelas coisas que aconteceu no zeitgeist: escrevi-o mais ou menos ao mesmo tempo em que John Crowley publicou Little, Big e Robert Holdstock publicava a série Mythago Wood. Muita da fantasia aborda a nossa entrada no mundo secundário; parte deste mundo para aquele mundo, ou decorre inteiramente naquele universo. Interessa-me mais o inverso: quando aquele outro mundo entra pelo nosso. É muito mais assustador e interessante. Holdstock fez mais ou menos o mesmo em Mythago Wood, abordando a origem dos velhos arquétipos; e Little, Big, de Crowley, mostra o que acontece quando o mundo fantástico e o nosso mundo se sobrepõem. Visto assim, torna-se evidente que algo se passava na altura.

Já vi King of Morning, Queen of Day descrito como uma proto-fantasia urbana. O que talvez não seja de todo incorrecto: tem uma heroína forte na terceira parte. O livro é sobre três gerações de mulheres irlandesas; cada uma tem a capacidade de interagir com o inconsciente colectivo, moldando e misturando mitologias e trazendo aquele mundo fantástico para o nosso. Com um detalhe: elas não sabem que o estão a fazer, ou como o estão a fazer; todo o processo decorre num nível inconsciente. E cada uma delas tem de enfrentar esse poder: algumas assumem-no, outras são destruídas por ele, e outras lutam contra ele. Na terceira parte, a heroína praticamente vai à caça de fadas. Ainda gosto muito desta história; escrevi-a em em 1990, e ela é muito anos 90, com dance music e isso tudo (risos).

VA: Já que o refere, como é regressar hoje a esses trabalhos mais antigos?

IMD: É interessante. Há alguns anos estive numa convenção em França, e colocaram-me uma pergunta sobre o final de King of Morning, Queen of Day. Não me lembrava do que acontecia, de todo (risos). Disse qualquer coisa muito vaga, e o leitor respondeu por mim. Tenho uma péssima memória para aquilo que escrevi – tenho histórias inteiras em colecções, e nem me lembro de as ter escrito.

25 de novembro de 2013

Entrevista a Ian McDonald, parte 1: Dos mundos cientifico-ficcionais em desenvolvimento ao Marte terraformado de Desolation Road

Para além das interessantíssimas sessões do Fórum Fantástico – na apresentação da edição portuguesa de Brasyl e na sessão aberta da Oficina Trëma de escrita criativa fantástica, o britânico Ian McDonald teve ainda tempo para estar um pouco, que não foi tão pouco quanto isso, à conversa com o Viagem a Andrómeda. O resultado é a longa entrevista que será publicada em três partes ao longo desta semana – com esta primeira a incidir sobretudo sobre a sua obra literária na ficção científica, desde a mais recente trilogia temática composta por River of Gods (2004), Brasyl (2007) e The Devrish House (2010), ao Marte descrito no seu primeiro romance, Desolation Road (1988).

João Campos/Viagem a Andrómeda (VA): O Ian McDonald nasceu em Inglaterra e mudou-se para a Irlanda ainda em criança, onde vive desde então. E acabou por escrever três livros de ficção científica com histórias que decorrem em países completamente diferentes em termos culturais, históricos e sociais. O que o motivou para isto?

Ian McDonald (IMD): Ainda que tenha escrito histórias de ficção científica situadas no país, a Irlanda do Norte – mesmo a Irlanda do Norte “problemática” onde cresci e onde vivi – nunca seria um daqueles grandes locais para ficção científica. Não está no centro das coisas, como os Estados Unidos ou o Japão; não é “fixe” como eles. E isso levou-me a pensar em algumas coisas: por que motivo tomamos alguns contextos como padrão para a ficção cientifica? Passa sempre pelos americanos, ou pelos japoneses com os seus robots gigantes – é sempre sobre como o futuro será na perspectiva destes países. Outra: que países nunca vimos verdadeiramente representados na ficção científica? Costumava – costumo ainda – seguir Star Trek, e um dia reparei que nunca lá vira um indiano. Star Trek orgulha-se de ser internacional e multi-étnica, quando na verdade é apenas um reflexo da estrutura étnica dos Estados Unidos. Em termos práticos, são os americanos no espaço. A partir daqui acabei por chegar à conclusão de que nunca tinha visto um grande livro de ficção científica passado numa Índia futura, e sobre essa Índia futura. Por volta de 1999 todas estas ideias começaram a cristalizar-se na minha mente; num almoço com o meu editor e o meu agente – receita para o desastre, como se sabe – falei-lhes sobre isto, e o meu editor disse-me: tens de escrever tu esse livro. Comecei a desenvolver a ideia, e o resultado foi River of Gods – um livro grande e pesado sobre a Índia (a Índia costuma ter livros grandes e pesados), com uma história situada em 2047, um século após a independência do país. A ideia é ter uma visão transversal daquela sociedade, com a Índia dividida em vários sub-estados rivais, a monção a falhar pela terceira vez e a possibilidade da guerra pela água no Ganges. É sobre esse pano de fundo que as histórias das nove personagens acabam por convergir de forma gradual.

