Vários têm sido os autores de ficção científica que, ao longo dos últimos anos, se têm esforçado para trazer ao género uma diversidade cultural que este não experimentou durante o seu apogeu - numa tentativa de superação do paradigma caucasiano, ocidental e anglo-saxónico que deu, e dá ainda, forma a uma fracção muito significativa do que se publica todos os anos no género. Poucos, porém, terão feito dessa premissa uma carreira tão bem sucedida como Ian McDonald, um inglês radicado na Irlanda (atente-se na ironia do exercício), que desde a publicação do seu primeiro romance em 1988, Desolation Road, tem trazido um exotismo muito próprio para os lugares tradicionais da ficção científica, ou transportado as premissas e os temas típicos do género para locais e culturas onde estes poucas vezes foram explorados. Em 2004, transportou para uma Índia futura e fragmentada o tema da Inteligência Artificial e em algumas ideias próximas do cyberpunk, e o resultado foi o romance vencedor na categoria de "Best Novel" dos British Science Fiction Awards desse ano: River of Gods.
Em certa medida, o que McDonald faz em River of Gods é um pouco o que John Brunner fez em Stand on Zanzibar (de resto, uma influência declarada do autor para esta obra): desenvolve uma premissa multifacetada e explora a partir dela toda uma visão transversal de uma sociedade ao mesmo tempo familiar e futurista, fazendo convergir para o centro da narrativa um conjunto de personagens com origens, personalidades e ambições radicalmente distintas - e profundamente verosímeis na sua plena individualidade. No caso, a sociedade presente e futura onde se situa a acção (ou a maioria da acção) é a Índia de 2047, um século volvido após o seu centenário enquanto nação independente. Que não se pense, porém, que este cenário serve apenas de pano de fundo a uma história de ficção científica mais "convencional", que poderia talvez ser contada com outro enquadramento; com a sua prosa sofisticada e evocativa, rica nas descrições e desafiante na mistura quase musical que faz de expressões hindi no seu inglês elaborado, a Índia de McDonald assume quase o estatuto de protagonista: oscilando entre o seu conservadorismo social e a sua sofisticação tecnológica, fragmentada num sem-número de estados que mantém entre si relações tensas, à beira de entrarem em guerra pela água que escasseia após alguns anos sem monção.
Toda esta realidade política e social é central à narrativa; e é para ela que vai convergir um elenco tão díspar como curioso. Temos Shiv e o seu sidekick Yogendra, dois pequenos criminosos que se irão envolver numa conspiração mais profunda do que imaginaram possível; Mr. Nandha, o Krishna Cop, um autêntico Rick Deckard moderno que caça Inteligências Artificiais (aeais, como McDonald as designa) ilegais e as desfaz com projécteis EMP; a sua mulher, Parvati, oriunda da Índia rural e perdida no meio da vasta e antiga Varanasi; Vishram Ray, o terceiro filho de um magnata da indústria energética, que se vê obrigado a abandonar a sua carreira de comediante na Europa por uma questão familiar inesperada; Tal, um nute (indivíduo que se submeteu a intervenções de uma complexidade inimaginável para abdicar da sua identidade sexual) que trabalha na produção de Town & Country, uma novela virtual interpretada por Inteligências Artificiais que são em simultâneo actores e celebridades (e o exemplo perfeito da mestria de McDonald de tornar o estranho plausível e humano); Shaheen Badoor Khan, muçulmano e o cérebro por detrás do governo de Sajida Rana; Najia Askarzadah, uma jornalista sueca de origem afegã que dá por si no meio do furo jornalístico da década; Lisa Durnau, uma física norte-americana que irá encontrar num asteróide próximo da Terra algo extraordinário e impossível; Thomas Lull, um dos mais reputados académicos mundiais na área da Inteligência Artificial, em exílio auto-imposto na Índia; e Ajmer Rao, uma jovem rapariga com a capacidade desconcertante de comunicar com os deuses, numa cruzada pessoal para descobrir os seus pais biológicos.
