Talvez seja difícil ler Cat's Cradle, a sátira negra de Kurt Vonnegut publicada em 1963, sem evocar, ou pelo menos recordar, a célebre "Lei de Murphy": se algo pode correr mal, vai correr mal. Com uma estrutura narrativa fragmentada por mais de uma centena de capítulos de dimensões reduzidas - na prática, pequenos episódios organizados de forma mais ou menos sequencial em jeito de memórias, este quarto romance de Vonnegut propõe uma desconstrução ousada e invariavelmente inteligente de alguns aspectos das sociedades humanas e da própria natureza humana, da política, da religião e até mesmo da ciência (com o mérito de em momento algum cair no proselitismo político, religioso ou científico - Vonnegut dispara em todos os sentidos, e a sua pontaria é impressionante).
Mas comecemos pelo início. Cat's Cradle abre uma frase que decerto soará muito familiar à maioria dos leitores:
Mas comecemos pelo início. Cat's Cradle abre uma frase que decerto soará muito familiar à maioria dos leitores:
Call me Jonah. My parents did, or nearly did. They called me John.
E esta alusão ao clássico de Herman Melville Moby Dick marca desde logo todo o tom satírico, bem temperado por um certo cinismo desesperançado e polvilhado por um humor especialmente negro, que atravessa toda a obra - para além de, numa curiosa alusão bíblica, descrever na perfeição John - Jonah -, narrador e protagonista. John apresenta-se no primeiro capítulo como um escritor a recolher material para um livro factual intitulado The Day the World Ended - um título bastante presciente, no qual pretende compilar pequenas histórias sobre o que alguns cidadãos norte-americanos tinham feito durante o dia 6 de Agosto de 1945, quando os Estados Unidos lançaram a primeira bomba atómica sobre a cidade de Hiroshima. A sua investigação acaba por conduzi-lo até ao Dr. Felix Hoenniker, o físico laureado com o Prémio Nobel da Física e instrumental na criação da primeira bomba nuclear, e falecido anos antes do início da narrativa; e a fim de descobrir mais sobre o enigmático Felix Hoenniker, John começa a corresponder-se com o mais novo dos três filhos do cientista, Newton "Newt" Hoenniker, que dá a resposta à pergunta: no dia do bombardeamento de Hiroshima, tinha ele seis anos, o seu pai passara o dia a fazer uma "cat's cradle" com fio, entre os dedos.
Intrigado, John viaja até à vila na qual os Hoenniker viveram para entrevistar os habitantes locais que o pudessem conhecer. E é lá que descobre um segredo extraordinário: num projecto de Defesa, Felix Hoenikker desenvolveu uma substância designada por ice-nine. O seu propósito original era permitir que tropas não perdessem mobilidade num pântano eliminando o problema da lama; na prática, o que o ice-nine faz é congelar, instantaneamente e à temperatura ambiente, toda a água com a qual entra em contacto. A busca por toda a verdade sobre esta substância apocalíptica vai levar John até à nação (ficcional) de San Lorenzo, numa ilha sem qualquer valor nas Caraíbas, governada com pulso firme por um ditador que mantém a população numa miséria material que um truque religioso notável consegue camuflar, desafiando toda a lógica - ou talvez evocando uma lógica muito própria.
E é neste exacto ponto que Cat's Cradle se revela um texto espantoso: pela forma como Vonnegut utiliza um elenco muito peculiar e um encandeamento de peripécias quase rocambolesco para desconstruir, em jeito de sátira a roçar o absurdo a espaços, as construções políticas que estão na base das sociedades e toda a natureza do fenómeno religioso (enquanto atira algumas farpas à ciência). Vonnegut descreve longamente (mas nunca de forma exaustiva) a religião de San Lorenzo, que designa como bokononism - um culto assente no conceito de foma, ou de mentiras inofensivas. "Live by the foma that make you brave and kind and healthy and happy" é o mote, a pedra angular de todo o edifício religioso do bokononism; e este alberga não uma promessa espiritual mas um propósito notável pelo seu carácter material e pragmático. Mas onde se poderia ler uma crítica mordaz à religião acaba por se encontrar uma sátira estranhamente neutra: não importa se assenta em verdades ou mentiras, pois o ponto, bem vistas as coisas, não é esse.
Talvez Cat's Cradle não seja um texto para todos os leitores - o humor poderá talvez ser demasiado negro, o tom poderá pecar por excesso de cinismo, e a estrutura nem sempre sequencial em termos de cronologia interna poderá por vezes dispersar um pouco o enredo. Esta estrutura, porém, imprime a todo o texto um ritmo rápido, intenso, cada vez mais frenético à medida que o final se precipita; a escrita cativante de Vonnegut, essa, torna a leitura urgente, quase vertiginosa. E há na inteligência da sua construção, no absurdo de algumas das suas passagens e no engenho da suas peripécias aproximações a verdades desconfortáveis, mas nem por isso menos plausíveis; vários são os momentos em que o riso dá quase lugar ao horror. Cat's Cradle é um trabalho notável, um clássico da ficção científica de pleno direito e, acima de tudo, uma obra espantosamente humana. Que o consiga ser quando desenvolve um comentário à estupidez e à futilidade humanas talvez acabe por ser o seu maior feito.
Talvez Cat's Cradle não seja um texto para todos os leitores - o humor poderá talvez ser demasiado negro, o tom poderá pecar por excesso de cinismo, e a estrutura nem sempre sequencial em termos de cronologia interna poderá por vezes dispersar um pouco o enredo. Esta estrutura, porém, imprime a todo o texto um ritmo rápido, intenso, cada vez mais frenético à medida que o final se precipita; a escrita cativante de Vonnegut, essa, torna a leitura urgente, quase vertiginosa. E há na inteligência da sua construção, no absurdo de algumas das suas passagens e no engenho da suas peripécias aproximações a verdades desconfortáveis, mas nem por isso menos plausíveis; vários são os momentos em que o riso dá quase lugar ao horror. Cat's Cradle é um trabalho notável, um clássico da ficção científica de pleno direito e, acima de tudo, uma obra espantosamente humana. Que o consiga ser quando desenvolve um comentário à estupidez e à futilidade humanas talvez acabe por ser o seu maior feito.
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