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20 de fevereiro de 2014

A ficção científica nos "anos 00": Filmes que definem o milénio (até agora)

No io9, Charlie Jane Anders pergunta aos leitores do blogue qual foi, até ao momento, a obra de ficção científica deste ainda novo milénio que melhor o definiu. O que, diga-se de passagem, é uma boa pergunta., ainda que incompleta - Anders refere-se em concreto à literatura, ao cinema e à televisão, mas os "anos 00" consagraram em definitivo os videojogos como um veículo narrativo do género, e vários são os títulos que poderiam ser mencionados. Para simplificar um pouco (e para ocultar as minhas vastas lacunas no que à literatura de ficção científica contemporânea diz respeito), este artigo vai restringir-se ao cinema - e ainda que neste meio os "anos 00" não tenham sido tão impressionantes como as duas décadas anteriores, estrearam ao longo dos últimos 14 anos vários filmes de ficção científica marcantes, talvez até revolucionários num detalhe ou outro - nada da dimensão de The Matrix no final dos anos 90, é certo, mas o milénio ainda mal começou. Nem por isso, porém, deixaram vários filmes de capturar muito bem alguns fragmentos - quando não autênticas tendências - do air du temps. Abaixo, seguem quatro propostas (e uma menção honrosa).

Minority Report (Steven Spielberg, 2002)
Deixando o óbvio fora do caminho desde logo - não, esta adaptação de Steven Spielberg ao célebre conto de Philip K. Dick não está sequer perto de ser um dos melhores filmes de ficção científica estreados após a viragem do milénio (apesar de ser um filme bastante acima da média, e um ao qual talvez não tenha dado o devido valor). Olhando hoje para trás, porém, não deixa de ser impressionante ver como as suas interfaces tácteis, tão arrojadas em 2002, se tornaram banais em 2014. Só por essa curiosidade tecnológica o filme já seria merecedor de atenção em qualquer exercício deste género; se a isso juntarmos o elefante na sala que é a erosão da privacidade pela publicidade intrusiva, direccionada e contextualizada (Google, anyone?) e as questões éticas sobre a vigilância electrónica compulsiva, então Minority Report revela-se estranhamente presciente quanto aos anos que estavam ainda por vir. 

Children of Men (Alfonso Cuarón, 2006)
Para além de ser provavelmente o melhor filme de ficção científica deste milénio (até agora), Children of Men acertou cheio no air du temps contemporâneo - cinzento carregado, depressivo e um tanto ou quanto desesperado (e desesperançado). Numa palavra odiosa: grimdark. Na ambiguidade do seu final não cabe, ou poderá não caber, a relativa paz do final de Minority Report ou de Eternal Sunshine of the Spotless Mind (outro dos grandes da década); e o futuro que prevê, de esterilidade humana generalizada, estará longe de se verificar (ainda que possa talvez servir de metáfora para o declínio populacional ocidental). Mas as questões de imigração e integração que o filme aflora com brevidade são hoje bastante actuais; e os tumultos sociais que Cuarón filmou com a sua mestria inimitável assemelham-se bastante - porventura demasiado - a algumas situações que têm emergido, com mais regularidade do que seria desejável, ao longo da última década. 

District 9 (Neill Blomkamp, 2009)
O filme de estreia de Neill Blomkamp surge aqui quase como bónus. A sua importância, é certo, não pode ser negada - a nomeação para o Óscar na categoria principal (feito alcançado por muito poucos filmes de género até à data) atesta-o, tal como a aclamação crítica mais ou menos generalizada. Mas numa época em que a ficção científica passa por uma crise de identidade, o exercício de Blomkamp torna-se notável pela sua capacidade de recuperar e refrescar convenções antigas do género, utilizando-as como veículo para um comentário social tão actual como devastador. E fê-lo sem abdicar da acção frenética e da estética sofisticada que são o bread and butter de muita ficção científica cinematográfica nos dias que correm, num filme com personagens memoráveis e uma construção narrativa muito eficaz. District 9 provou em definitivo que a ficção científica no cinema é mais do que os seus efeitos especiais - utilizada com mestria, pode dar uma perspectiva única sobre temas já antigos e tantas vezes retratados na Sétima Arte. Convenhamos: o tema da segregação racial, e mesmo do appartheid, não são novos no cinema; mas quantos filmes conseguiram abordá-los com uma metáfora tão poderosa como a transformação de Wikus van der Merwe?

