10 de junho de 2014

Edge of Tomorrow: Elogio da repetição

À primeira vista, seria fácil tomar Edge of Tomorrow, a adaptação cinematográfica do realizador Doug Liman ao romance All You Need Is Kill, de Hiroshi Sakurazaka, por mais um filme de ficção científica de acção dedicado ao tema recorrente da invasão alienígena que a Humanidade tem de repelir a qualquer custo - e decerto com a ajuda de um herói relutante a espaços, mas determinado quando tal é exigido. O casting de Tom Cruise, já com experiência como herói de acção, para o papel principal até poderia ser um indicador desse acomodar à fórmula de filmes como Independence Day; e, para todos o efeitos, nem falta ao filme a power armor indispensável a qualquer aproximação que se preze à ficção científica militar. Mas nem o romance de Sakurazaka nem o filme de Liman se prestam ao cliché - o herói relutante mas determinado dá lugar a William Cage, um oficial sem experiência de combate mas com muita experiência de propaganda, que se vê atirado com um bando de inadaptados em power armor para um autêntico Dia D futurista (a referência é mais do que evidente, e em alguns momentos o filme evoca, na sua estética própria, o frenesim desesperado dos instantes iniciais Saving Private Ryan); e o desembarque na Normandia resulta num massacre que, longe de originar uma vitória decisiva, resulta numa derrota devastadora, à qual não escapa o próprio protagonista, morto num confronto com uma criatura alienígena pouco depois de conseguir (finalmente!) activar as suas armas.


... para acordar no dia anterior aos pés do Sargento Farell (um hilariante Bill Paxton), num Heathrow convertido em base militar, despromovido e entregue à recruta básica nas vésperas da batalha que a Humanidade espera poder virar o curso da guerra contra os invasores alienígenas conhecidos como Mimics. O espanto de Cage é palpável - por momentos, espectador e personagem ponderam a possibilidade de algo ali ser um sonho. Ou um pesadelo, quando dá por si a reviver a experiência traumática do desembarque na praia, o massacre subsequente, e a sua própria morte... para acordar de novo aos pés de Farell, num loop temporal interminável, algo reminiscente do célebre Groundhog Day que obrigou o Phil Connors de Bill Murray a reviver o mesmo dia vezes sem conta.  


Mas onde Groundhog Day se centra na aprendizagem do protagonista de ser uma pessoa melhor, Edge of Tomorrow dá ao seu protagonista a possibilidade de experienciar o derradeiro método de aprendizagem por tentativa e erro: sempre que morre, acorda no dia anterior com todas as memórias do dia seguinte, que para todos os efeitos ainda não aconteceu - o que lhe permite tentar de alguma forma tirar partido da situação. Perante a impossibilidade de evitar ir para a frente de batalha, Cage aprende a utilizar as armas e procura salvar os seus companheiros da morte certa que já presenciou; e numa das batalhas vai salvar Rita Vrataski (Emily Blunt), a heroína de guerra responsável pela única vitória da Humanidade na sua guerra contra os Mimics - e a única pessoa que lhe poderá dar algumas respostas quanto ao seu improvável dom.


Aqui chegados, é bom de ver que a lógica se aproxima mais dos videojogos do que do clássico de Harold Ramis: o protagonista tem uma missão e um parceiro, avança até certo ponto, morre, e regressa ao último save, que é no dia anterior - e todos os amigos e inimigos fazem respawn na antecipação da próxima batalha. Como é evidente, o conceito tem um vasto potencial cómico, que Doug Liman sabe explorá-lo sem o tornar cansativo ou repetitivo (imagine-se!): é divertidíssimo ver o William Cage de Tom Cruise ser morto de forma sucessiva, antes, durante e depois da batalha na costa de França, aprendendo o suficiente para chegar um pouco mais longe a cada tentativa - qual protagonista de um videojogo em hard mode


Um filme mais sério - mais grimdark, na tendência recente e já enjoativa do fantástico moderno - acabaria por explorar o desgaste do processo, mas Edge of Tomorrow, num rasgo de brilhantismo raro nos blockbusters contemporâneos, opta antes por dar destaque ao carácter humano e dramático de Cage, afastando-se a cada batalha e a cada morte da covardia e da "chico-esperteza" que lhe eram características para adquirir um pouco de abnegação e de inteligência prática. O momento - quão longo? Nunca o sabemos - que passa com Rita numa casa abandonada longe da praia é ilustrativo desse crescimento; e a revelação que lá tem lugar mostra quão distante Cage está daquele homem manhoso que é apresentado nas primeiras cenas do filme.


