1 de julho de 2014

Spirited Away: Idade da inocência

Não se pode dizer que em 2001 Hayao Miyazaki fosse um desconhecido no Ocidente - ainda que a maior parte da sua obra talvez não tivesse alcançado naquela altura a popularidade que merecia, o êxito de Mononoke-hime cinco anos tornou-o definitivamente num nome a acompanhar no que ao cinema de animação dizia respeito. Mas o sucesso internacional absoluto chegaria naquele Verão com a estreia de Spirited Away, filme que se tornaria num clássico instantâneo do cinema de animação (japonesa e não só) e num dos mais aclamados filmes da primeira década do novo milénio. O Óscar para Melhor Filme de Animação em 2003 (o filme só estreou nos Estados Unidos em 2002) confirmou o êxito internacional do filme que ainda hoje, com quase treze anos volvidos desde a sua estreia, permanece de pedra e cal no topo do box office japonês.

O sucesso, diga-se de passagem, é merecido: é possível que Spirited Away não seja o melhor filme de Miyazaki (pessoalmente, julgo que a ambiguidade e a densidade de Mononoke-hime tornam o filme de 1997 mais completo), será sem dúvida o exemplo perfeito da imaginação inesgotável do realizador/argumentista/animador, aqui recorrendo à vasta mitologia japonesa para dar forma a uma fábula moderna sobre a identidade, a maturidade e alguns paradoxos do Japão moderno (que não serão porventura exclusivos do Japão...).


Para todos os efeitos, Spirited Away (o título inglês é perfeito no trocadilho que faz entre o significado de to spirit away e os temas e as imagens do filme) é a história de Chihiro, uma jovem rapariga de dez anos que, quando o filme começa, se mostra tristíssima pela mudança de casa em curso, que a afastará da sua antiga escola e de toda a gente que conhecia. Durante a viagem de carro, o seu pai engana-se no caminho, e a família acaba por encontrar, numa mata onde se diz viverem espíritos antigos, a entrada de um parque de diversões abandonado, nunca concluído - um sinal dos tempos, após o fim do "milagre japonês" na economia, que conduziu ao declínio do país e ao desencantamento do seu povo.


No parque de diversões encontram vários restaurantes que parecem estar abandonados - mas que nem por isso deixam de ter imensa comida. Movidos pela gula, os pais de Chihiro decidem entregar-se a um almoço invulgar, deixando-a a explorar as imediações sozinha. Chihiro chega a a uma ponte que leva a um estranho edifício junto à costa - e lá encontra um misterioso rapaz chamado Haku, que a avisa para regressar antes que anoiteça. Um aviso que chega tarde: Chihiro encontra os seus pais transformados em porcos, e toda aquela zona aparentemente abandonada revela-se ser um mundo diferente daquele a que pertence - e ao qual não consegue regressar.


Presa no mundo dos espíritos, Chihiro segue as indicações de Haku e vai procurar um trabalho naquele estranho edifício, que descobre ser uma casa de banhos onde os espíritos podem relaxar e purificar-se. Chihiro começa por pedir trabalho a Kamaji, responsável pelas caldeiras de aquecimento de água com o seu pequeno exército de susuwatari (bolas andantes de fuligem); lá conhece também Lin, que trabalha nos banhos. E ambos acabam por encaminhá-la para a dona do estabelecimento: a bruxa Yubaba, responsável pela transformação dos seus pais, que lhe vai propor um contrato muito especial. 


O mundo dos espíritos que Miyazaki conjura é espantoso pela sua imensa diversidade de criaturas (passe a designação) fantásticas reminiscentes do folclore japonês e das mitologias orientais - do No-Face que segue Chihiro ao Stink Spirit que ela se vê obrigada a servir, sem esquecer todos os outros hóspedes da casa de banhos que se vislumbram, e que deixam antever todo um mundo encantado que se estende para lá do prado verdejante do parque de diversões e do mar infinito que se estende para lá do edifício. A animação, colorida e pormenorizada, é a todos os níveis soberba, conferindo a todo aquele universo um certo tom de encantamento que o torna mais verosímil. 


Chihiro, renomeada Sen pelo contrato com Yubaba, movimenta-se com cada vez mais habilidade por entre os espíritos e os humanos que os servem, com a sua inocência desarmante e a sua bondade natural. Mas aquele mundo não é o seu, e é justamente essa inocência que será posta à prova numa aventura para recuperar a sua identidade, perdida para Yubaba, os seus pais, e para regressar ao mundo a que pertence. Para tal, porém, terá de perceber quem é Haku - se os rumores nada abonatórios que correm na casa de banhos sobre ele são verdadeiros, ou se existe um Haku real que ninguém conhece.


Para todos os efeitos, Spirited Away é uma história sobre o deslocamento, sobre a estranheza, e sobre a nossa definição de nós mesmos perante a mudança - Chihiro, deslocada do seu mundo natural, acaba num mundo espiritual ao qual pertence ainda menos, e é na memória e no reconhecimento da sua identidade que está a chave para conseguir sair daquele lugar. É um filme sobre o crescimento e a maturidade - na prática, é essa a jornada pessoal de Chihiro, que se vê obrigada (em mais do que um sentido) a se adaptar a situações completamente novas para alcançar aquilo que deseja. Mas é também possível descortinar nas entrelinhas outras mensagens de Miyazaki - a problematização ecológica, tão cara à sua filmografia, surge aqui em dois momentos cruciais; e os temas da ganância, da corrupção e do declínio social surgem associados a vários momentos e a algumas personagens.


Não é difícil perceber por que motivo Spirited Away ainda hoje é o filme mais bem sucedido de sempre no Japão, e um dos seus filmes mais conhecidos para lá do arquipélago - para todos os efeitos, Miyazaki criou uma fábula moderna no rito de passagem da jovem Chihiro, num mundo secundário fascinante e ricamente povoado por toda a sorte de criaturas fantásticas; e, com a subtileza que lhe é reconhecida (já demonstrada em Mononoke-hime), embebeu a aventura na aparência simples de Chihiro/Sen temas e mensagens de uma maior complexidade e ambiguidade. É um clássico instantâneo - um dos melhores filmes de animação alguma vez realizados -, e um marco numa carreira recheada de clássicos como a de Miyazaki. 8.5/10

Sen to Chihiro no kamikakushi / Spirited Away (2001)
Realização e argumento de Hayao Miyazaki
Com Rumi Hiiragi, Miyu Irino, Bunta Sugawara, Mari Natsuki, Takashi Naitô, Yasuko Sawaguchi, Yumi Tamai, Tatsuya Gashuin e Akio Nakamura
125 minutos

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