De todos os temas da ficção científica literária ou cinematográfica, o contacto com vida alienígena inteligente será porventura um dos mais recorrentes – e populares. Já foi abordado de inúmeras formas por vários escritores, cineastas e artistas de vária ordem; já foram imaginadas civilizações extraterrestres mais e menos avançadas do que a nossa; algumas pacíficas, outras hostis; umas de aspecto excessivamente humanóide, outras de aparência quase incompreensível para os padrões humanos. Mas poucas obras exploraram de forma tão singular o tema da improbabilidade da comunicação como Solyaris (Solaris na tradução inglesa), filme de 1972 de Andrei Tarkovskiy que adaptou para o grande ecrã o clássico do polaco Stanislaw Lem.
O filme de Tarkovskiy é a segunda de três adaptações audiovisuais da obra de Lem (a primeira, de 1968, é um filme televisivo russo realizado por Boris Nirenburg com argumento escrito por Nikolay Kemasky; o terceiro é um filme de 2002 realizado por Steven Soderbergh). Com a Humanidade envolvida na exploração espacial, é encontrado um planeta – designado por Solaris – coberto por um invulgar oceano. Uma estação espacial é levada para o planeta, com uma tripulação preparada para desvendar os seus mistérios; mas com o passar dos anos, a quantidade de dados desconexos e de teorias sobre Solaris contrasta com a escassez de factos comprovados. Suspeita-se de que o oceano do planeta não é uma massa de água mas sim um vasto organismo consciente – mas mesmo essa teoria não está de todo provada.
Vários elementos da tripulação perderam-se sobre a superfície do planeta durante expedições, e todas as tentativas de resgate revelaram-se inúteis. O relatório de um dos pilotos sobreviventes a cargo das operações de resgate, Henri Berton, aponta para vários acontecimentos inexplicáveis – e as suas visões são descartadas como alucinações induzidas por algum elemento desconhecido do planeta. O mistério, porém, subsiste – e o psicólogo Kris Kelvin é enviado para a estação espacial, após rever os relatórios e os vídeos de Berton, com o propósito de perceber o que levou à desagregação da tripulação, e decidir o destino da missão.
Mas ao chegar a Solaris, Kelvin depara-se com uma estação espacial caótica, uma morte invulgar, dois tripulantes crípticos e um enigma maior do que imaginara, na forma de uma pessoa cuja presença na estação espacial naquele planeta distante seria a todos os níveis impossível.
Se o romance de Lem tem como tema a improbabilidade de comunicação com uma mente alienígena, o filme de Tarkovskiy pega nesta premissa para estudar o confronto do indivíduo com o seu passado, tornado real através da estranha consciência daquele planeta remoto. Com um ritmo narrativo pausado e meditativo, e com uma componente visual mais assente numa beleza fotográfica do que em efeitos especiais, Solyaris explora de forma lenta mas precisa o enigma do planeta através do ponto de vista de Kelvin, e da sua progressão do cepticismo para a incredulidade e a negação.
Para os padrões do cinema ocidental, Solyaris será talvez um filme estranho – pautado pelo o seu tom meditativo estendido durante quase três horas, e sempre acompanhado por uma banda sonora minimalista e surpreendentemente eficaz, poderá talvez faltar a este filme de Tarkovskiy o ritmo narrativo e o impacto visual que mesmo obras europeias e norte-americanas mais contemplativas (como 2001: A Space Odyssey, por exemplo). O que está longe de ser um defeito. Solyaris pode exigir do seu público uma maior atenção e mais paciência, mas recompensa ambas as virtudes com uma narrativa tão prodigiosa como contemplativa sobre a improbabilidade da comunicação, sobre o relacionamento sempre difícil do Homem com o seu passado, e sobre a força das ilusões. A todos os níveis, inesquecível. 8.6/10
Solyaris (1972)
Realizado por Andrei Tarkovskiy
Argumento por Andrei Tarkovskiy e Fridrikh Gorenshtein, com base no romance de Stanislaw Lem
Com Natalya Bondarchuk, Donatas Banionis, Jüri Järvet, Vladislav Dvorzhetskiy, Nikolay Grinko e Anatoliy Solonitsyn
167 minutos