Nada disto, como é bom de ver, seria possível de alcançar se os actores não estivessem à altura; mas Tom Cruise e Emily Blunt encarnam na perfeição as suas personagens. Cruise, herói para toda a obra, consegue transmitir na perfeição a imagem do covarde astuto habituado a utilizar todos os meios que tem ao seu dispor para evitar o perigo - e transporta a sua personagem numa evolução dramática assinalável em menos de duas horas. E Emily Blunt, enfim, é Emily Blunt - começa a ser recorrente vê-la a roubar as suas cenas com interpretações desarmantes (é vê-la em Looper e The Adjustment Team); a forma como dá em simultâneo força e fragilidade à sua Rita Vrataski é notável, tornando-a numa personagem muito mais complexa, e por isso muito mais interessante, do que a "Full Metal Bitch" (o pun não é meu) que aparenta ser na propaganda militar; e a química que estabelece com Cruise transporta o filme tanto nos seus momentos mais meditativos (e ainda há alguns) como nos mais frenéticos. Para além, claro, de ficar espantosa na sua power armor


Algumas críticas apontam a falta de motivação dos invasores alienígenas como uma fraqueza de Edge of Tomorrow. É um facto que pouco se sabe acerca dos Mimics: as suas origens e os seus propósitos permanecem, para todos os efeitos, envoltos em mistério. Isso, no entanto, está longe de ser um problema - e em termos de lógica interna do filme, explica-se facilmente pelo facto de ninguém saber a resposta a tais questões. São extraterrestres e deram início a uma invasão hostil do planeta - o tema é mais do que recorrente na ficção científica, e só passará de moda no dia em que houver um primeiro contacto pacífico real


De resto, Edge of Tomorrow não é tanto uma história sobre uma invasão alienígena, como The War of the Worlds; tão-pouco tem como tema (principal ou secundário) a tentativa de compreender o invasor, como Ender's Game; é, sim, um filme sobre a aprendizagem violenta daquelas personagens, pela utilização de um poder que utilizam sem compreender - pela necessidade de fazer o impossível, e prevenir um massacre que já viram como inevitável. A progressiva empatia de Cage para com Vrataski e para com o bando de inadaptados que constituem o Pelotão J ilustra isso na perfeição.


Mais do que o filme de acção competentíssimo que é, Edge of Tomorrow revela-se um blockbuster raro pela inteligência do seu argumento, ao evitar as armadilhas da repetição enquanto premissa e ao ser capaz de dosear com habilidade a adrenalina do combate, o humor que o conceito permite e personagens credíveis com um crescimento assinalável, tornadas interessantes sobretudo pelas suas imperfeições. Não deixando de fazer sentido, a sinopse "Groundhog Day" meets "Starship Troopers" acaba por pecar por falta de rigor - Edge of Tomorrow é tudo isso, mas é também mais do que isso. No que aos blockbusters de verão diz respeito, é difícil pedir muito mais, ou muito melhor. 8.2/10

Edge of Tomorrow (2014)
Realização de Doug Liman
Argumento de Christopher McQuarrie, Jez Butterworth e John-Henry Butterworth a partir do romance All You Need Is Kill de Hiroshi Sakurazaka
Com Tom Cruise, Emily Blunt, Brendan Gleeson, Bill Paxton e Jonas Armstrong
113 minutos

3 comentários:

João Souza disse...

João, depois da decepção que tive com o Oblivion e Elysium ano passado eu nem ia ver esse filme no cinema... Para mim, pior do que um sci-fi ruim é um "sci-fi" que não seja sci-fi, cheio de ação e muito genérico.
Mas você falou bem e até me animou, vou tentar ver.


Falando nisso o último que vi no cinema foi Godzilla na semana passada, já ia sair de cartaz e eu quis dar uma chance pro lagartão gigante.... Mas que decepção cara, não foi nem por parte do diretor, mas sim do roteiro. Achei a história cheia de deus ex-machina e o roteiro não faz você se importar com os protagonistas em nenhum momento, Bryan Cranston faz uma enorme diferença, mas tem pouco tempo de tela. Espero que não tenha continuação daquilo. Pelo menos seu post sobre o filme foi muito bom! rs


Abs!

João Campos disse...

O "Elysium" também foi uma desilusão para mim - demasiado moralista e demasiado simples nesse moralismo (a subtileza de "District 9" perdeu-se algures...). Já do "Oblivion" gostei, mesmo não sendo um filme extraordinário. E mais ainda deste "Edge of Tomorrow", que - na minha opinião, claro - é um excelente filme.

O "Godzilla"... pois. Mais Bryan Cranston, menos Aaron Taylor-Johnson e sobretudo mais Godzilla teria sido bom. Enfim, é o que se arranja. Agora é esperar por "Guardians of the Galaxy".

Abraço

Ale disse...

Apesar de ser um pouco no final, eu também defender o resultado, parece oportuno 100% compatível com o resto da história. Eu a amava, realmente eu recomendo No Limite do Amanhã com Tom Cruise uma história menos-me dito que provavelmente apenas alguns gostam.