Na altura inclui duas personagens norte-americanas para tornar o livro mais… atractivo para o público dos Estados Unidos – quem me dera não o ter feito! Mas era algo que poderia ser corrigido no livro seguinte, que acabou por ser Brasyl – situado no Brasil, claro, em três períodos diferentes (2032, 2006, 1732). Há apenas um personagens estrangeiro em Brasyl, um missionário irlandês que estudou em Coimbra. O terceiro livro, The Dervish House, decorre na cidade de Istambul em 2027 – cinco anos após a entrada da Turquia na União Europeia; todas as suas personagens são turcas.

Cada livro aborda um grande tema da ficção científica à luz de um país e da respectiva cultura. River of Gods explora a inteligência artificial; dei por mim a pensar sobre o tema, sobre como poderia funcionar e como poderia ser encaixado no panteão e na teologia Hindu. Brasyl é sobre computação quântica e universos paralelos. E The Dervish House aborda nanotecnologia, economia e a forma como ambas estão relacionadas.

VA: Uma obra tão ambiciosa decerto terá exigido uma pesquisa muito intensiva e detalhada.

IMD: Bom, de certeza que não faltaram incorrecções e imprecisões, mas isso não me preocupa muito – de resto, é perfeitamente possível que eu descreva de forma incorrecta e imprecisa o que se passa ao fundo da minha rua (risos). Cada um destes livros leva três ou quatro anos a escrever, e exige muita leitura. E acabo sempre por comprar muita música destas culturas…

VA: No final de Brasyl há até uma lista de músicas.

IMD: É mais uma banda sonora. Continuo a gostar muito de música brasileira – compro imensa. Percebo como funciona e aprecio a sua estética própria, que é completamente diferente da música de outras partes do continente americano. Mas quanto à pesquisa: no final, 80 por cento da pesquisa acaba por não ser utilizada de forma directa, mas é fundamental para que se perceba o que irá de facto ser necessário para a história. No caso de River of Gods, sobrou imenso material que acabou incluído numa colecção de histórias intitulada Cyberabad Days (2009). Enfim, leio muito e tento, na medida do possível, visitar os locais. Há coisas que só se percebem estando lá, indo lá. Falo com as pessoas, tento aprender tudo da linguagem e da história, por pouco que seja. Tento encaixar-me naquela cultura, o que é algo bastante difícil. Mas diga-se de passagem que também não existe ninguém que seja completamente típico de uma determinada cultura – isso seria um estereótipo perfeito, e nunca resultaria em livro. As minhas personagens são todas individuais em si; todas reflectem algo fora do dito “mainstream” das suas sociedades. Mas sim, dá trabalho – como disse, três ou quatro anos.

25 de outubro de 2013

Realismo mágico científico-ficcional, ou: o passado e o futuro em Desolation Road

Há poucos locais tão fascinantes na ficção científica como Marte - o Marte antigo, pré-exploração humana por telescópios e sondas e robots inteligentes que percorrem o solo avermelhado deste nosso vizinho do Sistema Solar e que revelam os seus segredos e a sua aparente esterilidade. Nada de homenzinhos verdes, de civilizações alienígenas, mais ou menos bárbaras, mais ou menos avançadas, espraiadas pelas margens dos canais que Percival Lowell tornou famosos. E, até ver, nada de travessia humana do abismo vazio que separa os dois planetas. Nada de terraformação, de desenvolvimento atmosférico, de landfall - a colonização humana do planeta dito vermelho continua a ser projecto de concretização improvável, se não mesmo onírica. Na imaginação, porém, Marte fervilha de vida - é o Barsoom explorado pelo espírito aventureiro de Edgar Rice Burroughs, é o lugar visitado pela nostalgia melancólica de Ray Bradbury nas suas célebres Crónicas. É o planeta onde autores tão diferentes como Arthur C. Clarke, Robert A. Heinlein, Philip K. Dick, Roger Zelazny, Lester Del Rey, Frederik Pohl, Kim Stanley Robinson colocaram as suas personagens e as fizeram viver as suas aventuras. E foi o planeta escolhido por Ian McDonald para se lançar na aventura da ficção científica, long form, com o seu vertiginoso romance de estreia, publicado em 1988: Desolation Road.

