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29 de março de 2014

O som e a fúria (19)

Em 1995, o compositor australiano Rod Dougan compôs um tema instrumental com o título Clubbed to Death, que viria a integrar a banda sonora de dois filmes. O primeiro, um filme francês de 1996 relativamente desconhecido, também intitulado Clubbed to Death; o segundo, aquele que será talvez o filme de ficção científica mais importante da minha geração: The Matrix, de Larry e Andy Wachowski. O tema de Dougan surge no momento em que Neo, já libertado da Matriz, entra na simulação urbana de Morpheus onde descobre a natureza ubíqua dos Agentes. Na falta de um videoclip alusivo a The Matrix, aqui fica o vídeo original. 

4 de março de 2014

Revisitando The Matrix: Reloaded e Revolutions

Larry e Lana Wachowsky estarão a trabalhar numa nova trilogia The Matrix para a Warner Brothers. Isto, note-se, não é notícia mas rumor: surgiu ontem no io9 a partir de uma notícia publicada no portal SlashFilm, que por sua vez a publicou a partir de um artigo avançado por um outro portal (Latino-Review), pelo que a coisa deve ser entendida dessa forma: como um rumor. A verdade é que, independentemente de ter ou não um fundo de verdade - a seu tempo o saberemos - este rumor tem é verosímil. Numa época em que a indústria cinematográfica parece estar dependente da repetição eterna de sequelas, remakes e reboots de propriedades intelectuais que tenham conhecido algum sucesso, a noção de que um novo filme ou mesmo uma nova trilogia nesta franchise esteja a ser planeada - seja em sequela, prequela ou reboot - só surpreenderá por não ter sido já mencionada. The Matrix, afinal, fez o pleno no final dos anos 90: obteve receitas milionárias, aclamação do público e reconhecimento crítico. Tornou-se em simultâneo num sucesso comercial e num fenómeno de culto; e estabeleceu-se como o grande clássico da ficção científica da sua geração.


É provável que o relativo desinteresse para com The Matrix se deva à fraca recepção crítica das suas duas sequelas directas, Reloaded e Revolutions - ambos foram êxitos de bilheteira (sobretudo Reloaded), mas nenhum deles conseguiu aproximar-se do reconhecimento crítico do filme original. Há alguma justiça na má critica, é certo; em parte, porém, diria que alguma da frustração para com Reloaded e Revolutions se deve ao facto de nenhum dos filmes ter conseguido pelo menos alcançar a fasquia altíssima que o filme original estabeleceu (um objectivo, admitamos, praticamente impossível), e pela sensação de cash-grab que os quatro anos de interregno deixam (mesmo não tendo qualquer motivo para duvidar da versão dos Wachowski de que o objectivo sempre foi fazer os três filmes). Por muito que se critique algumas passagens desnecessárias em ambos os filmes (a rave party será a mais óbvia), ambos incluíram também cenas memoráveis - a perseguição na auto-estrada continua notável pelo seu ritmo desenfreado e pela forma como se funde na perfeição, e a batalha de Zion continua intensa como sempre, por mais falhas que sejam apontadas às CGI.


É contudo inegável que em termos globais ambos os filmes ficaram muito aquém das expectativas. Onde The Matrix surpreendeu com os seus visuais extraordinários assentes numa combinação inteligente de efeitos práticos, fotografia astuciosa e imagens geradas por computador, Reloaded e Revolutions seguiram o caminho fácil do CGI de qualidade duvidosa, que terá talvez sido suficiente em 2003 mas que não sobrevive ao teste do tempo após uma década - sobretudo quando reparamos que no mesmo ano estreou The Return of the King. Os combates intensos, bem coreografados, tornados possíveis através de cabos e força de braços, tornaram-se insípidos na voragem dos efeitos especiais; e o encadeamento perfeito entre as sequências de acção e as ideias apresentadas num argumento arrojado possibilitou um ritmo narrativo harmonioso que as sequelas, privadas da sua independência em termos temáticos e de enredo, nunca conseguiram recapturar.


