É bem possível que mesmo quem não esteja especialmente familiarizado com o jogo de cartas coleccionáveis Magic: the Gathering conheça alguns dos seus elementos mais populares - como a divisão em cinco cores, distintas, representando aspectos diferentes da magia. Esse é, aliás, um dos elementos fulcrais do jogo em si: cada cor tem os seus elementos individuais e a sua identidade própria. De forma muito simplificada, associa-se o branco à luz, ao zelo, à justiça e à ordem; o azul ao mar e ao céu, à manipulação e ao controlo; o preto à ambição, à corrupção, à morte; o vermelho à criatividade, à imaginação, à fúria e ao fogo; e o verde à força primitiva da natureza, selvagem e indomável. Como é natural, estes elementos acabaram por ser transpostos - e de forma sempre interessante, diga-se de passagem - para a narrativa que desde os tempos de Ice Age serve de suporte temático às cartas coleccionáveis e respectivas ilustrações. E, em 1999, serviu de mote para uma antologia de ficção curta inspirada no universo ficcional de Magic: the Gathering, com o muito apropriado título de The Colors of Magic.
Organizada por Jess Lebow, The Colors of Magic reuniu autores ligados aos universos ficcionais dos jogos de cartas coleccionáveis e de role-play e desafiou-os a escreverem contos a partir das cinco cores de magia, que podiam ou não estar directamente ligados às narrativas recentes daquele tempo - como, por exemplo, The Brothers' War, talvez a história mais célebre de Magic. O resultado é uma colecção de onze histórias que, não sendo homogéneas em termos qualitativos (algo que é comum, para não dizer inevitável, em antologias de ficção curta), conseguiram capturar de forma muito interessante e imaginativa a essência temática do jogo, transpondo-a com competência para um suporte ficcional. Vejamos algumas delas:
Angel of Vengeance, de Richard Lee Byers: É bem possível que Angel of Vengeance, a história que abre a antologia e uma das duas em representação da cor branca, seja a melhor da colecção. Mais ligada à identidade da cor do que às narrativas já estabelecidas (Byers apenas se socorre de uma mão-cheia de referências), o autor conta a história de Kotara, um anjo conjurado do seu refúgio celestial para o mundo terreno em nome de um pacto antigo, com o propósito de fazer justiça em nome de Sabul Hajeem, guildmage de uma cidade no reino de Zhalfir. Essa demanda por justiça cedo de transforma numa cruzada de vingança que Kotara se vê obrigada a levar a cabo, mas não sem consequências. E são essas consequências, e o drama de Kotara, que tornam Angel of Vengeance num conto tão intenso e tão memorável.
O outro conto que representa a cor branca na antologia é Reprisal, de Tom Loepold.
A Song Out of Darkness, de Loren L. Coleman: The Colors of Magic inclui vários contos que, podendo ser lidos de forma individual e sem qualquer outro enquadramento (os autores fornecem todo o contexto), acabam por ser sequelas funcionais da história dos irmãos Mishra e Urza que Jess Grubb contou no excelente The Brothers' War; A Song Out of Darkness, escrito por Loren L. Coleman em representação da cor verde, é um desses contos. Coleman utiliza uma personagem nova, um elfo do reino de Argoth que sobreviveu ao desastre que a guerra dos dois irmãos levou até à sua ilha-floresta (e a todo o mundo de Dominaria) e que procura, numa terra pantanosa estranha com uma magia desconhecida, outros sobreviventes da guerra - acabando por encontrar Gwenna, que anos depois do cataclismo se continua a culpar pelo seu gesto de misericórdia. Da justaposição dos elementos primordiais do verde e da sombra do seu inimigo natural, o preto, nasce uma fascinante e algo melancólica história de redenção, bem integrada no universo ficcional em que se baseia, explorando de forma muito competente uma personagem outrora secundária.
O outro conto que representa a cor verde na antologia é Versipellis, de Paul B. Thompson.