As referências não surgem aqui colocadas inteiramente ao acaso: as muitas influências de Desolation Road são visíveis ao longo de todo o texto, umas evidentes, outras obscuras. Quase em jeito de um híbrido entre The Martian Chronicles com o realismo mágico de Gabriel Garcia Márquez em One Hundred Years of Solitude e um certo tempero distópico-burocrático ao estilo visual de Terry Gilliam em Brazil (com uma cena do filme reproduzida na íntegra), Desolation Road conta a história da localidade homónima, de uma povoação surgida por puro acaso na orla do Grande Deserto, junto ao caminho-de-ferro da poderosa corporação ferroviária Bethlehem Ares Railroads. Uma localidade que passaria à margem da História, não fossem todos os destinos do planeta ter passado pelas suas ruas durante as suas poucas décadas de existência. E Desolation Road, a povoação, acaba por se revelar uma personagem tão fascinante como as várias personagens que a fundaram, que nela nasceram, que por ela passaram - e cujas acções, ordinárias ou extraordinárias, mudariam o mundo para sempre.

A história começa com um mosaico, mostrando em capítulos curtos e evocativos (adjectivo que será repetido) a sucessão de acasos e de coincidências que deu origem à povoação - da travessia do deserto de Dr. Alimantando, cientista e founding father de Desolation Road, à fuga de Mr. Jericho e dos seus "Exhalted Ancestors"; da deriva do clã Mandella até à chegada do errante Rajandra Das e do seu talento inato, quase mágico, para as máquinas; de Babooshka e do seu filho, Mikal, às famílias rivais Stallin e Tenebrae; dos trigémeos Gallacelli a Persis Tatterdemalion, literalmente caída do céu; de Marya Quinsana a Meredith Blue Mountain e à sua filha, Ruthie, com um poder extraordinário. À chegada acidental de Alimantando juntaram-se todas as outras, gente na sua essência simples e comum, e formou-se a comunidade - com uniões e desavenças, com descendência e mortes, com uma diáspora que geraria aventureiros, mártires, profetas, revolucionários, assassinos, oportunistas, idealistas, políticos, burocratas. Sempre na sombra de Desolation Road, do seu passado que se tornaria num futuro inescapável.

Fazendo um uso muito próprio da máxima de Clarke que diz (e não cito de cor) ser indistinguível da magia toda a tecnologia suficientemente avançada, McDonald constrói um Marte (ou Ares) futurista, terraformado pelo poder da tecnologia da ROTECH, repleto de máquinas prodigiosas, quase divinas na sua aparência - e, por vezes, na percepção. É um Marte multicultural, diversificado, a anos-luz do modelo "ocidental"  tão tradicional na ficção científica - com uma população de origens muito diversas, com crenças e cultos próprios, espalhada por locais tão diferentes e exóticos como o paraíso de Wisdom, o pesadelo burocrático de Kershaw, o antro de perdição de Belladonna. A prosa evocativa de McDonald dá uma vida própria e intensa a todos estes locais (e muitos outros) e às dezenas de personagens que os povoam, com maior ou menor protagonismo - e a combinação improvável entre elementos mais tradicionais da ficção científica com outros levantados do realismo mágico dá um efeito soberbo. Com a mesma energia nervosa e contagiante, McDonald consegue entusiasmar o leitor com uma partida de snooker ou com uma batalha entre um homem e um avatar de uma divindade; com um solo de guitarra capaz de chamar a chuva para o deserto ou com a ascensão de um burocrata para o seu pequeno poder. As imagens conjuradas são poderosas; a acção, essa, é formidável, por vezes quase cinematográfica na sua fluidez, quase mágica nas suas belíssimas metáforas, e até digna da banda desenhada em alguns momentos completamente over the top - que, longe de constituírem um problema, encaixam na perfeição neste extraordinário mosaico.