The Avengers (Joss Whedon, 2012)
Na secção de comentários do artigo original, um comentador elegeu Avatar, de James Cameron, como o filme mais representativo deste milénio - pelo domínio do visual sobre a narrativa. A ideia tem o seu mérito; mas no que aos blockbusters diz respeito julgo que The Avengers, de Joss Whedon, será talvez mais representativo do blockbuster moderno - para todos os efeitos, foi o culminar de uma aposta que se estendeu ao longo de uma década inteira (o malfadado Hulk de Ang Lee estreou, convém lembrar, em 2003) que deu aos super-heróis da Marvel um lugar de destaque na cultura popular do novo milénio e que deu um contributo decisivo para retirar os super-heróis da coutada nerd à qual pertenciam e torná-los trendy. Ainda que nem todos os filmes que desaguaram em The Avengers tenham sido de facto bons (em termos médios, a coisa terá sido talvez medíocre), a aposta foi ganha e o modelo de negócio triunfou - que a segunda fase do plano, com vista a The Avengers 2: Age of Ultron esteja já em marcha e que a adaptação de Guardians of the Galaxy, muito mais arriscada por se tratar de uma propriedade intelectual menos conhecida e mais science fiction-y, esteja a ser aguardada com muita expectativa são prova disso mesmo.

Menção honrosa: Moon (Duncan Jones, 2009)
Puro wishful thinking: Moon, com o seu minimalismo narrativo, estético e, acima de tudo, orçamental, poderá vir a ser para anos vindouros exemplo de como é possível contar uma excelente história de ficção científica sem um orçamento de centenas de milhões de dólares, um elenco polvilhado de estrelas e excesso de pirotecnia visual. Para já, fica a promessa. 

Fonte: io9

20 de agosto de 2013

Elysium, ou a luta de classes a preto e branco

Quando Neill Blomkamp apresentou a sua longa metragem de estreia, District 9, surpreendeu o público – tanto o mais dedicado à ficção científica como o outro – com a sua abordagem pouco convencional mas incrivelmente expressiva e eficaz ao tema do racismo e do apartheid do seu país natal, a África do Sul. E o sucesso não se deve apenas à qualidade superlativa da componente visual do filme, mas sim pela desconstrução inteligente que fez de uma premissa clássica do género e pela forma subtil com que desenvolveu o carácter mais ideológico, chamemos-lhe assim, da obra – convidando o espectador a acompanhar o infortúnio de Wikus (Charlto Coopley) enquanto medita no que de facto significa ser diferente, ser estranho, quando a nossa própria terra se revela desconhecida. Também por isto as expectativas quando ao segundo filme do realizador, Elysium, eram altas – não só para se saber se o sul-africano, com um orçamento digno de um blockbuster, seria capaz de voltar a fazer um filme visualmente estimulante mas também se conseguiria desmontar uma ideia clássica – a da luta de classes, tão usada nos mesmos termos na ficção científica – e de lhe injectar uma visão nova através de um argumento inteligente.

Não deixa de ser uma pena que a resposta a ambas as perguntas não seja afirmativa – mas a verdade é que Blomkamp conseguiu recriar um mundo fascinante e visualmente apelativo, já na componente ideológica não consegue elevar-se acima da mediocridade e da premissa mais do que gasta de “os ricos vivem numa redoma lá em cima, os pobres vivem na miséria cá em baixo”. E, com o conceito de Elysium – um vasto habitáculo espacial redondo como uma estrutura Orbital em miniatura tornado satélite –, esta premissa ganha contornos literais. Naquele mundo circular, redondo, a elite vive num esplendor absoluto, beneficiando de todo o conforto que as mais sofisticadas tecnologias podem oferecer, com cuidados médicos de tais ordens que doenças ou enfermidades foram eliminadas de forma absoluta. A contrastar com a vida esterilizada em órbita, o resto da população humana vive numa vasta Terra-virada-favela, num Distrito 9 tornado global, com todo o tipo de carências, convivendo com criminalidade violenta e sobrevivendo nas piores condições de vida e de trabalho imagináveis.