Goblinology, de Francis Lebaron: Sem qualquer exagero, Goblinology é um dos contos mais hilariantes que já tive oportunidade de ler - e é sem dúvida um dos melhores da antologia. Na sua exploração da cor vermelha, Francis Lebaron optou, como o título indica, por recorrer àquela que será talvez a criatura mais icónica desta cor (mesmo mais que os dragões, arrisco): os goblins. E fá-lo num formato tão invulgar como... académico. Em termos práticos, todo o texto de Goblinology é a tese académica de Armand Ar-basinno, professor de cultura popular e goblinologia na Universidade de Argive a propósito das ruínas de goblins encontradas num lugar conhecido como Flarg, mas na versão revista e anotada de um dos seus alunos, Latavino Bar-bassanti. E o humor do conto reside precisamente no confronto da interpretação lunática (e bem regada) do professor e da visão mais terra-a-terra (e cínica) do aluno - com Lebaron a construir uma imagem hilariante da cultura goblin enquanto, de forma algo inesperada, tece uma crítica muito pouco velada à massificação do fenómeno desportivo.
A representar a cor vermelha encontramos ainda o conto The Crucible of the Orcs, de Don Perrin.
Dark Water, de Vance Moore: O único conto da antologia que representa a cor preta conta a história de Tavya e Loria, duas primas de uma família abastada caídas em desgraça após a prática de rituais de magia negra que, começando por ser secretos, cedo passaram a rumores sussurrados na cidade - até que um ritual correu horrivelmente mal e as obrigou a se exilarem longe da civilização, numa cabana miserável entre o seu pombal (mais cuidado do que a casa) e um lago cristalino, com um pequeno charco séptico por perto. Entre a sua subsistência pobre e os seus rituais ao espírito maligno que levaram para o charco, as duas primas sonham em regressar aos tempos de outrora, quando eram jovens, belas e poderosas - mas, como antes, talvez não tenham a exacta noção das forças com que estão a lidar. Longe de ser um dos melhores contos da antologia, Dark Water nem por isso deixa de ser uma exploração interessante da identidade da cor preta no universo de Magic, com a ideia da ambição desmedida e do poder a qualquer custo (e pombos zombie) a serem centrais à narrativa.
Expeditions to the End of the World, de J. Robert King: Tal como A Song Out of Darkness, também este conto, que representa a cor azul, acaba por se enquadrar na grande narrativa de The Brothers' War ao mostrar uma faceta curiosa da guerra - a sua exploração comercial. A história começa com o Capitão Crucias, que transporta passageiros de classe alta dos reinos costeiros de Terisiare para a costa da ilha-floresta de Argoth, palco derradeiro da guerra entre os exércitos humanos e mecânicos de Urza e Mishra, para que possam contemplar a devastação (como se fosse um espectáculo) e, com alguma sorte, assistir a alguma escaramuça a partir de uma distância confortável. Naquele dia, porém, não haverá em Dominaria qualquer distância confortável: Urza utiliza o Golgothian Sylex de acordo com as instruções de Ashnod e desencadeia o cataclismo que oblitera Argoth, devasta metade do mundo e mergulha o restante numa longa era glacial. Apanhado na borrasca, Crucias vê-se numa situação desesperada - e entre o seu desejo de morrer e o desejo de uma criança viver, vai relembrar o seu passado trágico. É uma história contada a dois tempos, entre o passado e o presente do capitão - e ambas as partes funcionam muito bem.
The Mirror of Yesterday, de Jonathan Tweet, e Bound in Shallows, de Kevin T. Stein, representam também a cor azul na antologia.
Loren's Smile, de Jeff Grubb: Sem surpresa, o autor de The Brothers' War assina também uma sequela directa àquela história - e fá-lo em representação da gold border, da cor dourada que representa a combinação de duas ou mais cores diferentes. Loren e Feldon são duas personagens secundárias, mas relevantes, da história de Urza e Mishra, que procuraram um caminho alternativo ao dos dois irmãos. Loren acabou por morrer debilitada pelas sequelas da guerra, dez anos após a tragédia de Argoth; e Feldon, incapaz de lidar com o luto pela morte da mulher que amava, lança-se numa demanda pelos cinco aspectos da magia, e pelo artífice, de a recuperar. Loren's Smile é um conto especialmente tocante: uma história de amor e de luto que explora de forma excepcional o tema das cinco cores da magia, e lhes dá toda uma nova dimensão.
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