De certa forma, isso também se deve à expansão do universo ficcional e do elenco: The Matrix, afinal, funcionou de forma algo contida, introduzindo apenas a tripulação da Nebuchadnezzar, a Oráculo e Smith. Esta limitação desaparece nas sequelas - o espaço fechado da nave de Morpheus Nebuchadnezzar abre-se para Zion, onde o espectador encontra tanto os habitantes da cidade como as tripulações de outras naves; e as deambulações pela Matriz trazem novos cenários e novas personagens - Merovingian e os seus minions, Persephone, Seraph, Sati, o Keymaker, o Arquitecto. E se algumas personagens funcionaram (o Merovingian de Lambert Wilson é inesquecível), outras pouco mais são do que plot points glorificados, quando não apenas action pieces.


Já a crítica, recorrente nos idos de 2003, de que Reloaded e Revolutions eram demasiado obscuros sempre me soou injusta, para não dizer preguiçosa. É verdade que a exposição temática mais convencional de The Matrix dá lugar a uma maior ambiguidade nas suas sequelas, mas isso está longe de ser uma falha. No primeiro filme, todo o simulacro da realidade é apresentado ao espectador através da viagem de descoberta de Neo: o seu encontro com os Agentes, a saída do programa, o treino, o regresso à matriz a partir do seu exterior - tudo isto é mostrado e explicado de forma clara e, exceptuando um momento, livre de ambiguidade no que à interpretação da premissa diz respeito. Reloaded e Revolutions não seguem esta fórmula: os Wachowskis optam por desconstruir a premissa estabelecida no primeiro filme, suscitando questões tanto sobre a realidade como sobre o simulacro - e fazem-no com um maior grau de ambiguidade, com mais sugestão do que explicação, convidando a uma especulação mais profunda sobre os temas originais: a natureza da realidade e a natureza do livre arbítrio. A opção, diga-se de passagem, não foi de todo inédita: bem vistas as coisas, em termos temáticos a conversa entre Neo e o Arquitecto nos momentos finais de Reloaded pouco acrescenta ao que Smith disse a Morpheus no filme original (quanto muito, explica o solilóquio de Smith ao tornar claras as consequências das suas afirmações).


Foi esta ambiguidade que tornou The Matrix - a trilogia no seu todo - num tema capaz de gerar debates ilimitados e interessantíssimos em inúmeros fóruns da Internet pré-Web 2.0 de 2003 e 2004. As questões acumularam-se, e deram origem a um terreno fértil para especulação e teorias de fãs (a minha preferida, que subscrevo, parte da ideia de que Zion é também parte da matriz; explorarei a tese noutra ocasião). Enquanto objectos cinematográficos per seReloaded e Revolutions não chegam sequer perto do virtuosismo o filme original; mas se em ambos há muito para criticar, nem por isso deixa de haver mérito no que à exploração temática da premissa diz respeito. No campo das ideias, as sequelas de The Matrix revelaram-se igualmente estimulantes, repletas de possibilidades mais ou menos canónicas, e deram forma a uma trilogia de blockbusters única na sua ambição e na sua complexidade temática. E isso hoje, numa época em que as grandes produções se querem simples, revela-se mais importante do que nunca. 07/10*

The Matrix Reloaded / The Matrix Revolutions (2003)
Realização e argumento de Larry e Andy Wachowski
Com Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving, Gloria Foster, Jada Pinkett-Smith, Monica Bellucci, Lambert Wilson, Collin Chou, Nona Gaye, Randall Duk Kim, Harry Lennix, Harrold Perrineau, Gina Torres, Clayton Watson, Helmut Bakaitis, Ian Bliss e Mary Alice
138 minutos / 129 minutos

* A classificação aplica-se a ambos os filmes no seu todo, já que em termos narrativos a separação acaba por se revelar artificial.

