13 de junho de 2014

Atlas Shrugged: Distopia ideológica

Por via de Bioshock, que finalmente saiu da minha wish list para quebrar um ano algo monótono no que aos videojogos diz respeito, fez-me regressar a Ayn Rand com a sua inspiração no ideário objectivista e numa certa noção estética que surge com alguma frequência associado às obras que constituem os pilares desta corrente filosófica do século XX. Esse é, aliás, um dos aspectos de interesse do jogo da Irrational: a forma se inspira na filosofia objectivista e na exploração temática de Rand (e numa certa estética que lhe surge associada) para lhes fazer uma desconstrução fascinante e ambígua q.b., e para contar uma história a todos os níveis singular no meio. O que, convenhamos, não deixa de ser curioso, e raro: poucos autores se têm revelado tão polémicos e divisivos de forma tão consistente como Rand; uma discussão dos seus livros ou dos seus ideais acaba sempre entricheirada, regra geral com rapidez surpreendente. Não é o objectivo deste artigo entrar nessa discussão (de resto irrelevante); tão pouco é fazer uma análise crítica da narrativa de Bioshock à luz do Objectivismo (isso está para breve); é, sim, explorar alguns elementos que permitem enquadrar o magnum opus de Rand, Atlas Shrugged, na ficção científica.

Independentemente dos seus atributos enquanto filósofa, honra seja feita a Rand: ao invés de apresentar os seus ideais e a sua filosofia em ensaios destinados a ser lidos sobretudo por estudantes e académicos de Filosofia e de Ciência Política, optou por desenvolvê-los em romances que, pese embora a sua carga ideológica, são bem mais acessíveis a um maior número de leitores, possibilitando uma certa concretização prática, ainda que pouco ambígua, das suas premissas. Vemos isso em We the Living (1936), em Anthem (1938), em The Fountainhead (1943) e em Atlas Shrugged (1957), de longe a sua obra mais ambiciosa - na qual, à luz dos valores que individualismo, propriedade e liberdade que são centrais ao Objectivismo, desenvolve uma vasta distopia situada num futuro próximo, na qual uma série de invenções tecnológicas revolucionárias tem o potencial de fazer a sociedade dar um salto de gigante em frente. 

Essas tecnologias são surgem como meros adereços - são fulcrais à trama, sendo a partir delas que a narrativa avança e que Rand faz passar algumas das suas ideias (de forma bem mais eficaz do que através dos longos discursos que, infelizmente, são demasiado frequentes no texto). Há o "Rearden Metal", inventado pelo mogul da metalurgia Hank Rearden (uma liga metálica mais leve e mais resistente que o aço), capaz de revolucionar as aplicações do metal a um preço mais baixo e que ilustra o ponto da indústria avessa à mudança, e da interferência estatal em nome de uma concorrência feita não pelo mérito e pelo risco, mas pela "cunha". Há o "Projecto X", uma perversão de um projecto original do Dr. Robert Stadler, que na prática deu forma a uma arma de grande poder (na prática, um "death ray" sonoro), que Rand utiliza para contrapor o desenvolvimento científico e tecnológico privado àquele que é desenvolvido por institutos científicos públicos (com o primeiro, no seu ponto de vista, a ser sempre benévolo e o segundo a resultar, enfim, numa arma devastadora - a imagem fala por si). E, claro, há o "motor" de John Galt, um artefacto capaz de recolher a electricidade estática da atmosfera e utilizá-la para todo o tipo de aplicações - e o abandono do protótipo na fábrica da Twentieth Century Motor Company, sem que alguém para além de Dagny Taggart seja capaz de perceber o seu propósito, serve de catalisador à premissa central do texto.

E essa é, para todos os efeitos, uma "greve do intelecto" concretizada pelo misterioso John Galt no momento em que decide abandonar o seu projecto de energia ilimitada e limpa: afastando-se da criação no seio de uma sociedade que vê incapaz de reconhecer o mérito e de dar valor a quaisquer noções de criatividade e produtividade, decide criar num refúgio incalcançável a derradeira utopia objectivista (porque, na prática, é de uma utopia que estamos a falar). Um lugar onde o mérito individual seria o único critério de valorização pessoal, independentemente da actividade, e onde cada indivíduo teria liberdade absoluta para perseguir a sua concretização pessoal numa sociedade de iguais. Adoptando um trabalho básico, muito abaixo das suas capacidades, Galt dedica-se a procurar indivíduos que partilhem os seus valores para povoar a sua utopia - convidando-os a abandonar as suas conquistas e a sociedade. Um por um, as grandes mentes criativas e os trabalhadores competentes da América vão desaparecendo sem deixar rasto - de industriais como Ellis Wyatt a Ken Dannager a intelectuais como Hugh Askton e a cientistas como Quentin Daniels, até trabalhadores menos qualificados mas incomparáveis na sua competência e na sua dedicação. 

A tecnologia ficcional de Atlas Shrugged serve não só como catalisador para alguns dos principais momentos da narrativa, mas também para estabelecer o contraponto entre a utopia de John Galt e a progressiva distopia que se instala na sociedade à medida que os seus homens de mérito desaparecem. "Galt's Gulch", a utopia que os grevistas originais constroem, é um éden tecnológico - um refúgio inexpugnável nas Montanhas Rochosas protegido por uma vasta ilusão de óptica projectada na atmosfera e alimentado pelo "motor" de Galt - e pelas inovações desenvolvidas pelos seus residentes. Por contraste, assiste-se à progressiva deterioração tecnológica do mundo exterior, com as vias de comunicação e as redes eléctricas a falhar com cada vez mais frequência, e com o pouco progresso que resta a ser apropriado para armamento. 

Por estes aspectos (e o ponto poderia ser bem mais elaborado), faz todo o sentido enquadrar Atlas Shrugged na tradição distópica da ficção científica, onde figuram romances prestigiados como Nineteen Eighty-Four, Brave New World ou mesmo Stand On Zanzibar - todos com uma forte componente especulativa assente, em larga medida, em tecnologia plausível. Todas as comparações possíveis, porém, terminam aí - ainda que o ideário randiano tenha um interesse inegável, ao sobrepor a componente ideológica e a carga moral que pretende veicular à narrativa propriamente dita Rand não permite que o seu romance se eleve ao patamar literário daqueles textos, e nega-lhe a ambiguidade e a complexidade que os tornou em clássicos duradouros e incontornáveis. A trama de suspense é executada com um módico de competência quanto se afasta dos solilóquios filosóficos (neste aspecto, The Fountainhead é superior), mas em última análise a vertente literária de Atlas Shrugged acaba por se ver limitada pelo seu maniqueísmo irredutível e pelas suas personagens demasiado arquetípicas, cuja ausência de carácter real e de densidade emocional acaba por torná-las em meros veículos ideológicos (o facto de ser esse o objectivo não o torna menos frustrante). O que não deixa de ser lamentável - há em Atlas Shrugged o início de uma reflexão interessante, quiçá importante, sobre o possibilidades reais da criatividade, da dedicação ao conhecimento científico - e nesse sentido, numa perspectiva da ficção científica, mais interessante para o género acaba não por ser o livro que Rand escreveu, mas a sequela que nunca foi escrita sobre a concretização do seu ideal e sobre a sociedade que daí emergiria*.

*Também por isso, a audácia dos criadores de Bioshock é notável.

Sem comentários: