Podemos começar pelo óbvio: avaliando a ficção científica dos anos 90, será sem dúvida difícil colocar Demolition Man (1993) entre as suas peças mais completas, memoráveis e duradouras. Falamos, afinal, da década que deu à extensa filmografia do género obras incontornáveis como Terminator 2: Judgment Day, Jurassic Park, Ghost in the Shell e The Matrix, e clássicos de culto como Total Recall, Dark City, Twelve Monkeys ou Mars Attacks!. De certa forma, este filme de Marco Brambilla encaixa-se numa certa "tradição" iniciada ainda nos anos 80 que colocou as estrelas de acção (Jean-Claude Van Damme, Dolph Lundgren, Arnold Schwarzenegger, Sylvester Stallone et al) em narrativas inspiradas no imaginário e nas convenções da ficção científica - encontramos viagens no tempo, ciborgues, inteligências artificiais - mas que servem para pouco mais do que um cenário para a pancadaria, bem regada de testosterona, que os actores proporcionam. Mas a verdade é que, com todas as suas limitações e com todos os seus defeitos (a submissão absoluta aos piores clichés do cinema de acção será porventura o mais evidente), Demolition Man acaba por se elevar um pouco acima da mediocridade hiper-violenta de outros filmes seus contemporâneos.
Não que não seja violento. Longe disso: ainda que lhe falte o gore de outras produções da época, Demolition Man inclui violência mais do que suficiente, e uma ou duas cenas que podem pertencer a uma categoria intitulada nightmare fuel. O que o distingue, e em última análise o eleva, acaba por ser a sua construção utópica e distópica, o tom mais ligeiro e o carácter profundamente meta-referencial do argumento, ciente das convenções da ficção científica e hábil a utilizá-las tanto para efeitos cómicos como para colorir um futuro especulativo que, à distância de duas décadas, se apresenta mais profético do que se poderia imaginar à primeira vista.
As primeiras imagens, com o Hollywood sign em chamas perante uma cidade escura e arruinada, são todo um tratado: Los Angeles encontra-se mergulhada no caos e na violência - e para fazer frente à escalada destrutiva, as autoridades viram-se obrigadas a recorrer a métodos mais extremos. John Spartan (Sylvester Stallone) é um dos polícias mais duros da cidade, não olhando a meios para levar os criminosos à justiça - e encontra-se obcecado com a captura de Simon Phoenix (Wesley Snipes), um dos mais perversos e violentos marginais daquela região. O seu plano ousado para capturá-lo acaba por resultar, mas com um preço elevado - a morte (aparente) de várias dezenas de reféns. Tanto Spartan como Phoenix acabam por ser condenados, mas não são presos - naquela sociedade, a pena é cumprida em congelação criogénica, com implantes cibernéticos para reeducar os condenados com vista à sua reintegração futura na sociedade.
O problema surge quando Simon Phoenix, "descongelado" para a sua audição de liberdade condicional em 2033, acaba por se evadir, deixando um rasto de morte e destruição à sua passagem - numa sociedade utópica assente em ideais de paz e de compreensão, na qual as armas são peças de museu (literalmente) e o conceito de violência não é de todo compreendido. Incapaz de lidar com o criminoso a monte, a polícia vê-se obrigada a "descongelar" Spartan, o polícia de outro tempo que conseguiu capturar Phoenix. Ao acordar, porém, Spartan depara-se com uma sociedade que lhe é de todo estranha: um mundo higienizado e ingénuo, governado pela tecnologia de vigilância e controlado pelas boas intenções do "salvador" Raymond Cocteau; um mundo onde tudo é proibido, até o contacto físico. Um mundo que Spartan, o antepassado violento daquela civilização, se apressa a descrever como "fascista".
"Send a maniac to catch one". A frase é de Spartan, que se vê obrigado a recorrer aos seus antigos métodos - ironicamente mais próximos do seu inimigo do que da sociedade que está a tentar proteger - para deter a ameaça de Phoenix. A acompanhá-lo está Lenina Huxley (Sandra Bullock), uma agente policial fascinada pelos anos 90 e desejosa de mais acção no seu trabalho. É sobretudo a partir da sua interacção com Huxley que Spartan se vai apercebendo das idiossincrasias daquele tempo tão diferente do seu; por seu lado, Huxley vai descobrir quão errada e injusta é a sociedade que integra, e que jurou proteger.
É certo que, na maior parte do tempo, Demolition Man oscila entre uma sátira que se aproxima mais de galhofa do que de um olhar cínico sobre a evolução e as idiossincrasias daquela sociedade e a acção violenta com a qual se construiu a carreira cinematográfica do action hero Stallone. O protagonista faz o papel do costume, ainda que com mais ligeireza do que é habitual (ou do que era habitual naqueles anos) e com um guião repleto de deixas hilariantes; Sandra Bullock, no papel da agente Lenina Huxley, entra um pouco em overacting (e é divertido hoje vê-la a interpretar daquela maneira), mas nem por isso deixa de transmitir muito bem a relativa inocência da sua personagem, nascida numa sociedade esterilizada e incapaz de compreender, por mais que estude, o tempo do seu novo parceiro. E Wesley Snipes, pelos vistos, terá recebido carta branca para fazer o que quisesse - e o resultado é uma interpretação tão over the top que quase salta para fora do ecrã (e que funciona tão bem).
A ligeireza do tom não é de todo uma fraqueza do filme - o futuro no qual Spartan e Phoenix vão acordar revela-se fascinante pela forma como utiliza convenções e ideias tradicionais da ficção científica para algo mais do que o mero enquadramento das sequências de acção entre as personagens de Stallone e Snipes. Demolition Man constrói com humor, mas também com algum cinismo, um futuro credível e hoje estranhamente presciente: uma sociedade higienizada e "limpa", pacificada de forma artificial, com assimetrias sociais profundas e enxotadas para debaixo do tapete (a metáfora é mais literal do que parece), incapaz de se desviar da norma vigente, imposta sobre todos com a melhor das intenções. Ao ver hoje aquele futuro smoke-free e insosso reconhecem-se logo algumas tendências muito presentes (não precisámos de chegar a 2033 para a paranóia higienista). O contraste de Spartan naquele tempo não podia ser mais claro - e ilustra na perfeição como é fácil se passar da boa intenção para a radicalização absoluta.
Igualmente interessante à distância de vinte (e um) anos é a vertente de antecipação tecnológica de Demolished Man. Vemos Lenina Huxley a comunicar com o seu superior a partir de um tablet que transporta pela rua, em ligação permanente. O seu carro de polícia não só se conduz sozinho como possui um sofisticado sistema de navegação que funciona por algo na prática idêntico ao GPS (até na voz irritante que dá as indicações). A identificação e monitorização de cada cidadão por via de um chip - ainda não chegámos a tal ponto, mas para lá caminhamos. Sem esquecer, claro, a sátira (e problematização) aos relacionamentos intermediados por tecnologia - algo hoje banalíssimo, ainda que não no formato exacto que o filme antecipa.
E, claro, merece destaque o carácter meta-referencial que é transversal a todo o filme - e que se revela sobretudo em tiradas humorísticas que os fãs de ficção científica notam logo à primeira. O nome "Lenina Huxley" carece de explicação, e não surpreende que a dada altura alguém se refira àquele tempo com a expressão "it's a brave new world". Será talvez difícil não sorrir quando se vê Simon Phoenix no arsenal do museu a interrogar-se: "Wait a minute, this is the future. Where are the phaser guns?" Ou, alguns momentos depois, "C'mon, HAL, where are the god damn guns?", numa referência a 2001. Ou mesmo quando John Spartan diz para o jovem polícia que o acompanha Hey, Luke Skywalker, use the Force!". Isto, note-se, sem incluir outras tiradas pop - há alusões a Rambo (claro), e há uma série de easter eggs dos anos 80 e 90 no gabinete e no apartamento de Huxley.
Há muitas - muitas - formas de imaginar como Demolition Man poderia ser um filme bem melhor do que é, doseando de forma mais equilibrada o exagero sem abdicar das suas duas mais relevantes qualidades: a sua perspectiva satírica e o seu carácter meta-referencial. Nem por isso, porém, deixa de ser um filme interessante, surpreendentemente divertido, que em momento algum se leva a sério - e que convida o espectador, de forma tão descontraída como violenta, a mostrar como o Inferno se encontra de facto cheio de boas intenções, e como a utopia de uns será sempre a distopia de outros. Com um humor interessante (a questão das três conchas continua a ser uma das melhores piadas recorrentes do cinema de ficção científica; e a distorção da ideia de ressocialização criogénica com as habilidades de Spartan é hilariante) e uma trama de acção mais ou menos convencional, Demolished Man é um produto típico dos anos 90, com todas as suas qualidades e defeitos - mas, à distância, tem muito mais conteúdo do que poderia parecer à data da sua estreia. 07/10
Demolition Man (1993)
Realizado por Marco Brambilla
Argumento de Peter M. Lenkov, Robert Reneau e Daniel Waters
Com Sylvester Stallone, Wesley Snipes, Sandra Bullock, Nigel Hawthorne, Bob Gunton, Benjamin Bratt, Glenn Shadix, Dennis Leary e Grand L. Bush
115 minutos
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