De certa forma, Desolation Road acaba por ser um romance sobre as pequenas coisas, e os pequenos acasos que acabam por nos definir e nos mudar. E esta ideia está construída de forma magistral sobre um mundo bem desenvolvido e fascinante nos seus muitos elementos, tanto naqueles que o autor apresenta como naqueles que ele faz questão de esconder, como que a dizer: há mais mundo para lá destas palavras. Como romance, seria sempre digno de todos os louvores; como primeiro romance, é um trabalho formidável de Ian McDonald - uma outra visão de Marte, merecedora de um lugar destacado ao lado de todas as outras visões que formaram, ao longo de mais de um século, o imaginário da ficção científica do Planeta Vermelho.

20 de outubro de 2013

Citação fantástica (89)

There's never been a rule of human behavior that hasn't been broken by someone, somewhere, sometime, in some circumstance mundane or spectacular. To be human is to transcend the rules.

Ian McDonald, River of Gods (2004)

17 de setembro de 2013

Fórum Fantástico 2013: Ian McDonald será o convidado principal

As engrenagens do Fórum Fantástico começam já a mexer. O britânico Ian McDonald, autor premiado de romances como River of Gods e Brasyl, será o convidado principal da convenção anual dedicada ao Fantástico nas artes, que este ano assinala a sua oitava edição. 

Ian McDonald nasceu em Manchester a 31 de Março de 1960, e reside em Belfast, na Irlanda do Norte, desde os cinco anos de idade. Em 1982 foi publicado pela primeira vez, com o conto The Island of the Dead a surgir nas páginas da revista irlandesa de ficção científica Extro. Continuou a publicar ficção curta em publicações especializadas, e em 1988 viu editado o seu primeiro romance, Desolation Road. Desde então, publicou mais de 20 romances e dezenas de contos, destacando-se pelos seus ambientes de ficção científica arrojados e improváveis em países em desenvolvimento - como bem ilustra a trilogia temática composta por River of Gods (2004), Brasyl (2007) e The Dervish House (2010), cuja acção decorre respectivamente na Índia, no Brasil e na Turquia. Para além de Desolation Road, uma homenagem a Ray Bradbury, e das suas duas sequelas, The Luncheonette of Lost Dreams (1994) e Ares Express (2001), a sua bibliografia inclui obras como Towards Kilimanjaro (1990), Chaga (1995), Planesrunner (2011) ou Be My Enemy (2012). Em 1992, aventurou-se também na banda desenhada com a graphic novel Kling Klang Klatsch, ilustrada por David Lyttleton. 

O seu primeiro romance, Desolation Road, valeu-lhe um prémio Locus na categoria "First Novel", e a colectânea King of Morning, Queen of Day alcançou o prémio Philip K. Dick na respectiva categoria em 1991. Conquistou o prémio da British Science Fiction Association (BSFA) na categoria de "Best Novel" (com River of Gods, Brasyl e The Dervish House), e venceu a categoria de "Best Novelette" dos prémios Nébula em 2007 com The Djinn's Wife. Ganhou ainda prémios Theodore Sturgeon e John W. Campbell Memorial, e foi nomeado para praticamente todos os prémios de relevo na ficção científica, do Hugo ao Arthur C. Clarke. 


16 de novembro de 2012

Brasyl, ou retratos alternativos do Brasil

O mistério de Brasyl, de Ian McDonald, começa desde logo no título, na forma alternativa como apresenta o nome do país onde, saberemos mais tarde, decorrem as narrativas. E aqui o plural é relevante, pois Brasyl apresenta não uma mas três narrativas, cada uma um pequeno fragmento de um Brasil alternativo no passado, no presente e no futuro.

Comecemos pelo passado: Em pleno século XVIII, Luís Quinn, um padre Jesuíta luso-irlandês, é enviado para o Brasil com o objectivo de trazer à justiça divina um padre renegado que se isolou no interior do território brasileiro, nas profundezas da bacia do Amazonas, e lá fundou um reino espiritual. Luís Quinn é acompanhado pelo geógrafo e filósofo francês Robert Falcon, que quer realizar uma curiosa experiência na região equatorial. A viagem de ambos rio acima é especialmente evocativa, num misto de Heart of Darkness ou Apocalypse Now! com a selva brasileira e a colonização portuguesa. Mas com o padre renegado encontram o início de um enigma antigo que os levará mais longe do que alguma vez imaginaram. 

