27 de maio de 2014

Watchmen: A armadilha da adaptação

Até há alguns anos, Watchmen figuraria decerto em qualquer lista de obras literárias cuja adaptação para o cinema seria um projecto impossível - a complexidade narrativa profundamente ancorada no próprio formato de comic assegurou, em termos práticos, a impossibilidade da transposição da graphic novel de Alan Moore e Dave Gibbons para outro meio. O que, diga-se de passagem, não impediu que esse projecto passasse anos no development hell de Hollywood, do final dos anos 80 até meados da primeira década do novo milénio, com realizadores tão distintos como Terry Gillian ou Darren Aronofsky a surgirem associados a ele. Quem no entanto acabou por concretizá-lo foi Zack Snyder, saído do sucesso comercial da adaptação de 300, de Frank Miller; perante a recusa antiga de Alan Moore de escrever ele mesmo um argumento - o autor, aliás, foi mais longe e recusou qualquer associação com o filme -, o argumentista Alex Tse pegou no guião que David Hayter preparara em 2001 e o filme pôde por fim avançar. Com estreia em 2009: Watchmen, a adaptação impossível da mais aclamada das graphic novels.

Será talvez interessante notar que em 2009, e apesar do grande sucesso comercial e moderado sucesso crítico das franchises X-Men,  Spider-Man e Batman (de Christopher Nolan), as adaptações da banda desenhada norte-americana de super-heróis para o cinema ainda não se tinha tornado no fenómeno avassalador e de escala planetária que é hoje, apenas cinco anos volvidos. Nesse sentido, é possível que Watchmen, com a sua narrativa meta-referencial e a sua desconstrução de todo o género, tenha conhecido a sua adaptação ao grande ecrã demasiado cedo - antes de todo o género ao qual pertence, e que desmonta a cada momento, se ter afirmado fora das pranchas e de se ter tornado num fenómeno da cultura popular contemporânea. Também por isso (ainda que não apenas por isso) o filme de Snyder dificilmente poderia almejar uma importância sequer próxima daquela que a obra original de Moore e Gibbons.


Claro que, em termos práticos, não foi  por isso. Como em qualquer adaptação, Snyder e Tse tiveram de optar por excluir muitos elementos narrativos que jamais poderiam funcionar em filme. De fora ficaram os Tales of the Black Freighter e o seu estranho reflexo da narrativa principal; de fora ficaram ainda os inúmeros pormenores que Moore e Gibbons colocaram entre capítulos em forma de clippings e outros recortes para dar mais verosimilhança a toda a história, e a toda a História alternativa que é construída a partir da premissa de que os super-heróis mascarados foram legalizados no final dos anos 30 para combater o crime. E de fora ficou também a vasta trama lateral que conduz ao desenlace inesquecível que Alan Moore cunhou num rasgo da mais absoluta genialidade - toda a conspiração surge simplificada, ainda que funcional (a solução de Snyder, longe de ser perfeita, não deixa de ser airosa). 


O que não quer dizer que Snyder não tenha encontrado ele mesmo algumas soluções interessantes - e até bastante inteligentes. A mais óbvia será a do genérico inicial, que surge logo após o homicídio de Edward Blake (Jeffrey Dean Morgan), cena que coloca em movimento toda a trama. Ao som da magnífica The Times They Are a-Changing, de Bob Dylan, a sequência inicial enquadra na perfeição toda a história ao apresentar, de forma condensada mas nem por isso menos eficaz, toda a história dos vigilantes mascarados desde os "Minutemen" originais até aos "Watchmen" dos últimos anos de legalidade, antes de o Keene Act retirar o enquadramento legal à sua actividade. Quem já conhecer a banda desenhada encontrará neste genérico inúmeras referências já familiares; quem nunca tiver lido, depressa apanhará todo o contexto da trama que se seguirá. 


E essa segue em larga medida as batidas da história original, com o último vigilante ainda em actividade, Rorschach (Jackie Earle Haley) a investigar o homicídio de Blake e a descobrir que ele era o "Comedian", um herói mascarado com um carácter especialmente cínico e uma certa propensão para a violência que integrara ambas as gerações de vigilantes e que após a ilegalização passou a trabalhar com o governo norte-americano. Suspeitando de que a sua morte encerra muito mais do que um mero ajuste de contas, Rorschach decide começar a investigar o caso pelos seus próprios meios - e vai avisar os seus antigos colegas de que alguém anda a eliminar os antigos vigilantes. 