Ao longo das várias histórias é possível encontrar registos muito distintos entre si - e McDonald manipula-os com a mesma destreza com que mantém sob controlo as várias narrativas individuais, quais tributários de um rio que irão convergir no curso principal no local mais apropriado. A algumas cenas de acção intensa, quase cinematográfica no seu ritmo frenético, juntam-se momentos dignos de um filme cyberpunk - como a excomunhão de uma aeai que Mr. Nandha leva a cabo, ajudado pelos seus avatares virtuais com a forma e os atributos das divindades hindu. O mistério, esse, é revelado com rigor e mestria - e lido o clímax, há uma vontade súbita, quase irresistível, de fazer uma releitura que revele vários indícios e inúmeras pistas deixadas ao longo do texto.
Denso, volumoso e fragmentado por quase uma dezena de enredos paralelos assentes em personagens tão distintas como individualizadas e situado numa Índia futura descrita e extrapolada com um nível de detalhe a todos os níveis impressionante, River of Gods revela-se um livro exigente para o leitor: pede-lhe tempo, requer disponibilidade, obriga à reflexão sobre a sociedade que mostra (com todas as suas idiossincrasias e contradições) e sobre os conceitos que apresenta, quase sempre de forma muito pouco convencional. Mas o momento em que as várias tramas dispersas, quais fios soltos de uma vasta tapeçaria, começam a convergir para o centro da acção na cidade em simultâneo antiga e moderna de Varanasi, nas margens do Ganges, River of Gods recompensa em larga medida a persistência do leitor para se revelar num trabalho a todos os níveis excepcional, elevado pela riqueza da sua prosa, pela complexidade do seu enredo e pelas questões que a premissa, e a forma como esta é abordada, suscita. Se em 2004 Ian McDonald ainda precisasse de confirmar o seu estatuto de uma das vozes mais irreverentes e talentosas da ficção científica contemporânea, River of Gods seria a sua confirmação definitiva: sem dúvida, um dos grandes trabalhos que o género conheceu neste novo milénio.
Ao longo das várias histórias é possível encontrar registos muito distintos entre si - e McDonald manipula-os com a mesma destreza com que mantém sob controlo as várias narrativas individuais, quais tributários de um rio que irão convergir no curso principal no local mais apropriado. A algumas cenas de acção intensa, quase cinematográfica no seu ritmo frenético, juntam-se momentos dignos de um filme cyberpunk - como a excomunhão de uma aeai que Mr. Nandha leva a cabo, ajudado pelos seus avatares virtuais com a forma e os atributos das divindades hindu. O mistério, esse, é revelado com rigor e mestria - e lido o clímax, há uma vontade súbita, quase irresistível, de fazer uma releitura que revele vários indícios e inúmeras pistas deixadas ao longo do texto.
Denso, volumoso e fragmentado por quase uma dezena de enredos paralelos assentes em personagens tão distintas como individualizadas e situado numa Índia futura descrita e extrapolada com um nível de detalhe a todos os níveis impressionante, River of Gods revela-se um livro exigente para o leitor: pede-lhe tempo, requer disponibilidade, obriga à reflexão sobre a sociedade que mostra (com todas as suas idiossincrasias e contradições) e sobre os conceitos que apresenta, quase sempre de forma muito pouco convencional. Mas o momento em que as várias tramas dispersas, quais fios soltos de uma vasta tapeçaria, começam a convergir para o centro da acção na cidade em simultâneo antiga e moderna de Varanasi, nas margens do Ganges, River of Gods recompensa em larga medida a persistência do leitor para se revelar num trabalho a todos os níveis excepcional, elevado pela riqueza da sua prosa, pela complexidade do seu enredo e pelas questões que a premissa, e a forma como esta é abordada, suscita. Se em 2004 Ian McDonald ainda precisasse de confirmar o seu estatuto de uma das vozes mais irreverentes e talentosas da ficção científica contemporânea, River of Gods seria a sua confirmação definitiva: sem dúvida, um dos grandes trabalhos que o género conheceu neste novo milénio.
2 comentários:
Toca agora a saborear os CYBERABAD DAYS! Vais ficar deliciado pela forma como o McDonald aborda o mesmo universo de uma forma totalmente distinta.
Agora preciso de comprar esse, sim. E também o "The Dervish House".
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