No presente (leia-se 2006): Marcelina Hoffmann, praticante de capoeira e produtora dos mais degradantes reality shows que podemos imaginar (espero que ninguém se vá inspirar - ou se tenha inspirado - nas ideias de McDonald), tem uma ideia brilhante para um reality show que não só poderia apaixonar o Brasil, como também seria a salvação da sua carreira. A ideia parece simples: encontrar Barbosa, o guarda-redes brasileiro que não conseguiu defender o golo que deu a vitória ao Uruguai na final do Mundial de 1950, no Brasil, e levá-lo a "julgamento popular". A busca de Marcelina pelo velho guarda-redes, porém, revela-se tudo menos fácil; e começa a ter problemas sérios quando alguém começa a interferir de forma particularmente destrutiva não só na sua investigação, como também na sua vida. O que a vai levar a uma descoberta extraordinária.

Enfim, o futuro: em meados do século XXI, o Brasil está irreconhecível: uma nação cyberpunk com óculos computorizados, computadores quânticos capazes de fazer cálculos incríveis, e uma vigilância constante através de uma rede de vigilância para todos os efeitos omnisciente. Edson de Freitas, playboy e executivo de oportunidade, conhece a mulher da vida dele durante a tentativa de salvar o seu irmão de um grande sarilho - e por essa mulher acaba por se ver envolvido numa vasta conspiração que transcende o Brasil que conhece e atravessa universos inteiros.

Estas três histórias, tão diferentes no espaço como no tempo, estão interligadas através de uma trama que começa nas entrelinhas e, aos poucos, acaba por se tornar no centro de uma narrativa vertiginosa. São contadas em conjuntos de três capítulos, um de cada narrativa - uma estrutura que, tal como o título, alude à premissa central do livro e deixa uma pista quando ao enigma que une as três histórias num todo tão coerente como fascinante. Cada história de Brasyl leva-nos para um Brasil alternativo mas plausível, ao mesmo tempo familiar e estranho: uma vasta realidade na qual nada é o que parece. A escrita de McDonald é em termos gerais fluída, repleta de descrições ricas (a primeira página da história de Edson é formidável) e com um carácter quase cinematográfico. A mistura livre (e sempre lógica) de expressões de Português do Brasil com o Inglês contribui para o dinamismo narrativo e acentua o carácter exótico (e, para mim, familiar) de todo aquele universo.

Não é, de todo, um livro perfeito: algumas passagens poderiam ser mais sintéticas, e o primeiro indício de que há algo que une aquelas histórias tão diferentes surgirá talvez um pouco tarde. Algumas das influências de Ian McDonald são muito evidentes, como Heart of Darkness de Joseph Conrad (e a adaptação cinematográfica de Francis Ford Coppola, Apocalypse Now!) na história do Padre Luís Quinn, ou a trilogia His Dark Materials de Philip K. Dick, tanto na temática como em alguns elementos que surgem nas histórias (as temíveis "Q-Blades"), mas isso está longe de ser um defeito. Com a sua mistura de influências e de estilos, Brasyl é uma obra muito original na sua concepção e muito sólida na sua construção. É, acima de tudo, um olhar refrescante e muito interessante sobre um Brasil que não é, nunca foi e nunca será - e que nem por isso deixa de ser tão plausível.

12 de novembro de 2012

Clube de Leitura Bertrand do Fantástico: O Brasil no multiverso da ficção científica literária e cinematográfica

Um título pomposo para falar sobre a última sessão do Clube de Leitura Bertrand do Fantástico em Lisboa - o livro em debate foi Brasyl, de Ian McDonald, e, na falta de um convidado (não foi possível ao autor brasileiro Eduardo Spohr estar presente, conforme previsto), o Rogério Ribeiro sugeriu que se debatesse também Brazil, filme clássico de ficção científica realizado por Terry Gilliam.

