Poucos lugares serão tão familiares na ficção científica como Marte, o célebre "Planeta Vermelho", transportado para inúmeras páginas tanto na sua versão imaginada antiga, com os canais de Lowell, como com a aridez rubra que as sondas da era espacial revelaram. Marte serviu de palco para inúmeras histórias de ficção científica, das aventuras de Edgar Rice Burroughs às crónicas quase poéticas de Ray Bradbury; e sem esquecer, claro, as tramas de autores tão consagrados como Arthur C. Clarke, Robert A. Heinlein, Frederik Pohl, Philip K. Dick, Ben Bova ou Ian McDonald (entre muitos outros), cada um imaginando à sua maneira como seria a vida num Marte ficcional. No início dos anos 90, Kim Stanley Robinson - que até já se tinha aventurado pelos territórios literários do Planeta Vermelho com Icehenge em 1984 - decidiu explorar uma vez mais o nosso vizinho do Sistema Solar, mas através de uma perspectiva em simultâneo hard science fiction detalhada e sociopolítica, com todas as componentes de um drama em território hostil que, em momentos, quase se aproxima da ideia de western. O resultado foi a célebre Mars Trilogy, iniciada em 1993 com Red Mars.
Tendo como tema a colonização e a terraformação de Marte, Red Mars centra-se em algumas das personagens que integraram os "cem primeiros" - os cem indivíduos que integram a expedição "Ares" e para fundar a primeira colónia humana permanente em Marte. Seleccionados após um árduo treino na Antárctida, os cem primeiros são lançados no vazio numa nave colossal, rumo ao planeta vermelho - e é no tédio relativo (para as personagens) da viagem que o leitor começa a conhecer as figuras de destaque do romance (após um prólogo estimulante que faz com que a maior parte da trama seja narrada in medias res - adensando consideravelmente o mistério ao introduzir a morte de um dos protagonistas): John Boone, lendário por ter sido o primeiro homem a pisar o solo marciano; Frank Chalmers, o cínico líder do grupo norte-americano, que tem na volátil Maya Toitovna a sua equivalente na facção russa; Arkady Bogdanov, o engenheiro russo idealista, com o sonho de criar uma sociedade nova no planeta; e outros, como Nadia Chernyshevski (talvez a melhor personagem de todo o romance), Ann Clayborne, Hiroko Ai, Sax Russel, Michel Duval, Phyllis Boyle - cem no total, com estes a assumirem os papéis mais relevantes e, no caso de John, Frank, Nadia, Michel, Ann e Arkady, os pontos de vista da narrativa.
Claro que a colonização e a terraformação estão longe de ser pacíficas, e apesar de o desenvolver como inevitável, nem por isso deixa Kim Stanley Robinson de questionar a sua legitimidade a todo o momento - com a progressiva degradação da Terra colocada à distância a servir de exemplo (o debate constante, e por vezes agressivo, entre Ann, Phyllis e Sax é o melhor exemplo dessa discussão permanente). No seu esforço de construir uma sociedade nova num mundo tão diferente e hostil, os cem primeiros colonos procuram deixar o passado para trás para dar forma a algo adequado às circunstâncias - esquecendo-se com frequência de que eles mesmos, com toda a sua bagagem, fazem também parte dessas circunstâncias. Do entusiasmo da construção da primeira aldeia à fragmentação do grupo original e ao início da emigração interplanetária e da apropriação do território e dos recursos de Marte por megacorporações transnacionais mais poderosas que estados soberanos é um pequeno passo - que, uma vez dado, só pode ter como resultado uma revolução. Robinson desenvolve com bom ritmo cada uma destas partes - da atenção dada ao pormenor da construção dos primeiros abrigos à precipitação dos acontecimentos durante a revolução, nada é deixado ao acaso - e o drama das personagens é suficientemente cativante para manter o interesse na trama.
