Mostrar mensagens com a etiqueta resenha. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta resenha. Mostrar todas as mensagens

13 de abril de 2012

Nightfall

A nós, que sempre vivemos num ciclo onde dia e noite se sucedem, a noite e as estrelas no céu nocturo não fazem confusão. São a vista normal, e sempre bem vinda, no momento em que o Sol desaparece para lá do horizonte e a escuridão se instala. Mas imaginemos por um momento que não conhecíamos outra realidade que não a do Sol, a do dia; que no nosso mundo, o Sol nunca se escondia, e a noite nunca caía; imaginemos que vivíamos todos num dia perpétuo, e que desconhecíamos por completo as trevas - neste mundo, como reagiríamos se o Sol desaparecesse e a escuridão da noite se instalasse?

Esta é a premissa fundamental de Nightfall, romance de Isaac Asimov e Robert Silverberg baseado num conto escrito por Asimov em 1948 - e considerado por muitos um dos melhores contos de ficção científica de sempre. Os habitantes do planeta Kalgash (no resto, muito parecido ao nosso) não conhecem a noite, nunca viram as estrelas - o complexo sistema de seis sóis que ilumina o planeta mantém aquela sociedade num dia eterno desde - pensa-se - o início dos tempos. Mas esse dia pode estar a chegar ao fim, e vemos os indícios disso mesmo através de vários pontos de vista: do psicólogo Sheerin, que se dedica a estudar a loucura e a histeria induzidas por exposição às Trevas; do astrónomo Beenay, que descobre uma falha fundamental nos cálculos da órbita de Kalgash em redor do seu principal sol, Onos; da arqueóloga Siferra, que descobre numa escavação indícios de um cataclismo civilizacional a intervalos regulares; do jornalista Theremon, que investiga estas informações e começa a juntar as várias peças do puzzle; e dos "Acolytes of Flames", um culto religioso que acredita que os deuses vão enviar o mundo para as trevas, e purificá-lo do pecado através do fogo divino das "estrelas", que ninguém sabe o que são. Mas o que acontecerá quando os sóis desaparecem e a escuridão se instalar? O conto original de Asimov termina nesse ponto, no anoitecer; mas a narrativa de Asimov e Silverberg vai mais longe, e expande a história para além da noite, para a manhã de Kalgash. 

A todos os níveis, Nightfall foi uma surpresa constante: é uma história extremamente bem contada, com personagens sólidas e um enredo surpreendente até ao final. Numa época em que os mais fracos argumentos dão origem a "filmes-catástrofe" de fraquíssima qualidade, não percebo como ainda ninguém pensou em adaptar, com a devida mestria, este conto ao grande ecrã (ao que parece, já houve algumas adaptações, também sofríveis).

6 de abril de 2012

Starship Troopers

Mais do que contar uma história, Starship Troopers, obra polémica de Robert A. Heinlein, recorre aos mecanismos de uma narrativa de ficção para desenvolver um longo - e muito interessante - ensaio militar, político e mesmo social. De facto, muitos são os momentos em que temos a sensação de que a trama - a progressão de "Johnnie" Rico na "Mobile Infantry" durante o conflito espacial com uma espécie alienígena, os "Aracnídeos" - tem como único propósito servir de veículo à visão da sociedade futurista que Heinlein descreve: uma sociedade saída da queda das democracias ocidentais do século XX, e que vive naquilo a que (muito livremente) chamaria de "democracia militar". Nesta sociedade, os direitos plenos de cidadania apenas são adquiridos após a conclusão de um período de serviço militar voluntário; quem não o fizer, não poderá votar ou candidatar-se a cargos públicos, mantendo porém outros direitos cívicos como liberdade de expressão ou de associação. Os castigos corporais são relativamente comuns, também.

