Será porventura fácil - demasiado fácil, dirá talvez quem tiver idade e memória para se lembrar -, perante os avanços prodigiosos das computer generated images, esquecer que houve um tempo em que os filmes de fantasia e de ficção científica eram feitos com outra tecnologia de ponta - com marionetas, maquetas, criações mecânicas, cenários reais, efeitos práticos, e uma dose inexcedível de talento, criatividade e esforço para tornar as imagens da imaginação em algo tangível. E nessa medida, submersos pelos efeitos especiais hiper-realistas alimentados pela cenografia virtual, pela imagem visual e pela motion capture, será talvez fácil para o público contemporâneo arrumar na prateleira do "datado" o espantoso legado de Jim Henson, um dos mais originais, criativos e audazes criadores que o entretenimento audiovisual (podemos falar tanto de televisão como de cinema) alguma vez conheceu. Muito se poderia dizer sobre Henson e sobre o seu célebre "Creature Shop", ainda hoje responsável pela animação de muitas criaturas do cinema fantástico (Where the Wild Things Are, de Spike Jonze, foi uma das mais recentes produções a contar com a colaboração do Jim Henson Creature Shop), e sobre programas clássicos como The Mupper Show ou Sesame Street, com as suas inesquecíveis marionetas. Talvez um dia me aventure nesse tema; hoje, porém, merece destaque uma das suas longas metragens, um clássico de culto de fantasia sem um único ser humano à vista: The Dark Crystal.
Concebido com o propósito de se afastar do humor e da ligeireza das suas outras produções de se aproximar um pouco mais das raízes mais sombrias dos contos de fadas originais, The Dark Crystal coloca a sua história num mundo novo e original - Thra, um planeta iluminado por três sóis e alimentado pela magia de um "cristal encantado". O design conceptual e de personagens é de Brian Froud, cujas ilustrações de fantasia capturaram a atenção de Henson. Toda a cenografia do filme é magnífica, dos espaços exteriores aos vários níveis do castelo dos Skeksis - e, claro, ao fascinante planetário de Aughra, em movimento constante. Mas onde a imaginação de Froud se excede é na criação das várias raças que povoam o mundo de Thra - dos Místicos pacíficos e em harmonia com a natureza aos vilões Skeksis, num misto de ave com réptil; dos Podlings pigmeus aos Gelflings, parecidos com elfos clássicos; e sem esquecer as inúmeras criaturas que se encontram naquela natureza.
O design de Froud encontrou na realização e no engenho de Henson e do seu parceiro Frank Oz os seus complementos perfeitos - e onde The Dark Crystal se eleva é na sua ilimitada criatividade visual, que dá uma vida exuberante a todo aquele mundo. Todos os espaços estão povoados por criaturas selvagens - as florestas têm as suas feras, os seus monstros e os seus bichos de pequena dimensão, que vemos escapulir-se à passagem dos protagonistas; nas masmorras do castelo vêem-se pequenas criaturas rastejantes a fugir da luz para a escuridão. E os vários povos de Thra ganham vida com um magnífico trabalho de marionetas construídas com um nível de detalhe impressionante - são absolutamente realistas na sua aparência fantasiosa (e por vezes quase assustadora), e com uma caracterização individual muito inteligente. Em termos estéticos e visuais, The Dark Crystal foi revolucionário na sua época, na primeira metade dos anos 80; e hoje, mais de três décadas volvidas, está muito, muito longe de se poder considerar, em boa fé, datada.
