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16 de maio de 2014

The Colors of Magic: Magia variável em ficção curta

É bem possível que mesmo quem não esteja especialmente familiarizado com o jogo de cartas coleccionáveis Magic: the Gathering conheça alguns dos seus elementos mais populares - como a divisão em cinco cores, distintas, representando aspectos diferentes da magia. Esse é, aliás, um dos elementos fulcrais do jogo em si: cada cor tem os seus elementos individuais e a sua identidade própria. De forma muito simplificada, associa-se o branco à luz, ao zelo, à justiça e à ordem; o azul ao mar e ao céu, à manipulação e ao controlo; o preto à ambição, à corrupção, à morte; o vermelho à criatividade, à imaginação, à fúria e ao fogo; e o verde à força primitiva da natureza, selvagem e indomável. Como é natural, estes elementos acabaram por ser transpostos - e de forma sempre interessante, diga-se de passagem - para a narrativa que desde os tempos de Ice Age serve de suporte temático às cartas coleccionáveis e respectivas ilustrações. E, em 1999, serviu de mote para uma antologia de ficção curta inspirada no universo ficcional de Magic: the Gathering, com o muito apropriado título de The Colors of Magic

Organizada por Jess Lebow, The Colors of Magic reuniu autores ligados aos universos ficcionais dos jogos de cartas coleccionáveis e de role-play e desafiou-os a escreverem contos a partir das cinco cores de magia, que podiam ou não estar directamente ligados às narrativas recentes daquele tempo - como, por exemplo, The Brothers' War, talvez a história mais célebre de Magic. O resultado é uma colecção de onze histórias que, não sendo homogéneas em termos qualitativos (algo que é comum, para não dizer inevitável, em antologias de ficção curta), conseguiram capturar de forma muito interessante e imaginativa a essência temática do jogo, transpondo-a com competência para um suporte ficcional. Vejamos algumas delas:

Angel of Vengeance, de Richard Lee Byers: É bem possível que Angel of Vengeance, a história que abre a antologia e uma das duas em representação da cor branca, seja a melhor da colecção. Mais ligada à identidade da cor do que às narrativas já estabelecidas (Byers apenas se socorre de uma mão-cheia de referências), o autor conta a história de Kotara, um anjo conjurado do seu refúgio celestial para o mundo terreno em nome de um pacto antigo, com o propósito de fazer justiça em nome de Sabul Hajeem, guildmage de uma cidade no reino de Zhalfir. Essa demanda por justiça cedo de transforma numa cruzada de vingança que Kotara se vê obrigada a levar a cabo, mas não sem consequências. E são essas consequências, e o drama de Kotara, que tornam Angel of Vengeance num conto tão intenso e tão memorável. 

O outro conto que representa a cor branca na antologia é Reprisal, de Tom Loepold.

A Song Out of Darkness, de Loren L. Coleman: The Colors of Magic inclui vários contos que, podendo ser lidos de forma individual e sem qualquer outro enquadramento (os autores fornecem todo o contexto), acabam por ser sequelas funcionais da história dos irmãos Mishra e Urza que Jess Grubb contou no excelente The Brothers' War; A Song Out of Darkness, escrito por Loren L. Coleman em representação da cor verde, é um desses contos. Coleman utiliza uma personagem nova, um elfo do reino de Argoth que sobreviveu ao desastre que a guerra dos dois irmãos levou até à sua ilha-floresta (e a todo o mundo de Dominaria) e que procura, numa terra pantanosa estranha com uma magia desconhecida, outros sobreviventes da guerra - acabando por encontrar Gwenna, que anos depois do cataclismo se continua a culpar pelo seu gesto de misericórdia. Da justaposição dos elementos primordiais do verde e da sombra do seu inimigo natural, o preto, nasce uma fascinante e algo melancólica história de redenção, bem integrada no universo ficcional em que se baseia, explorando de forma muito competente uma personagem outrora secundária.

O outro conto que representa a cor verde na antologia é Versipellis, de Paul B. Thompson.