As personagens, essas, mais do que serem fundamentais à evolução do enredo, são fundamentais à reflexão do próprio autor. Por exemplo, é através do Coronel Dubois e das suas aulas de História e Filosofia Moral, recordadas em constantes analepses, que uma parte significativa da mensagem da história é transmitida - e é através da recordação de Johnnie dos constantes debates daquelas aulas que o leitor compreende a formação daquela sociedade, e os diferentes factores que a sustentam. Para além de o próprio Dubois ser uma fonte aparentemente inesgotável de conhecimento militar, histórico e táctico, que Heinlein não se cansa de partilhar com o leitor.

Mas não se pense que Starship Troopers, sendo uma obra tão marcadamente ideológica, perde por isso a sua qualidade narrativa. A verdade é que a história, apesar de relativamente simples, funciona muito bem, e a constante ideologia presente não impede o leitor de "entrar" realmente naquele mundo - ajuda-o, aliás, na percepção de todo o enquadramento narrativo. Para além, claro, de todas as cenas do treino militar, e da acção frenética, sempre na primeira pessoa, dos combates. E, claro, da escrita de Heinlein - simples, fluída, ritmada.

Mas Starship Troopers não foi (é) apenas um livro polémico - é também uma obra extremamente influente, e não só em termos literários - não fosse, afinal, Heinlein um dos "três grandes" da ficção científica, a par dos mestres Isaac Asimov e Arthur C. Clarke. O filme foi transposto para o cinema em 1997 por Paul Verhoeven, numa adaptação simpática que deixa a filosofia de lado para se focar na acção. Mas a influência de Starship Troopers é anterior ao filme. Aliens, de James Cameron, tem influências óbvias da obra de Heinlein. E os próprios criadores do jogo Starcraft reconheceram a obra como uma das influências determinantes na criação daquele universo.

Adaptado deste post do Delito de Opinião

23 de março de 2012

A Clockwork Orange

A Clockwork Orange (Laranja Mecânica), de Anthony Burgess, faz parte daquele grupo muito restrito de literatura de ficção científica cuja enorme popularidade - e polémica - saiu dos círculos restritos do género e se tornou numa referência - tal como Nineteen Eighty-Four, de Orwell, or Farenheit 451, de Bradbury. Para isso não terá sido de todo indiferente a adaptação cinematográfica realizada por Stanley Kubrick, em 1971 (sublime, mas lá chegaremos). De facto, pensar na revolta adolescente literária obriga-nos, invariavelmente, a passar por Alex, o protagonista da distopia de Burgess.

A Clockwork Orange é a história de Alex, narrada pelo próprio no peculiar "dialecto" que fala - o "Nadsat", cunhado pelo próprio Burgess, um misto de Inglês corrente com Inglês antigo, Russo, cockney (expressões da classe operária britânica), e mais algumas criações do autor -, que torna a leitura particularmente desafiante. É a história de uma Inglaterra futurista, distópica, a braços com a violência e o crime - duas áreas nas quais Alex e o seu bando de droogs são especialistas. É a história das incursões de Alex pela violência e pelo crime, até ao momento em que tem de pagar pelos seus actos. E é a história da sua "reconversão" brutal, da sua transformação na "laranja mecânica" a que alude o título da obra e o título de um livro dentro do livro. Essa transformação, numa feroz crítica às teses comportamentalistas de John Watson (e, antes dele, de B.F. Skinner e Pavlov, se quisermos), consiste em num condicionamento, com efeitos secundários curiosos, que torna os visados incapazes, física e emocionalmente, de cometer o mal. Mas se o bem e o mal são uma escolha moral, continuaremos a ser humanos se nos tornarmos incapazes de a tomar? A resposta chegará pela voz do protagonista, à medida que a narração da sua história prossegue.

Como disse, é um livro desafiante, sobretudo devido à original linguagem (não consigo imaginar uma tradução), mas a sua leitura é muito recompensadora. Alex não só é uma personagem fascinante, como também é um narrador cativante; e a sua história levanta inúmeras questões, bem mais do que respostas definitivas. No fundo, é também isso que fazem aqueles livros que ficam para sempre.