A estes elementos junta-se um voice acting excepcional e uma banda sonora impecável de Trevor Jones, perfeita no tom e na atmosfera que evoca - forças mais do que suficientes para compensar as fraquezas de The Dark Crystal, que acabam por surgir na sua vertente narrativa. Aqui, The Dark Crystal segue em larga medida os pergaminhos da fantasia literária na vertente Tolkieniana - um jovem de uma raça mais ou menos insignificante na luta de poder por aquele mundo descobre que é a pedra angular de uma profecia antiga, tendo de partir numa demanda mais ou menos sinuosa para impedir que o Mal triunfe e restaurar a paz e o equilíbrio natural originais. No caso, o protagonista é Jen, o último dos Gelflins, criado pelos sábios Místicos; e segundo uma profecia antiga, Jen terá de encontrar um fragmento do Cristal Encantado e restaurar a pureza original do Cristal quando os três sóis se alinharem - caso falhe, as trevas tomarão conta do mundo.
É possível traçar o paralelismo com The Lord of the Rings ou encaixar as várias etapas do enredo no monomito de Joseph Campbell; em termos gerais, Henson não se afastou muito das convenções estabelecidas no género, e utiliza alguns recursos mais ou menos tradicionais para enquadrar toda a trama - a narração inicial é disso exemplo, estabelecendo a história de Thra e o conflito que lhe é nuclear (e ainda que os diálogos possam ser, a espaços, um pouco fracos, a narração introdutória é surpreendentemente boa na simetria que estabelece, deixando adivinhar um dos temas centrais do filme sem no entanto ser óbvia a esse respeito). Mas o arrojo conceptual que Henson e Oz empregaram na componente visual e no worldbuilding de The Dark Crystal acaba também por se reflectir em alguns aspectos da narrativa; e isso nota-se não só em alguns pormenores da premissa (a dualidade do conflito original), mas também - sobretudo, diria - nas personagens.
Aqui chegados, é interessante notar como os papéis clássicos são ao mesmo tempo seguidos e subvertidos - e a subversão é feita sobretudo através do elemento do género. Jen, o protagonista e centro da profecia que coloca toda a trama em marcha, não é o herói convencional - é hesitante, trapalhão, pouco dado à aventura, e a sua inegável coragem apenas se revela no último momento. A demanda, essa, prossegue pela influência de duas outras personagens, ambas femininas.
A primeira, Aughra, é uma profetisa e astrónoma de origens desconhecidas, temperamento irascível e lealdade imprevisível (a sua neutralidade também tem muito que se lhe diga), que vive num planetário majestoso no topo de uma montanha, a partir do qual estuda o movimento dos astros e tece as suas profecias. A segunda é Kira, uma Gelfling orfã (como Jen), criada pelo povo Podling e com o dom de falar com os animais - para além de possuir a coragem, a determinação e a abnegação que normalmente são associadas ao herói. Em momento algum assume a posição de damsel in distress - é através dos seus dons e do seu engenho que se salva dos vários perigos que enfrenta, e é através da sua coragem que Jed consegue avançar na sua demanda.
Com o cinema fantástico contemporâneo absolutamente dependente dos efeitos especiais computorizados, mais sofisticados a cada blockbuster, capazes de recriar com um realismo por vezes excessivo tudo aquilo que se consiga imaginar, torna-se ainda mais interessante rever The Dark Crystal, trinta anos volvidos desde a sua estreia - e apreciar esta relíquia do cinema pré-CGI, quando os efeitos práticos, as maquetas, as marionetas e os cenários reais trabalhados em pormenor eram a norma, e quando brevíssimas sequências de animação serviam para mostrar aquilo que de outro modo seria impossível de reproduzir. Visualmente assombroso pelo engenho com que constrói todo um mundo credível e familiar na sua estranheza, The Dark Crystal poderá limitar-se a contar uma história mais ou menos típica de fantasia, mas fá-lo com uma imaginação e com um charme que são raríssimos de encontrar hoje em dia no género. Já não se fazem mesmo filmes assim. 8.2/10
The Dark Crystal (1984)
Realizado por Jim Henson e Frank Oz
Argumento de Jim Henson e David Odell
Com Jim Henson, Kathryn Mullen, Frank Oz, Billie Whitelaw, Steve Whitmire e Dave Goelz
93 minutos
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