A ausência de convidado foi largamente compensada pela qualidade da plateia - onde estavam, entre outros entusiastas do Fantástico, João Barreiros, António de Macedo e Luís Filipe Silva. No entanto, o formato mais "aberto" torna muito mais difícil descrever toda a conversa que decorreu durante uma hora na Livraria Bertrand. Da aparente influência de Philip Pullman em Brasyl à qualidade da trilogia temática de Ian McDonald (composta por River of Gods (2004), Brasyl (2007) e The Devrish House (2010), com histórias passadas respectivamente na Índia, no Brasil e na Turquia), da influência onírica de Philip K. Dick e Orwell em Brazil à sua qualidade de fábula que opõe a tecnocracia e a burocracia à expressão individual, das questões da impossibilidade da originalidade literária à necessidade de repetição dos argumentos cinematográficos - enfim, falou-se de tudo um pouco, numa conversa animada e divertida que, para alguns, se prolongou na Tertúlia Noite Fantástica, regressada neste mês ao restaurante Chez Degroote.

Na falta de um relato mais "vivo" da sessão, nesta semana o filme em destaque no blogue será Brazil, de Terry Gilliam (a publicar amanhã), e o livro será Brasyl, de Ian McDonald (a publicar na Sexta-feira).

9 de novembro de 2012

Clube de Leitura Bertrand do Fantástico

O Clube de Leitura Bertrand do Fantástico de Lisboa tem mais tertúlia marcada para hoje, às 19:00, na Livraria Bertrand do Chiado, em Lisboa. O livro em debate é Brasyl, de Ian McDonald, uma fascinante história tripartida pelo século XVIII, pelo presente e por um tempo algumas décadas no futuro, mas sempre com o Brasil como pano de fundo. O autor brasileiro Eduardo Spohr era o convidado para esta sessão, mas não lhe vai ser possível estar hoje presente no debate. Como alternativa, falar-se-á não só do livro de Ian McDonald, mas também do filme Brazil, de Terry Gilliam (1984) - que, não estando de forma alguma relacionada com o livro em deebate, não deixa de ser um clássico da ficção científica cinematográfica e uma visão particularmente perturbadora de um mostro burocrático. A moderar a conversa sobre livro e filme estará, como habitualmente, o Rogério Ribeiro. 

24 de agosto de 2012

Clube de Leitura Bertrand do Fantástico: Anunciados livros e convidados para as próximas três sessões (Lisboa)

As próximas sessões do Clube de Leitura Bertrand do Fantástico de Lisboa já têm data marcada, livros escolhidos e convidados - com a devida antecedência para que todos os interessados tenham tempo de colocar as leituras em dia. A agenda será:

12 de Outubro: The Time Traveler's Wife, de Audrey Niffenegger (2003). O romance de estreia da norte-americana Audrey Niffenegger é uma história de amor através do tempo, entre Clare Anne Abshire e Henry DeTamble -  que, devido a uma desordem genética muito invulgar, viaja no tempo de forma involuntária e fora de controlo, sem saber onde vai parar. The Time Traveler's Wife foi adaptado para o cinema em 2009 por Robert Schwentke, com Eric Bana e Rachel McAdams. O convidado desta sessão é o autor Bruno Martins Soares, que este ano concluiu A Saga de Alex 9, trilogia recentemente reeditada pela Saída de Emergência num único volume. 



9 de Novembro: Brasyl, de Ian McDonald (2007). Nomeado para os principais prémios internacionais de ficção científica em 2008 e 2009, Brasyl é uma narrativa tripartida, dividindo-se pelo tempo presente, pelo futuro em meados do século XXI e pelo século XVIII - mas sempre no Brasil. Muito apropriadamente, o convidado para a sessão dedicada a este livro é o primeiro convidado internacional do Clube de Leitura (pelo menos em Lisboa) - o autor brasileiro Eduardo Spohr, cujo livro A Batalha do Apocalipse foi publicado em Portugal pela Editorial Presença. 





7 de Dezembro: Lord of Light, de Roger Zelazny (1968). Distinguido com o Prémio Hugo na categoria "Best Novel" em 1968 (e nomeado para o Nébula), Lord of Light passa-se num planeta distante e hostil no qual os colonos da nave espacial "Star of India" se vêem obrigados a sobreviver. E para isso recorrem à tecnologia que dominam, alterando as suas mentes, reforçando os seus corpos e alcançando até uma forma de quase imortalidade... O convidado para a sessão sobre este clássico da ficção científica será o escritor João Leal, que publicou em 2011 o romance Alçapão, na Quetzal.