Alguns apontamentos sobre a adaptação cinematográfica de Stanley Kubrick. Para todos os efeitos, é uma adaptação extraordinária (um dos raros filmes de ficção científica a ser nomeado para o Óscar de Melhor Filme), porventura das melhores passagens de livro para película que já foram feitas. Malcolm McDowell representa um Alex inesquecível, tanto nos momentos de maior perversidade como nos de mais profundo desespero. É um vilão/vítima por definição: a sua personagem encerra estas duas vertentes de forma indissociável. Tanto do ponto de vista narrativo como visual, A Clockwork Orange, o filme, é imperdível; se Kubrick pecou na adaptação, foi por defeito - o livro consegue ser ainda mais cru, explícito e perverso. Mas há um pormenor interessante: Kubrick baseou-se na edição americana do livro para realizar o filme e, à época, essa edição omitia o último capítulo do original de Burgess. Isto, note-se, não retira qualquer mérito ao filme; mas o final omitido acaba por, de certa forma, dar uma nova dimensão a Alex. 



10 de março de 2012

The Moon Is a Harsh Mistress

Imaginemos um mundo futurista por volta do ano de 2075, em que as nações da Terra deram lugar a "super-nações" de dimensões continentais, e em que a colonização da Lua é uma realidade. Ou antes: em que a utilização das cidades subterrâneas (sublunares?) da Lua como uma enorme colónia prisional é uma realidade. Imaginemos que, nessa colónia, um técnico de computadores individualista e apolítico, uma agitadora profissional, um professor reformado que se define como "anarquista racional" e um supercomputador tão complexo que ganhou consciência própria acabam por se aliar para colocar em prática uma revolução que dê à Lua o estatuto de "nação independente". Quais seriam as probabilidades de sucesso dessa revolução? E como executá-la?

Este é o ponto de partida de The Moon Is a Harsh Mistress, obra premiada de Robert A. Heinlein, que aborda os aspectos teóricos de uma revolução colocando-a em prática neste cenário de ficção científica através de personagens improváveis, mas muito interessantes. Heinlein disserta sobre a natureza das revoluções, sobre o seu planeamento, sobre os factores aleatórios que, em muitos casos, as precipitam e as levam para direcções imprevisíveis - nunca esquecendo as lições que a História ensinou, como as revoluções americana e russa. E a revolução acaba por ser um pretexto para o autor explorar remas relacionados com a família, o patriotismo, a guerra, a forma de governo (existe até uma curiosa passagem sobre a monarquia, a propósito de um personagem que se afirma monárquico), e a economia - aqui, opondo o modelo libertário praticado pelas colónias lunares, aos vários modelos existentes na Terra (que todos conhecemos). Há quem diga que Heinlein terá até sido o primeiro autor a referir em livro a ideia de "não há almoços grátis" (muito associada a Milton Friedman), através da sigla TANSTAAFL (There Ain't No Such Thing As A Free Lunch), presença constante ao longo de todo o livro e, diria, base ideológica de toda a obra. Tudo isto sem nunca descurar a componente científica, de uma precisão considerável.

The Moon Is a Harsh Mistress consegue, para além de ser uma obra extremamente inteligente, ser uma leitura muito divertida. Desde o primeiro momento, em que "Mike", o computador consciente, adquire sentido de humor e procura compreendê-lo, até todas as peripécias que decorrem da revolução. Sem dúvida, uma leitura mais do que recomendada.

[adaptado deste post no Delito de Opinião]

24 de fevereiro de 2012

Childhood's End

Há livros que lemos e dos quais gostamos muito. Bastantes, até. Que percebemos, antes mesmo de concluírmos a leitura, que são muito bons, extraordinários até, geniais. Que tornamos a ler com gosto, uma, duas, três vezes. Que recomendamos a todos os nossos amigos que leiam também. Mas há poucos livros que nos marquem verdadeiramente. Que nos atinjam em cheio. Que nos deixem sem palavras quando lemos as últimas linhas. Que nos deixem a pensar “que raio aconteceu?”, tal é o impacto que causaram. Que nos roubem todo o entusiasmo para deles falar, pois nem saberíamos ao certo por onde começar. Childhood's End, de Arthur C. Clarke, é um desses raros livros.