Goblinology, de Francis Lebaron: Sem qualquer exagero, Goblinology é um dos contos mais hilariantes que já tive oportunidade de ler - e é sem dúvida um dos melhores da antologia. Na sua exploração da cor vermelha, Francis Lebaron optou, como o título indica, por recorrer àquela que será talvez a criatura mais icónica desta cor (mesmo mais que os dragões, arrisco): os goblins. E fá-lo num formato tão invulgar como... académico. Em termos práticos, todo o texto de Goblinology é a tese académica de Armand Ar-basinno, professor de cultura popular e goblinologia na Universidade de Argive a propósito das ruínas de goblins encontradas num lugar conhecido como Flarg, mas na versão revista e anotada de um dos seus alunos, Latavino Bar-bassanti. E o humor do conto reside precisamente no confronto da interpretação lunática (e bem regada) do professor e da visão mais terra-a-terra (e cínica) do aluno - com Lebaron a construir uma imagem hilariante da cultura goblin enquanto, de forma algo inesperada, tece uma crítica muito pouco velada à massificação do fenómeno desportivo. 

A representar a cor vermelha encontramos ainda o conto The Crucible of the Orcs, de Don Perrin.

Dark Water, de Vance Moore: O único conto da antologia que representa a cor preta conta a história de Tavya e Loria, duas primas de uma família abastada caídas em desgraça após a prática de rituais de magia negra que, começando por ser secretos, cedo passaram a rumores sussurrados na cidade - até que um ritual correu horrivelmente mal e as obrigou a se exilarem longe da civilização, numa cabana miserável entre o seu pombal (mais cuidado do que a casa) e um lago cristalino, com um pequeno charco séptico por perto. Entre a sua subsistência pobre e os seus rituais ao espírito maligno que levaram para o charco, as duas primas sonham em regressar aos tempos de outrora, quando eram jovens, belas e poderosas - mas, como antes, talvez não tenham a exacta noção das forças com que estão a lidar. Longe de ser um dos melhores contos da antologia, Dark Water nem por isso deixa de ser uma exploração interessante da identidade da cor preta no universo de Magic, com a ideia da ambição desmedida e do poder a qualquer custo (e pombos zombie) a serem centrais à narrativa. 

Expeditions to the End of the World, de J. Robert King: Tal como A Song Out of Darkness, também este conto, que representa a cor azul, acaba por se enquadrar na grande narrativa de The Brothers' War ao mostrar uma faceta curiosa da guerra - a sua exploração comercial. A história começa com o Capitão Crucias, que transporta passageiros de classe alta dos reinos costeiros de Terisiare para a costa da ilha-floresta de Argoth, palco derradeiro da guerra entre os exércitos humanos e mecânicos de Urza e Mishra, para que possam contemplar a devastação (como se fosse um espectáculo) e, com alguma sorte, assistir a alguma escaramuça a partir de uma distância confortável. Naquele dia, porém, não haverá em Dominaria qualquer distância confortável: Urza utiliza o Golgothian Sylex de acordo com as instruções de Ashnod e desencadeia o cataclismo que oblitera Argoth, devasta metade do mundo e mergulha o restante numa longa era glacial. Apanhado na borrasca, Crucias vê-se numa situação desesperada - e entre o seu desejo de morrer e o desejo de uma criança viver, vai relembrar o seu passado trágico. É uma história contada a dois tempos, entre o passado e o presente do capitão - e ambas as partes funcionam muito bem.

The Mirror of Yesterday, de Jonathan Tweet, e Bound in Shallows, de Kevin T. Stein, representam também a cor azul na antologia.

Loren's Smile, de Jeff Grubb: Sem surpresa, o autor de The Brothers' War assina também uma sequela directa àquela história - e fá-lo em representação da gold border, da cor dourada que representa a combinação de duas ou mais cores diferentes. Loren e Feldon são duas personagens secundárias, mas relevantes, da história de Urza e Mishra, que procuraram um caminho alternativo ao dos dois irmãos. Loren acabou por morrer debilitada pelas sequelas da guerra, dez anos após a tragédia de Argoth; e Feldon, incapaz de lidar com o luto pela morte da mulher que amava, lança-se numa demanda pelos cinco aspectos da magia, e pelo artífice, de a recuperar. Loren's Smile é um conto especialmente tocante: uma história de amor e de luto que explora de forma excepcional o tema das cinco cores da magia, e lhes dá toda uma nova dimensão. 

