Quando aqui falei de Rocannon's World, de Ursula K. Le Guin, destaquei como um dos aspectos mais marcantes da obra a fusão bem conseguida entre elementos de fantasia e de ficção científica, tão diferentes entre si e capazes de dar forma a um todo se não extraordinário, pelo menos muito promissor (trata-se, afinal, do seu primeiro romance). Dois anos mais tarde, essa promessa concretizar-se-ia em pleno em dois romances fundamentais da sua bibliografia, e da fantasia e da ficção científica enquanto géneros literários: A Wizard of Earthsea e The Left Hand of Darkness, respectivamente. Entretanto, porém, houve tempo para continuar a aprimorar a fórmula em algumas histórias do universo ficcional que mais tarde viria a ser conhecido como "Hainish Cycle". Planet of Exile, foi o romance que se seguiu, ainda em 1966.
A narrativa de Planet of Exile tem lugar em Werel, no sistema de Gamma Draconis - um planeta cuja órbita em redor do seu sol demora 60 anos terrestres, e cujas longas estações duram 15 anos. No momento em que a narrativa começa, as tribos locais estão a preparar-se para a chegada do Inverno*, reconstruindo as suas cidades hibernais para armazenarem as colheitas e, nos seus abrigos subterrâneos, enfrentarem o longo frio e as neves altas que a estação invariavelmente trará. Sem esquecer, claro, o reforço das suas muralhas para resistir às investidas de bandos de Gaal - as tribos de Norte que, com a chegada do Inverno, migram para Sul em busca de climas mais quentes e atacam quem podem em busca de recursos. Algo, porém, será diferente no Inverno que se avizinha; e tanto ao clã Tevaran do velho Wold como a Landin, a cidade costeira próxima na qual habita um povo estranho, chegam avisos de que a próxima migração dos Gaal não será desordeira e dispersa como aconteceu noutros anos, mas organizada, massiva - e perigosa. Temendo um ataque concertado que, a confirmarem-se os rumores, terá resultado na queda de cidades hibernais mais a Norte, o líder de Landin, Jakob Agat, procura uma aliança improvável com o povo de Tevar - mas o envolvimento de Rolery, uma das filhas de Wold, leva a um reacender do preconceito e da inimizade dos locais para com o povo de Landin, diferentes pela sua aparência e pelos estranhos poderes que naquele mundo passam por bruxaria.
As primeiras páginas dão a impressão de que Planet of Exile será mais um romance de fantasia, com dois povos distintos a viver lado a lado - um com poderes e conhecimento estranhos, outro mais atrasado. Aos poucos, porém, Le Guin começa a desmontar algumas ideias e a revelar o seu verdadeiro rosto: será talvez impossível ao leitor mais experimentado evitar um sorriso quando percebe que hilf, a designação que os homens da cidade junto ao mar dão aos nativos daquela terra, não é uma designação de fantasia escolhida ao acaso, mas sim um acrónimo para highly-intelligent life-form. É a partir dessa revelação que o mito daquele povo é revelado - vieram de outro mundo para lá das estrelas há vários anos locais, com o propósito de estudar as culturas daquele planeta, e dar-lhes a oportunidade de se juntarem à Liga que une vários mundos separados pelo vazio sideral; mas a partida da sua nave deixou-os num exílio forçado, do qual a única saída deverá ser um desaparecimento inexorável. Limitados pelas leis de uma Liga cujo destino desconhecem, mas que os proíbe de adoptar e desenvolver tecnologias que condicionem a evolução cultural dos nativos, os exilados vêem-se obrigados a regredir a uma vida quase-medieval com alguns luxos dissimulados (os trekkies decerto notarão a proximidade desta ideia com a célebre "Prime Directive").
A prosa de Le Guin, já notável no seu início de carreira, cristaliza um tom melancólico, a espaços poético, para toda a trama - duas características que nunca perde, nem nos momentos que poderíamos considerar "de acção"; e as imagens que conjura são de uma beleza espantosa. Dito isto, o mais impressionante em Planet of Exile acaba por ser tanto o worldbuilding, enganadoramente simples nas suas premissas - com poucas palavras e sem recurso a infodumps forçados, Le Guin confere uma verosimilhança impressionante àquele mundo distante, com as suas longas estações e as suas culturas, ao mesmo tempo tão familiares e tão estranhas. E povoa esse mundo com personagens tão imperfeitas na sua humanidade - o velho Wold, sábio e teimoso, sempre provocador na sua rebeldia; a jovem Rolery, inocente e livre, uma rara filha do Inverno cujas perspectivas pouco animadoras em nada diminuem o seu gosto pela vida e a sua curiosidade natural; e Jakob Agat, o líder nobre de um povo em declínio, exilado mas orgulhoso, determinado a sobreviver até às últimas consequências.
É certo que Planet of Exile está longe de ser um romance perfeito - ou, pelo menos, um texto do calibre a que Le Guin habituou os dois géneros nos quais se viria a tornar numa referência incontornável. Alguns elementos são deixados em aberto, como se integrassem o início de uma ideia nunca concretizada - a praia por onde Rolery passeia, e de cuja maré súbita é salva por Agat, não deixa de persistir na memória como uma Chekhov's Gun deixada por disparar sobre o rebordo da lareira . Mas nem por isso deixa de dar continuidade à promessa deixada por Rocannon's World, e por mostrar a sofisticação e a imaginação da jovem Le Guin na construção de um mundo ficcional que se revela espantosamente harmonioso na sua mescla de fantasia e ficção científica.
*Salvaguardadas as devidas distâncias, será talvez difícil para o leitor de fantasia contemporânea ler este romance sem se lembrar de A Song of Ice and Fire, de George R. R. Martin - vários motivos utilizados aproximam a região Norte de Werel do Norte de Westeros. É difícil dizer, sem perguntar, se o romance de Le Guin serviu de influência, directa ou indirecta, a Martin - mas dada a paixão deste pela ficção científica, tal possibilidade não será talvez de descartar.
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