Childhood's End começa com o primeiro contacto alienígena com a civilização humana. E que contacto: justamente quando a civilização humana se prepara para a primeira expedição a Marte, naves enormes, do tamanho de cidades, entram na atmosfera terrestre e param a flutuar sobre as principais metrópoles do mundo (isto lembra algum filme da década de 90?). Os seus ocupantes, identificados apenas como “Overlords”, tomam a partir desse momento conta dos destinos da Terra. Por meios pacíficos: em momento algum existe qualquer acção violenta contra os nativos do planeta, nem sequer por retaliação. É com os Overlords que nasce a utopia: a sua chegada põe fim a todas as guerras (até à violência contra animais), dá origem a um Governo Mundial baseado na ONU, e abre as portas a uma época de prosperidade sem paralelo na história. Mas nunca se deixam ver; limitam-se a pairar durante anos, no interior das suas gigantescas naves, sobre as cidades da Terra; tratam de todos os assuntos de governação com o Secretário-geral das Nações Unidas, único ser humano a ter acesso a uma nave dos Overlords. Mas nem este sabe qual é o aspecto dos alienígenas. O que, ao longo da primeira parte da narrativa, vai suscitando algumas perguntas: da curiosidade sobre o seu aspecto até à razão que os trouxe de tão longe (supõe-se que venham de longe, mas ninguém sabe ao certo de que canto do Universo vieram os visitantes), e, para alguns, qual é o preço a pagar pela Utopia?

Esta será a última questão a ser respondida – e precisamente aquela que me fez ler a última parte do livro de uma assentada, à mesa de um café num final de tarde. Mais do que uma fértil imaginação ou um tremendo conhecimento científico, que se nota nos mais pequenos detalhes (convém não esquecer que foi Clarke quem concebeu a ideia de utilizar - no mundo real - satélites geoestacionários para comunicações, em 1945), Clarke é um contador de histórias nato, capaz de tecer toda a teia da narrativa de forma a manter o leitor interessado, até ao ponto em que simplesmente não se consegue parar de ler. Com Rendezvous With Rama, também foi assim. E também, já um pouco longe das leituras, com uma das mais icónicas obras cinematográficas de sempre, que tem também a sua imortal assinatura: 2001 – A Space Odyssey. Childhood's End não conta com qualquer adaptação cinematográfica, apesar de um guião estar perdido no “development hell” há largos anos. Esperemos que, quando (ou se) ver a luz do dia, faça jus à extraordinária obra de Arthur C. Clarke.


16 de fevereiro de 2012

Foundation



Consta que quando em 1966 foi criado o prémio Hugo para "All-Time Best Series" (o único atribuído até à data), toda a gente pensou ser este um galardão feito à medida para J.R.R. Tolkien e a extraordinária obra The Lord of the Rings. O prémio, no entanto, acabou por calhar a outra trilogia: Foundation.
Isaac Asimov foi - é - considerado um dos "três grandes" da ficção científica, a par de Arthur C. Clarke e de Robert A. Heinlein. Com toda a justiça, diga-se de passagem: as super-citadas "Três Leis da Robótica" são da sua autoria, assim como a série Robot (parte integrante do universo de Foundation), um dos mais famosos contos de ficção científica de todos os tempos (Nightfall) e, claro, Foundation - uma obra que é sem dúvida um dos textos essenciais do género.

A história de Foundation tem início num futuro distante, no qual a raça humana colonizou a espiral da Via Láctea de uma ponta à outra, na forma de um Império Galáctico que se estende por milhões de planetas e governa triliões de pessoas. A capital do Império, perto do centro da Galáxia, é a cidade-planeta de Trantor – e nela vive Hari Seldon, o eterno (e ausente) protagonista da série, o matemático prodigioso que estabeleceu o princípio de que o futuro da raça humana, enquanto observação das massas, pode ser previsto e determinado com precisão através de equações matemáticas. Nasce assim a “Psicohistória”, ramo científico que deu a Seldon e aos seus seguidores a capacidade de ver o declínio do Império, já em curso, e a sua inevitável queda, à qual se seguiriam trinta milénios de barbárie em redor de estilhaços da civilização espalhados entre as estrelas.

Pretendendo alterar o curso da História e reduzir o período de ocaso da humanidade para apenas um milénio, Seldom embarca numa viagem, com todos os seus cientistas, para o distante planeta de Terminus, na orla da Galáxia. E em Terminus nasce a Fundação, uma cidade dedicada ao projecto de elaborar uma “enciclopédia galáctica”, um repositório de conhecimento científico que permitisse à raça humana renascer após as trevas da queda do Império.

Seldon prevê, através da Psicohistória, que a Fundação teria de atravessar várias “crises” ao longo dos tempos. E são essas crises que, em termos de estrutura narrativa, marcam as cinco partes de Foundation: a primeira, em jeito de prólogo, narra a história da partida de Seldon de Trantor e o estabelecimento da Fundação; a segunda parte, intitulada “os Psicohistoriadores”, conta a história da Fundação após a morte de Seldon e a nascente sociedade de Terminus governada pelos seus sucessores; a terceira parte tem o título “The Mayors”, e mostra uma Fundação já governada pelo poder político, e envolvida em tensões político-económicas com os mundos que lhe estão mais próximos à medida que o declínio do Império se acentua e este perde o controlo da periferia galáctica; na quarta parte, intitulada “The Traders”, narra a ascensão do poder económico tanto no interior da Fundação, em Terminus, como na sua expansão para os mundos próximos; e, por fim, a quinta parte da história revela uma Fundação dominada pelo poder económico, que leva a sua influência a vários mundos da orla da galáxia – muito adequadamente, esta parte tem o título de “The Merchant Princes”. Todas estas etapas, que abrangem um período de sensivelmente 150 anos, foram matematicamente previstas por Hari Seldon, que determinou com exactidão a natureza de cada crise.

A história de Foundation não acaba aqui: a série tem um total de sete livros, com quatro sequelas e duas prequelas ao livro original. A Foundation segue-se Foundation and Empire, Second Foundation, Foundation’s Edge e Foundation and Earth; Prelude to Foundation e Forward the Foundation narram os eventos que antecederam a partida de Seldon e o estabelecimento da Fundação. Para além disso, Asimov integrou no universo de Foundation as séries Robot e Galactic Empire, assim como vários contos dispersos - até mesmo o romance Eternity's End acaba por estar, de certa forma, ligado a Foundation. Essas histórias, que eu mesmo ainda estou a descobrir (apenas li os sete livros da série principal), deixo-as à curiosidade do leitor.

(adaptado deste artigo publicado originalmente no Delito de Opinião)

3 de fevereiro de 2012

The Colour of Magic

No início deste ano, defini como resolução para 2012 ler a série Discworld, de Terry Pratchett. Não necessariamente toda, claro – de 1983 até ao presente, Pratchett escreveu um total de 39 livros desta série não-linear e incrivelmente popular*. E apesar do débil estado de saúde do autor – a quem foi diagnosticada Alzheimer – parece que ainda está a tentar concluir e publicar pelo menos mais uma aventura de Discworld.