Mas é no detalhe científico que Red Mars se excede e se eleva para o panteão da hard science fiction, fruto de uma pesquisa pormenorizada e exaustiva que transborda para as páginas e que confere uma verosimilhança ímpar à narrativa. Talvez não seja exagerado afirmar que a experiência de leitura de Red Mars será porventura o mais próximo que os leitores contemporâneos estarão de viajar de facto até Marte e de colonizar o planeta - e se alguns decerto serão afastados pelas longas e constantes descrições científicas explicadas de forma bastante acessível mas nem por isso menos rigorosa, outros decerto apreciarão a atenção dada ao pormenor e a forma como cada detalhe contribui para dar ao Marte de Kim Stanley Robinson uma aura de realismo que poucos romances conseguiram alcançar. A história dos cem primeiros colonos é, acima de tudo, verosímil.
Já nas questões económicas, políticas e sociais, de resto quase tão importantes como as científicas, acabam por surgir um pouco... estranhas nesta segunda década do novo milénio. Apesar de ter sido escrito e publicado após a queda do Muro de Berlim, Red Mars ainda tem a dicotomia da Guerra Fria profundamente entranhada na sua trama - a divisão entre norte-americanos e russos, com um punhado de colonos de outras nacionalidades, a oposição constante entre capitalismo e marxismo, a veia revolucionária de várias personagens. É possível, no entanto - e este é um pormenor fascinante - que Red Mars estivesse mais datado no final dos anos 90 do que hoje, com o ressurgimento da Rússia na cena internacional e com a ascensão das sociedades muçulmanas, nem sempre pelos melhores motivos. Quase como se nas suas páginas ecoasse aquela velha ideia de que a História acaba sempre por se repetir,
De certa forma, o que Red Mars acaba por ilustrar de forma exemplar (para lá de toda a enorme complexidade que uma expedição a Marte com o propósito de lá estabelecer uma colónia humana permanente acarreta, e que Robinson explora de uma forma que seria exaustiva se não fosse tão interessante) é a manifesta incapacidade de nós, enquanto humanos, sermos incapazes de deixar o nosso passado para trás - mesmo quando, para todos os efeitos, esse passado reside para lá de um enorme abismo espacial, a distâncias que a mente humana tem sérias dificuldades de conceber; e quando toda essa bagagem de pouco serve numa realidade completamente nova, estranha e hostil. Como intriga científica e social, Red Mars é um êxito assinalável - uma "novela" marciana, sim, mas com uma complexidade, uma atmosfera e um nível de detalhe que elevam o drama e tornam toda a leitura numa experiência memorável, como se o leitor, também ele, fosse um dos "cem primeiros" colonos a participar naquela expedição única.
[Há ainda um pormenor de Red Mars que merece referência, ainda que me tenha esquecido de o incluir no texto: ciente da vasta "ficção marciana" existente, e em muita da qual decerto se terá também inspirado, Kim Stanley Robinson deu várias designações familiares a algumas localidades que vão surgindo no decurso da trama - como as cidades de Burroughs e de Bradbury, por exemplo. São uma espécie de easter eggs, digamos assim - e dão um toque muito especial ao worldbuilding]
[Há ainda um pormenor de Red Mars que merece referência, ainda que me tenha esquecido de o incluir no texto: ciente da vasta "ficção marciana" existente, e em muita da qual decerto se terá também inspirado, Kim Stanley Robinson deu várias designações familiares a algumas localidades que vão surgindo no decurso da trama - como as cidades de Burroughs e de Bradbury, por exemplo. São uma espécie de easter eggs, digamos assim - e dão um toque muito especial ao worldbuilding]
Título: Red Mars
Autor: Kim Stanley Robinson
Editora: Bantam Spectra
Ano: 1993
Formato: Paperback
Páginas: 572
Género: Ficção Científica / Hard Science Fiction
Autor: Kim Stanley Robinson
Editora: Bantam Spectra
Ano: 1993
Formato: Paperback
Páginas: 572
Género: Ficção Científica / Hard Science Fiction
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