31 de agosto de 2012

The Brothers' War, ou como no universo dos jogos também se encontram boas narrativas literárias

Ao contrário do que acontece no cinema, na televisão e na literatura, onde os géneros do Fantástico são remetidos para um nicho e com frequência considerados “menores”, na indústria dos jogos (convencionais* e de vídeo) as narrativas de Fantasia, Ficção Científica e Horror constituem uma parte relevante e inalienável do mainstream. Poderia dedicar um blogue inteiro apenas a esse tema sem o esgotar - a verdade é que sempre que nos embrenhamos em Magic: The Gathering, Dungeons & Dragons, World of Warcraft, Silent Hill ou Mass Effect, entre muitos outros jogos, estamos a entrar em universos do Fantástico, com narrativas que acompanham as suas várias convenções (e que, não raro, ajudaram a cristalizar algumas dessas convenções). Não é por isso de estranhar que os jogos tenham adoptado a literatura para permitir uma maior exploração das suas narrativas, expandindo-as para além dos limites impostos pelo formato**. Independentemente das considerações e generalizações que possam ser feitas sobre estes livros e a sua qualidade, a verdade é que têm sido para muitos jovens uma introdução ao fantástico literário (quando não mesmo uma introdução ao hábito de leitura), proporcionando leituras simples e interessantes nos universos explorados nos jogos. Podemos, com mais ou menos legitimidade, diminuir as “novelizações” de Dungeons & Dragons ou Warcraft (por exemplo); julgo contudo que seria muito mais interessante avaliar a importância destes livros para que muitos jovens se tenham interessado pela leitura, e para que hoje se dediquem a autores consagrados do género. 

Serve esta longa introdução para falar de The Brothers’ War, novelização (passe o neologismo) de um dos principais arcos narrativos do jogo de cartas coleccionáveis Magic: The Gathering. Escrito pelo norte-americano Jeff Grubb e publicado em 1999, The Brothers' War é um dos dois livros responsáveis pelo meu gosto aos géneros do Fantástico***, pelo que serei sempre algo parcial no seu elogio. Mas a verdade é que The Brothers’ War é um livro muito bem conseguido, com personagens excelentes, uma intriga sólida e um enquadramento notável que afasta o livro da high fantasy mais convencional para o aproximar de uma espécie de steampunk no qual o vapor enquanto fonte de energia é substituído por objectos misterioros designados por "powerstones". 

A narrativa decorre em Terisiare, uma dos vários continentes do mundo de Dominaria (muito familiar para qualquer jogador de M:tG). No vasto deserto que domina o centro do continente, uma caravana aproxima-se do campo de Tocasia, uma conhecida arqueóloga da nação costeira de Argive, que vive no deserto profundo com os seus estudantes à procura de vestígios da antiga civilização Thran, misteriosamente erradicada milhares de anos antes. Com a caravana chegam dois irmãos de uma família nobre de Argive, ainda crianças, fugidos às intrigas políticas do reino. Urza e Mishra não poderiam ser mais diferentes entre si, como se cada um fosse uma face da mesma moeda. Fisicamente mais frágil mas dotado de uma inteligência invulgar, Urza é mais dado à introspecção, à análise, à teoria; já Mishra, mais forte, revela-se mais sociável, e a sua inteligência, apesar de não ser inferior à do irmão, é essencialmente de natureza prática. Apesar das diferenças, os dois irmãos são inseparáveis, e juntos fazem algumas das mais relevantes descobertas sobre os Thran e as fantásticas máquinas que estes construíam, movidas com a energia de “powerstones” cuja origem se perdeu com o passar dos séculos. Urza e Mishra conseguem reconstruir uma máquina voadora dos Thran - o ornitóptero - e, através dele, descobrem as misteriosas ruínas de Koilos. O que encontram lá dentro, porém, irá dividi-los de forma irreversível, e os caminhos separados que vão tomar conduzi-los-ão inevitavelmente a uma guerra que arrastará todo o continente de Terisiare e mudará Dominaria para sempre.  