Discworld não obriga a uma leitura dos livros por ordem cronológica. Ao longo dos 39 volumes, Pratchett desenvolveu um sem-número de personagens e múltiplas narrativas que têm lugar naquele mundo plano e circular, assente sobre quatro elefantes gigantescos que vagueiam pelo Universo em cima da carapaça da Great A'Tuin, a tartaruga cósmica. A série inclui histórias de feiticeiros, de bruxas, da polícia da cidade de Ankh-Morpork, do detective Sam Vimes, da mais relevante academia de ensino de feitiçaria de Discworld, a “Unseen University”, entre outros. A minha opção, porém, foi ler a série por ordem cronológica, para melhor acompanhar a evolução do autor e de todo aquele mundo fantástico.

Em The Colour of Magic, o primeiro livro da série, a narrativa acompanha três personagens peculiares: Rincewind, um feiticeiro inapto (sabe apenas um único feitiço, por acaso é um dos oito Grandes Feitiços, que se alojou na mente do aprendiz de feiticeiro e desde então tem afugentado – literalmente – qualquer possibilidade de este aprender qualquer outro truque, por mais elementar que seja) com especial aptidão para idiomas e para se meter nos mais loucos sarilhos imagináveis; Twoflower, o primeiro turista de Discworld, que deixou a sua nação remota e o seu aborrecido trabalho de contabilista de seguros para conhecer o mundo a partir da cidade de Ankh-Morpork; e a bagagem de Twoflower. Sim, a bagagem the Twoflower – conhecida apenas por “Luggage” – é também ela uma personagem, consistindo num baú ligeiramente maior que o tamanho médio dos baús, feito de pearwood (uma madeira raríssima e resistente a magia), que se move com dezenas de pequenas e ágeis pernas e segue o seu dono para toda a parte (mesmo para toda a parte). Twoflower quer conhecer o mundo e ver as maravilhas de Discworld, e contrata Rincewind a peso de ouro para ser o seu guia, tarefa que o feiticeiro cumpre num estilo muito peculiar (e sempre divertido). Pelo caminho encontram ladrões, assassinos, heróis, bárbaros, dragões imaginários, dríades, demónios antigos, a Morte, deuses, trolls normais, trolls marinhos, e uma sociedade que quer enviar uma espécie de nave espacial para lá dos limites do mundo (o "Rimfall") para descobrir a resposta a uma das questões que tem intrigado gerações de filósofos e feiticeiros: qual é o sexo de Great A'Tuin?

Dono de um sentido de humor extraordinário, na boa tradição do non-sense britânico, Pratchett usa estas personagens e as loucas situações em que se envolvem para parodiar os clichés dos géneros do fantástico. A forma como descreve feiticeiros, bárbaros, heróis, bandidos e donzelas em perigo é brilhante, pegando nos nos estereótipos tradicionais e invertendo-os, apenas para os devolver à narrativa e deixá-la seguir o seu atribulado curso. As descrições são um regalo, e é muito difícil não rir mesmo quando o autor descreve as mais triviais situações e os mais vulgares cenários. Se bem que, com franqueza, se há coisa que as situações e os cenários em Discoworld não são é justamente triviais ou vulgares.

Se em circunstâncias normais a série Discworld seria sempre merecedora de leitura – pela imaginação, pela qualidade da escrita e pela sátira –, numa época como esta ainda é mais recomendável. O humor, afinal, ainda está livre de impostos; e ainda que o riso não resolva todos os problemas, sempre ajuda a descontrair. Em Discworld, começando em The Colour of Magic, Pratchett dá aos leitores um stock interminável de gargalhadas.

*Em 2003, a BBC realizou uma sondagem ao longo de um ano para apurar qual o livro mais querido dos leitores ingleses. Sem surpresas, a obra vencedora foi The Lord of the Rings, de Tolkien; entre as 100 obras preferidas do público inglês, contam-se cinco de Terry Pratchett (Mort, Good Omens – esta escrita com Neil Gaiman –, Guards! Guards!, Night Watch e The Colour of Magic). Se considerarmos a lista dos 200 livros preferidos dos ingleses, Pratchett figura 15 vezes. Nada mau.