O problema de Elysium não reside apenas no facto de esta premissa ser apresentada sem qualquer tipo de subtileza, mas também na relativa incongruência de ambos os mundos quando colocados em confronto. É certo: Blomkamp pretende debater as desigualdades contemporâneas, as questões da emigração (é difícil não ver na tentativa desesperada de os shuttles aterrarem em Elysium uma metáfora para a situação explosiva da emigração no Mediterrâneo) e o acesso aos melhores cuidados de saúde, limitado quando devia ser universal – tudo questões relevantes e pertinentes, entenda-se. Infelizmente, a subtileza narrativa de District 9 perdeu-se no processo: Elysium mostra a presença de uma burocracia opressora, de repressão policial e de um controlo dos meios de produção pelo capital – passe as designações marxistas – que, como é evidente, vive no luxo de Elysium e revela (pelas reacções dos dois únicos habitantes que conhecemos razoavelmente) desprezo e nojo pelas populações inferiores da Terra. Mas nada isto aparenta força suficiente para a manutenção indefinida do status quo; e esta incongruência acaba por ganhar contornos mais evidentes quando se coloca em perspectiva a tecnologia de que as redes criminosas dispõem. Teria sido talvez interessante ver uma dualidade menos preta-e-branca e com mais tons de cinzento; chega mesmo a haver um início de comentário interessante, pelo Max interpretado por Matt Damon e pela sua namorada de infância, Frey (uma Alice Braga maravilhosa), sobre a escolha entre a criminalidade e o trabalho duro na Terra – mas mesmo esse comentário acabou perdido nas questões aparentemente mais importantes que Blomkamp quis debater.


A isto nada ajuda a péssima interpretação de Jodie Foster no papel de Delacourt, a Ministra da Defesa de Elysium a tentar um golpe de estado – desprovida de qualquer carisma, ganha contornos de quase comic book villain com os seus trejeitos exageradíssimos. Algo que Charlto Coopley coloca em evidência com o seu magnífico desempenho no papel de Kruger, um mercenário contratado por Delacourt – mesmo quando o guião falha em algumas deixas o actor deixa transparecer uma fascinante ambiguidade, visível sobretudo na sua interacção com a personagem de Alice Braga. Ainda em termos de desempenhos, Wagner Moura desempenha com solidez um sólido Spider, criminoso e revolucionário; e Matt Damon, apesar de continuar a interpretar-se a si mesmo, tem carisma e simpatia mais do que suficientes para transportar o espectador ao longo do filme.


É em termos visuais que Elysium ascende acima da média. Tal como já fizera em District 9, também aqui Blomkamp mostra uma Los Angeles transformada em favela – nos primeiros planos, é difícil não evocar uma versão diurna da cidade nocturna que Ridley Scott mostrou em Blade Runner (sobretudo numa imagem muito particular). Todos os detalhes, dos robôs-policia aos muros grafitados das unidades fabris, das casas arruinadas e dos hospitais sobrelotados, estão soberbos, e permitem caracterizar aquele mundo melhor do que qualquer discurso ideológico das suas personagens. Elysium, por contraste, apresenta-se esterilizado, limpo, perfeitamente organizado – um paraíso ordenado que em momento algum esconde a sua artificialidade. As sequências de acção, ainda que sejam escassas, são excelentes – com Matt Damon e Sharlto Coopley a darem um grande espectáculo e combate em exo-esqueleto, completa com lâminas, mísseis, balas explosivas e escudos de energia.


Visto como um mero filme de acção, Elysium seria sem dúvida um filme interessante q.b, com um mundo repleto de potencial e visualmente irrepreensível. Blomkamp, porém, atirou mais alto do que isso, e procurou repetir a mistura de acção com comentário social que tornou District 9 num dos grandes filmes de ficção científica dos últimos anos – mas sem a subtileza e a relativa neutralidade do ponto de vista do seu anterior êxito. O resultado não deixa de ser interessante, é certo, mas nem por isso deixa de desiludir – prometia mais, e poderia ter sido muito mais. 6.9/10


Elysium (2013)
Realização e argumento de Neill Blomkamp
Com Matt Damon, Jodie Foster, Sharlto Copley, Alice Braga e Wagner Moura
109 minutos

4 de junho de 2013

District 9, ou o Apartheid em versão alienígena

As histórias das invasões alienígenas são tudo menos novidade na ficção científica. Seja através de chegadas espectaculares e com graus de hostilidade diversos, seja infiltrando-se lenta mas inexoravelmente nas sociedades humanas, seja até vivendo nas sombras, o tema já foi abordado por vários autores em todo o tipo de formatos, da literatura ao cinema e aos videojogos. Talvez seja mais ou menos aí que reside boa parte do encanto de District 9, de 2009, a primeira longa-metragem do sul-africano Neill Blomkamp, e um dos mais improváveis êxitos da ficção científica cinematográfica dos últimos anos - na sua constante subversão de convenções há muito estabelecidas e cristalizadas. E também, claro, pela forte ligação que estabelece com a África do Sul, tanto contemporânea como histórica - uma nação que não surge com frequência nas histórias do género. 