Quem esperar encontrar em The Brothers’ War magia a rodos e grandes combates pirotécnicos entre feiticeiros e vastos exércitos de criaturas mitológicas ou tolkenianas, desengane-se: aparecem Elfos (poucos, por pouco tempo, e com pouca sorte), são mencionados Anões, mas na sua essência esta é uma história de humanos e com humanos que, na sua maioria, possuem mais argúcia do que magia. Devido à sua educação, Urza e Mishra interessam-se mais por máquinas do que por pessoas - e, por isso, a longa guerra recorre sobretudo a artefactos e prodigiosas máquinas de guerra, desde ornitópteros convertidos em bombardeiros a gigantescos dragões e titãs mecânicos. Claro que a magia acabará por ter um papel determinante na narrativa (como não podia deixar de ser, dado o universo onde nos situamos), mas esta ainda é uma força nascente, e por isso de controlo particularmente limitado (a primeira cena em que aparece, no entanto, é memorável). 

Urza e Mishra são os protagonistas, os irmãos em guerra que dão o título a esta história. A eles juntam-se outras personagens relevantes, como os respectivos aprendizes Tawnos e Ashnod; Kayla Bin-Kroog, princesa do reino de Yotia, e o seu filho, Harbin; Loran e os estudantes da cidade de Terisia; Gix, a misteriosa criatura do mundo artificial de Phyrexia, com uma agenda própria no conflito; e Gwen de Argoth. É à volta destas personagens, e das relações (não necessariamente amorosas) que se estabelecem entre elas, que se desenvolve a intriga que faz mover a narrativa. Numa época como a presente em que a fantasia épica se parece ter virado menos para a intriga em detrimento do clássico sword & sorcery, The Brother’s War parece ainda mais actual do que era em 1999. A trama pode não ter a complexidade, por exemplo, da obra de George R. R. Martin, mas as motivações dos principais personagens dentro do conflito são suficientemente interessantes para manter interessados os leitores mais ávidos por este tipo de ficção. 

Quem, contudo, preferir a boa e velha magia, também terá motivos para gostar deste livro (se bem que a base da magia em The Brothers’ War, assente nas cinco cores de elementos diferentes, seja bastante familiar a quem joga ou jogou M:tG), sobretudo à medida que o final se aproxima. Por fim, quem tem abraçado a recente tendência do steampunk deverá olhar com interesse para os artefactos e as inúmeras construções mecânicas que Urza, Mishra (e Gix) desenvolvem para travar a sua guerra épica, e talvez até com o próprio conceito de Phyrexia. 

The Brothers’ War foi publicado com o rótulo Magic: The Gathering, que terá sem dúvida diminuído de forma considerável a sua projecção. O que não deixa de ser uma pena: a escrita de Jeff Grubb, não estando obviamente ao nível da de um Tolkien ou de um Pullman (quem está?), é bastante competente e confere àquele mundo e àquelas personagens a densidade e a ambiguidade necessárias para a narrativa funcionar. Na sua essência, The Brothers’ War é uma excelente história muito bem contada. Não fosse o rótulo, e provavelmente seria hoje considerada uma obra essencial dos últimos 20 anos do género. Para mim, contudo, é um livro formidável. Não o posso recomendar mais. 

(A quem interessar, a edição que mostro na imagem é bastante difícil de encontrar hoje em dia. Há, no entanto, uma edição omnibus intitulada Artifacts Cycle I que junta The Brothers’ War a The Thran, livro de J. Robert King publicado com o bloco de cartas de Invasion que conta a história da queda do império Thran e da ascensão de Yawgmoth em Phyrexia (e este é também muito bom). Em termos de sequelas directas, a narrativa de The Brothers’ War tem continuidade em Planeswalker, de Lynn Abbey, Time Streams, de J. Robert King, e Bloodlines, de Loren L. Coleman (os dois primeiros também são muito interessantes). Estes três volumes estão também reunidos na edição omnibus Artifacts Cycle II. Ambas as edições são de 2009 e relativamente fáceis de encontrar.) 

*Note-se que por “convencionais” refiro-me a jogos não virtuais, como jogos de cartas coleccionáveis, de tabuleiro ou de pen & paper - e não à malha ou à bisca lambida. 

**Dois pontos: se na literatura podemos encontrar bons livros baseados em jogos, no cinema a coisa fica bem mais difícil: tanto quanto sei, apenas Silent Hill deu origem a um filme acima de mediano (Resident Evil, por exemplo, é o que se sabe). Por outro lado, existe já um exemplo muito interessante de um videojogo que é a adaptação para o formato de um livro, o que também coloca algumas coisas em perspectiva. 

***O outro, como referi aqui, é The Snow Queen, de Joan D. Vinge