7 de janeiro de 2014

The Animatrix: Jogo de espelhos

À distância de quase quinze anos, ninguém duvida de que The Matrix terá sido um dos filmes mais importantes e influentes dos anos 90 - e no que à ficção científica diz respeito, a película realizada pelos irmãos Wachowski, tornou-se num marco do género, num dos seus filmes incontornáveis e obrigatórios. Corria o ano de 2003 e a expectativa em torno das duas sequelas que dariam continuidade à narrativa cyberpunk polvilhada de influências literárias, filosóficas e religiosas iniciada em 1999 era mais do que muita; e a estreia de The Matrix Reloaded fez-se acompanhar por dois outros elementos que deram forma a uma das mais interessantes experiências transmedia realizadas até hoje - num tempo em que, note-se, tal termo era ainda pouco comum. Esses dois elementos foram o videojogo Enter the Matrix e a colectânea de curtas de animação japonesa The Animatrix. Um dia destes, com mais tempo, tenciono abordar essa experiência multi-plataforma (passe o neologismo da moda) com mais alguma profundidade; por hoje, fiquemo-nos pelas curtas. 

The Animatrix consistiu num ambicioso projecto narrativo dos irmãos Wachowski em redor do universo ficcional que tinham criado com o primeiro filme. Assumindo as suas muitas influências no cinema e na animação japonesa (Ghost in the Shell é a mais óbvia), a dupla propôs a vários estúdios e a vários realizadores de animação a criação de algumas curtas-metragens que, nos seus estilos próprios, explorassem vários aspectos da premissa básica de The Matrix, referidos ao longo dos três filmes de forma mais ou menos evidente, ou não referidos de todo. Algumas das curtas acabaram intimamente ligadas à narrativa principal de Neo, Trinity e Morpheus; outras assumiram caminhos diferentes, explorando à sua maneira conceitos derivados das propostas originais. No seu todo, o conjunto das nove curtas que compõem The Animatrix é notável pela qualidade da animação, pelas propostas temáticas arrojadas, pela forma extraordinária como partem de muitas das ideias fundamentais do primeiro filme para expandir os horizontes de todo aquele universo - e também, diga-se de passagem, pela sua enorme diversidade estética. Um nove em dez, se fosse avaliar o conjunto. Mas vejamos caso a caso. 

The Last Flight of the Osiris
Realização de Andy Jones / Argumento de Larry e Andy Wachowski / Com Kevin Michael Richardson, Pamela Adlon e Tom Kenny
Em termos estéticos, The Last Flight of the Osiris é o descendente directo do filme Final Fantasy: The Spirits Within, a longa metragem da Square Pictures que se tornou numa referência pela sua animação computorizada extremamente sofisticada para a época (ainda que em termos narrativos o filme tenha deixado algo a desejar). No universo de The Matrix, esta curta serve de prequela tanto para The Matrix Reloaded como para Enter the Matrix ao mostrar como a tripulação da nave Osiris tropeçou por acidente no início da invasão das Sentinelas a Zion - e o que a tripulação fez para que essa informação chegasse ao último reduto da Humanidade. Para o seu tempo, a animação de The Last Flight of the Osiris é no mínimo assombrosa, e a forma como serve de ponto de partida para tudo o que se segue é inteligente. E, convém não esquecer, mostra pela primeira vez a utilização de armas a bordo das naves de Zion - algo que o primeiro filme omitira por completo. 08/10

The Second Renaissance Part 1 / The Second Renaissance Part 2
Realização e argumento de Mahiro Maeda / Com Julia Fletcher
As duas curtas que compõem The Second Renaissance exploram a premissa básica de The Matrix, que Morpheus expôs a Neo no filme original - o conflito entre a Humanidade e as Inteligências Artificiais que culminou numa guerra sem quartel e no (aparente) aprisionamento dos seres humanos na simulação interactiva conhecida apenas como "a Matriz". E Mahiro Maeda (que trabalhou em projectos tão distintos como Neon Genesis Evangelion como nas sequências animadas de Kill Bill) utiliza com mestria a sua extraordinária animação para recriar todo o conflito de forma magnífica, com inúmeras referências históricas, religiosas e iconográficas - o tom é levantado da Génese bíblica, e as imagens e o texto remetem para a segregação racial, o Terceiro Reich e o Holocausto, a bandeira de Iwo Jima, os acontecimentos da praça de Tiananmen, e muitos outros momentos históricos. A identificação desta história como parte dos arquivos de Zion não esclarece se a premissa básica de toda a série é de facto verdadeira ou não, mas nem por isso The Second Renaissance perde relevância: no seu estilo documental, é uma peça magnífica. 09/10

Kid's Story
Realização de Shinichirō Watanabe / Argumento de Larry e Andy Wachowski / Com Clayton Watson e Keanu Reeves
Quem tenha visto pela primeira vez The Matrix Reloaded sem ter visto estas curtas decerto terá estranhado uma personagem que surge quando a tripulação da Nebuchadnezzar chega a Zion - um miúdo que recebe Neo, Trinity e Morpheus como se os conhecesse. Kid's Story é a história desse miúdo: um adolescente chamado Michael Karl Popper (Clayton Watson) que vive alienado da realidade, como se percebesse nela a sua natureza de simulacro - mesmo sendo incapaz de a descrever de forma concreta. Mas Neo contacta-o e desafia-o a libertar-se por força da fé - o que leva a que Kid se torne no primeiro caso de alguém se se libertou da Matriz sem ajuda externa. Kid's Story é a primeira das duas curtas de The Animatrix realizadas por Shinichirō Watanabe, o aclamado criador de Cowboy Bebop; e a sua animação frenética serve na perfeição a narrativa e o ponto de vista adolescente e vagamente depressivo de Kid. 07/10

Program
Realização e argumento de Yoshiaki Kawajiri / Com Hedy Burress e Phil LaMarr
Yoshiaki Kawajiri, criador de filmes de animação aclamados como Ninja Scroll e Vampire Hunter D: Bloodlust, pega no conceito original de Cypher - o traidor de The Matrix que desejava recuar na sua escolha do comprimido vermelho e ser reinserido na Matriz - para dar forma a uma das melhores curtas da antologia. A animação, sombria e detalhada, é a todos os níveis excepcional, e serve na perfeição o dilema moral de Cis (Hedy Burress), bloqueada na sua simulação de treinos alusiva ao Japão feudal por Duo (Phil LaMarr), que pretende desafiá-la a trair Zion com ele em troca do esquecimento e da vida "normal" que só a simulação da Matriz lhes poderá devolver. O combate frenético que se desenrola entre os dois pauta a indecisão da protagonista - e abre caminho para um dos finais mais ambíguos das curtas apresentadas. 10/10

World Record
Realização de Takeshi Koike / Argumento de Yoshiaki Kawajiri / Com Victor Williams, John Wesley, Allison Smith e Tara Strong
Esta produção da Madhouse explora uma vez mais o tema da auto-substanciação abordado em Kid's Story, mas desta vez através da superação pessoal e da pura força de vontade. Dan Davis (Victor Williams) é um atleta de alta competição, detentor do recorde mundial dos 100 metros - cuja medalha lhe foi retirada devido a um escândalo de doping. Determinado a regressar à competição para bater o seu próprio recorde e provar a todos que as drogas nada tinham que ver com o seu anterior resultado, Davis ignora os conselhos do seu treinador para competir na prova dos 100 metros nos Jogos Olímpicos - e a sua superação individual fá-lo ultrapassar as barreiras da realidade simulada e ver a realidade para lá do simulacro da Matriz. Para além de explorar uma premissa interessante dentro da ideia básica de The Matrix, World Record revela-se um conto fascinante sobre a força de vontade e a capacidade infinita que os seres humanos têm para se superarem a si mesmos. 09/10

Beyond
Realização e argumento de Kōji Morimoto / Com Hedy Burress, Pamela Adlon, Matt McKenzie, Kath Soucie e Tara Strong
Beyond aborda a ideia de que os fenómenos paranormais são apenas falhas - glitches - no código da Matriz através de Yoko (Hedy Burress), uma adolescente que, enquanto procura a sua gata, encontra uma casa assombrada em plena malha urbana. Juntamente com um grupo de miúdos, Yoko depara-se com uma série de fenómenos desconcertantes naquele terreno - com objectos a levitar, garrafas quebradas que se voltam a unir como se nunca tivessem sido partidas, e zonas inteiras nas quais as leis da Física parecem não se aplicar. As crianças utilizam a casa assombrada para se divertirem a fazer acrobacias impossíveis, sem qualquer receio; mas a descoberta de Yoko leva a que os Agentes intervenham para evitar que a natureza do simulacro seja exposta. Com uma animação excepcional que empresta à premissa o onirismo de que esta necessita para se elevar, Beyond é sem dúvida um dos melhores trabalhos de The Animatrix. 10/10