District 9 arranca em forma de um documentário - ou mockumentary, se preferirem - sobre o trabalho do departamento de "Alien Affairs" da Multi-National United (MNU), seguindo um dos seus empregados, o burocrático Wikus van de Merwe (Sharlto Copley) naquilo que se vai revelar uma missão de contacto com os prawns. E o que são os prawns, pergunta o espectador? Os extraterrestres que chegaram vinte anos antes à Terra numa gigantesca nave que, por algum motivo, em vez de se posicionar sobre cidades como Manhattan, Washington ou Chicago, foi parar sobre Joanesburgo - e a admissão da surpresa por um entrevistado confirma a elegância da subversão da trope original de Arthur C. Clarke em Childhood's End.


Que, contudo, não ficou por aqui. Sem contacto, as autoridades decidiram forçar a entrada na nave - e ao invés de uma raça hostil, encontraram uma multidão de alienígenas de aparência insectóide, subnutridos e apáticos. Com a nave aparentemente desactivada, a pairar sobre a cidade, os alienígenas são recolocados para o Distrito 9, uma zona restrita e vedada nos arredores de Joanesburgo; falhada a integração, a zona  cedo se degrada e se transforma numa vasta favela. 


Com o passar dos anos, a miséria e a criminalidade no Distrito 9 dispararam, e a população da cidade não quer ter os prawns por perto - o que levou o Governo a contratar os serviços da MNU para relocalizar os alienígenas para um novo campo mais distante. É aqui que entra Wikus van de Merwe, designado pelo seu sogro como líder da operação que despejo dos alienígenas e deslocação para a nova área designada. Sempre acompanhado por uma força paramilitar, Wikus leva a cabo a operação com o seu peculiar e desastrado zelo - e, sem querer, vai tropeçar (quase literalmente) num segredo dos alienígenas que vai transformar a sua vida para sempre.


É evidente que District 9 está carregado de referências ao apartheid sul-africano e de vários acontecimentos que tiveram lugar naquele período - com destaque para o caso do "Distrito 6", com Neill Blomkamp e Terri Tatchell a utilizarem os alienígenas como plot device para explorarem o tema da xenofobia e da segregação racial. Aqui, nada e novo, e na forma a abordagem lembra um pouco a exploração da alienação dos combatentes através da relatividade que Joe Haldeman descreveu em The Forever War. Mas o que torna District 9 é a forma como Wikus evolui (pun intended) do funcionário burocrático, frio e de sentido de humor duvidoso para alguém que consegue compreender os alienígenas, ao ponto de sentir compaixão. A dada altura, o registo de mockumentary desvanece-se, e não se dá por ele - a extraordinária mudança de Wikus carrega todo o filme.


Pelo meio da infeliz cruzada de Wikus há a presença militar da MNU, decidida a levar a cabo a missão e a recuperar algo que lhes permitirá por fim utilizar armamento alienígena para propósitos militares; e os gangs do Distrito 9, com um propósito semelhante. Blomkamp, que dois anos antes trabalhada nas realização das curtas metragens que compõem Halo: Landfall, revelou conhecer muito bem as convenções narrativas da ficção científica também no universo dos videojogos. O arsenal alienígena é prova disso, e a acção frenética da última parte do filme utiliza praticamente todos os truques do manual de qualquer shoot'em up. O que, diga-se de passagem, está longe de ser um defeito - o armamento imaginativo e algo over the top contrasta com a aparente passividade dos alienígenas, e funciona não só como um excelente macguffin para as várias facções em jogo, mas também como base para uma excelente componente visual.


No ano em que James Cameron pulverizou os seus próprios recordes de bilheteira com Avatar e Duncan Jones encantou os fãs e surripiou prémios com o discreto e muito sólido Moon, Neill Blomkamp merece todo o destaque com District 9. Com um tom eficaz e um equilíbrio praticamente perfeito entre o humor e o drama, District 9 utiliza tropes clássicas com mestria e desenvolve, num filme atmosférico q.b., uma ideia relevante sem abdicar de excelentes sequências de acção. Será, sem dúvida, o melhor dos três - e um dos melhores dos últimos anos. 8.7/10

District 9 (2009)
Realizado por Neill Blomkamp
Argumento de Neill Blomkamp e Terri Tatchell
Com Sharlto Copley, Jason Cope, David James, Vanessa Haywood, Louis Minnaar, Eugene Khumbanyiwa e Mandla Gaduka
112 minutos