Esses colegas são Dan Dreiberg, a segunda encarnação de Nite Owl; Adrian Veidt, que após o Keene Act assumiu ser o vigilante Ozymandias e tornou-se, desde então, num empresário de sucesso e num dos homens mais ricos do planeta; Laurie Jupiter, que sucedeu à sua mãe na personagem Silk Spectre; e Dr. Manhattan, um físico de nome Jon Osterman que na sequência de um acidente no laboratório se tornou num super-herói genuíno, o único do grupo. Enquanto todos os outros são seres humanos normais (ainda que no filme todos possuam força, resistência e habilidades marciais muito acima da média), Manhattan é algo diferente: desmaterializado por acidente e materializado por pura força de vontade, tornou-se numa criatura sobre-humana com poderes ilimitados, que só pela sua presença (e após a sua demonstração de poder no Vietname, a pedido de Nixon) manteve as duas super-potências da Guerra Gria numa paz armada e forçada. 


Claro que seguir as batidas da trama original é muito diferente de uma reprodução fiel - e apesar de Snyder dar sinais claros de o entender bem pelo material que cortou, nem por isso deixa de tentar chegar o mais perto possível da fasquia de Moore e Gibbons. A ajudá-lo está um elenco muito sólido, com dois actores excepcionais: Jackie Earle Haley no papel do paranóico Rorschach, o vigilante noir que persegue a conspiração até às últimas consequências (é uma pena que o argumento tenha encontrado espaço para explorar todas as histórias de origens menos a dele, com a associação ao caso de Kitty Genovese); e Jeffrey Dean Morgan como Comedian, o herói violento e amoral que encara a sociedade e a Humanidade de forma especialmente cínica, e cuja morte no prólogo coloca em marcha toda a trama, com consequências mais vastas do que seria à partida de esperar.


E é nessa tentativa de se aproximar da complexidade da graphic novel que Watchmen acaba por se perder um pouco, com um ritmo demasiado irregular e uma trama interrompida com frequência por flashbacks que, sendo interessantes e mesmo importantes, acabam por desviar demasiado a atenção do que se está de facto a passar - ao ponto de, a meio de um filme com mais de duas horas e meia, ainda não se ter avançado quase nada na trama principal, e de muitos plot points surgirem por isso quase forçados (Veidt será talvez a personagem a sofrer com isso). A alteração do final, por necessária que possa ter sido para encurtar o tempo de duração de um filme já em si bastante longo, acaba por funcionar com um grande mas: a solução, como disse acima, tem alguma elegância, mas nem por isso deixa de ter um problema lógico no mínimo curioso.


Restam os efeitos especiais, que são excelentes e que são utilizados quase sempre em benefício da trama, sem lhe roubar protagonismo (ainda que Snyder abuse um pouco da câmara lenta), e permitindo criar um Dr. Manhattan muito credível. E, claro, a banda sonora excepcional, com temas de Bob Dylan, Leonard Cohen e Simon & Garfunkel a encaixarem-se na perfeição em vários momentos do filme. 


No que às adaptações cinematográficas de romances ou graphic novels diz respeito, é praticamente cliché dizer que o livro é melhor que o filme - com os exemplos do contrário tão raros, o cliché há muito ganhou o estatuto de regra. Não será este Watchmen de Snyder a afamada excepção que confirma a norma; ainda que esforçado, com alguns desempenhos notáveis e rasgos esporádicos de brilhantismo, o filme fica longe da complexidade e do carácter meta-referencial da obra-prima de Alan Moore e Dan Gibbons, concebida como comic e que só naquele formato se poderá contemplar na sua totalidade. No entanto, é muito provável que perante uma obra impossível de adaptar, Snyder tenha feito a melhor adaptação possível: um filme interessante ainda que um pouco desequilibrado, capaz de capturar as batidas narrativas da aclamada graphic novel sem que consiga chegar perto da sua ambiguidade, originalidade e genialidade - mas também sem envergonhar a sua criação na passagem da prancha para a película. 7.2/10

Watchmen (2009)
Realização de Zack Snyder
Argumento de David Hayter e Alex Tse a partir da graphic novel de Alan Moore e Dave Gibbons
Com Jackie Earle Haley, Patrick Wilson, Malin Akerman, Billy Crudup, Jeffrey Dean Morgan, Matthew Goode, Carla Gugino, Matt Frewer e Stephen McHattie
162 minutos

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