A Detective Story
Realização e argumento de Shinichirō Watanabe / Com James Arnold Taylor e Carrie-Anne Moss
Nesta sua segunda curta, Shinichirō Watanabe junta-se ao animador Kazuto Nakazawa para contar uma história de detectives num bom e velho estilo noir, ao qual não falta a inevitável banda sonora de jazz (imagem de marca também em Cowboy Bebop, e aqui assegurada por uma excelente e muito apropriada faixa dos Supreme Beings of Leisure). Ash (James Arnold Taylor) é um detective privado com falta de trabalho, a quem é feita uma proposta anónima de preço irrecusável: localizar um hacker conhecido apenas pelo nickname "Trinity" (Carrie-Anne Moss). No decurso da investigação, Ash descobre que três outros detectives já trabalharam no mesmo caso, com resultados no mínimo estranhos -  e para chegar a Trinity, depara-se com um enigma retirado de Through the Looking Glass, de Lewis Carroll. Com um ritmo perfeito e uma conclusão ambígua, A Detective Story distingue-se pela animação superlativa, pela estética noir desenvolvida com rigor, e pela exploração que faz de Trinity antes dos acontecimentos do primeiro filme. 10/10

Matriculated
Realização e argumento de Peter Chung / Com Melinda Clarke
O realizador da série de animação Aeon Flux assina a mais surreal e arrojada curta de The AnimatrixMatriculated acompanha um grupo de rebeldes que, num laboratório montado na superfície do planeta, se encontra a investigar a possibilidade de converter inteligências artificiais para o lado da Humanidade sem recorrer a alterações na programação que em termos práticos consistissem numa forma de escravatura. Para tal, capturam máquinas e inserem-nas numa Matriz própria, onde tentam utilizar empatia para dar às inteligências artificiais capturadas o livre arbítrio necessário para se sobrepor à sua programação original. Uma máquina é submetida a esta experiência, e colocada numa matriz surrealista; mas os resultados vão bem mais longe do que o esperado. O arrojo conceptual da premissa de Matriculated ganha força com o carácter psicadélico da animação de Chung; e o seu final aberto deixa antever uma possibilidade fascinante em todo o universo de The Matrix. 09/10. 

19 de junho de 2012

A Ficção Científica e o Cinema: The Matrix


É possível que The Matrix seja, na ficção científica cinematográfica “recente” (o filme leva já treze anos), o último verdadeiro clássico do género, digno de figurar na galeria dos grandes como 2001: A Space Odyssey, Alien ou Blade Runner. Será sem dúvida o grande filme de ficção científica da minha geração, nascida entre meados e finais dos anos 80, longe dos clássicos já mencionados e de outros que marcaram o género. Recordo-me de quando o vi pela primeira vez: aqui entre nós, porque a coisa foi descaradamente ilegal, tinha catorze ou quinze anos (estava no nono ano) e um professor arranjou uma cópia em VHS que exibiu durante duas horas que, normalmente, seriam passadas a brincar com a “fórmula resolvente” ou a estrebuchar com o Teorema de Pitágoras. Poucos foram os filmes que vi posteriormente que conseguiram transmitir aquela sensação de que estava a assistir a algo absolutamente revolucionário - The Matrix conseguiu-o, de forma inesquecível, logo nos primeiros momentos. Bastou Trinity (Carrie-Anne Moss) levantar-se, ficar suspensa no ar enquanto a câmara rodopiava em seu redor numa slow motion elegantíssima. Hoje, o truque é banal: qualquer filme ou série medíocre repete o truque ad nauseam, com mais ou menos talento. Na viragem do milénio, porém, foi quanto bastou para Larry e Andy Wachowsky mudarem definitivamente a forma como as narrativas de acção são feitas.

Aliás, a ficção científica cinematográfica também é isto - inovação nos métodos, na forma, nas artimanhas utilizadas para provocar impacto visual e criar uma estética única. É certo que nem todos os grandes filmes de ficção científica requem uma componente visual assombrosa - mas muitas das mais memoráveis películas do género destacaram-se também - quando não em primeiro lugar - nesse campo. The Matrix não foi excepção. Podemos, para todos os efeitos, falar de cinema de acção pré-The Matrix e pós-The Matrix.

Naturalmente, um filme de ficção científica não é feito apenas pelas suas componentes visuais e de efeitos especiais (coisa que muitos realizadores contemporâneos continuam a ignorar) - mas The Matrix é uma obra superior mesmo no que ao enredo e à narrativa diz respeito. Sim, o filme é, todo ele, um autêntico portfolio de efeitos especiais - mas estes não sobrevivem por si só, antes enriquecem a narrativa, encaixando-se perfeitamente no todo que é o filme. O enredo remete-nos imediatamente para o universo cyberpunk, num futuro incerto no qual as inteligências artificiais - as “Máquinas” - destruíram a civilização humana e utilizam seres humanos gerados artificialmente (“cultivados”, como diz Morpheus) como fonte de energia. De forma a manter a Humanidade escravizada, as Máquinas “ligaram” todos os seres humanos a uma ilusão em forma de realidade virtual - The Matrix, a Matriz que dá nome ao filme, uma “alegoria da caverna” cibernética -, a qual é aceite por todos excepto os “últimos humanos livres”, de Zion, cidade escondida perto do centro do planeta a partir da qual se trava uma guerra contra as Máquinas - no mundo real e dentro da própria Matriz. O filme centra-se na tripulação da nave Nebuchadnezzar, comandada pelo icónico e idealista Morpheus (a inesquecível personagem de Lawrence Fishburne), que procura encontrar o Escolhido, o “Messias” que uma profecia diz ser capaz de subverter as rígidas regras da Matriz para a derrubar a partir de dentro, libertando a humanidade dos grilhões da ilusão em que vive. Esse “Messias” é Thomas A. Anderson, o hacker conhecido por “Neo” (interpretado pelo lacónico Keanu Reeves, provavelmente o actor com o melhor agente de Hollywood), que será libertado para combater as Máquinas. Mas contra eles estão os “Agentes”, inteligências artificiais que residem no interior da Matriz lideradas pelo Agent Smith, que Hugo Weaving imortalizou como um dos grandes vilões da ficção científica. 

O que torna The Matrix tão interessante do ponto de vista do enredo é a mistura de filosofias que contém, e a forma como, sem responder a algumas das mais relevantes questões de forma explícita, deixa pistas suficientes para várias interpretações - e muitas das respostas dadas nas sequelas são logo dadas no primeiro filme (o “monólogo” de Smith com Morpheus, porventura o momento-chave do filme, explica de forma muito interessante a ideia das múltiplas realidades simuladas que, em Reloaded, o Arquitecto ilustra de forma bastante clara, e deixa no ar o primeiro indício de que Zion não é exactamente a “última cidade livre”). Denso, intenso, cheio de pistas e com espaço para o debate. Dificilmente poderia ser melhor.

Junte-se a isto um conjunto de excelentes personagens (de Morpheus a Trinity, de Neo a Smith, sem esquecer a enigmática Oracle), óptimas interpretações (sim - Keanu Reeves pode não ser grande actor, mas fez um excelente Neo), um ritmo praticamente perfeito e sequências de acção inesquecíveis. O resultado é um filme a todos os níveis memorável, que deu origem a um universo muito interessante, ainda que nem sempre executado da melhor forma (as sequelas têm os seus problemas, tal como os videojogos, mas as nove curtas que compõem Animatrix são soberbas). Talvez não tenha passado ainda tempo suficiente para determinar se sobrevive mesmo ao teste do tempo (julgo que sim), mas vai no bom caminho - em termos de influência, nenhum filme de ficção científica posterior a 1999 lhe fez sombra até agora.  9.5/10