Há filmes que, mais do que impressionar pela história que contam, deixam marcas pelas emoções que transmitem - e que tantas vezes se revelam difíceis, se não mesmo impossíveis, de definir. Lembro-me da ocasião em que vi o magnífico Let the Right One In, do sueco Thomas Alfredson, julgo que numa sessão televisiva na RTP2: o desconforto que marca a história daquele rapaz vítima de bullying e da menina enigmática que vive na casa do lado é palpável, quase sufocante - uma sensação difusa mas persistente de que algo ali está profundamente errado. Ou quando fui ver Melancholia, de Lars Von Trier, nos últimos dias da sua passagem pelas salas de cinema de Lisboa (isto em 2011): um filme apocalíptico poderoso como nenhum outro que tenha visto, atrevido ao ponto de mostrar a cena final nos primeiros minutos, numa das mais belas sequências de imagens do cinema recente - não é o final que importa, afinal, mas jornada das irmãs Justine e Claire perante o fim. E será talvez essa inevitabilidade que faz a angústia de Melancholia transbordar para o espectador - esse conhecimento absoluto de que não há redenção possível, e que tão fútil é a aceitação serena como a negação insana. Ou quando, há dias, tive a oportunidade de assistir a Under the Skin, o mais recente filme de Jonathan Glazer, que pegou no romance homónimo do holandês Michel Faber para recriar no grande ecrã a estranheza absoluta e desconfortável do outro, através do seu ponto de vista.
O que se revela interessante desde logo pela ambição. Na ficção científica, poucos desafios são tão complexos como a representação do outro, do derradeiro desconhecido, do alienígena. Há aqui uma certa ironia: um género rico na imaginação de outros mundos, de viagens nos abismos que separam as estrelas, e das civilizações misteriosas que habitam esses mundos e esses abismos, a revelar-se com tanta frequência incapaz de mostrar o outro como um verdadeiro alienígena. Mais um reflexo do familiar do que do desconhecido, os extraterrestres da ficção científica, mesmo os mais icónicos, surgem quase sempre humanizados nas suas características; mesmo aqueles que se tentam destacar por um módico de estranheza e de distanciamento racional acabam quase sempre por se aproximar de alguma forma de sociopatia ou autismo do que do estranho. Até o célebre xenomorph de Alien, por estranho que possa parecer acaba por assumir uma forma que conhecemos: a forma do predador, metódico e implacável (e a alien queen de James Cameron manifesta mesmo uma atitude maternal). É possível que o defeito esteja no olhar humano: a interpretação do desconhecido acaba sempre por ser feita à luz daquilo que já conhecemos. Mas se o ponto de vista fosse o deles, dos alienígenas – se fosse a sua história, vista por nós com os seus olhos, como seria?
Profundamente desconfortável. É a resposta possível que Jonathan Glazer arrisca em Under the Skin ao reduzir a narrativa ao seu mínimo denominador comum e ao esbater os motivos na atmosfera enevoada da Escócia no olhar frio de uma mulher que não é quem, ou o que, aparenta ser. Scarlett Johansson supera-se numa interpretação superlativa, silenciosa na sua melancolia e emotiva na sua ausência absoluta de emoção: ela é a alienígena em pele humana, sensual e inescrutável, que caça homens incautos na noite de Glasgow – para quê, ninguém sabe ao certo. Os seus motivos, esses, são tão insondáveis como ela.
Under the Skin abre com uma sequência de imagens herdeira de 2001: A Space Odyssey (será talvez difícil olhar para o filme sem pensar em Kubrick, referência e influência assumidas por Glazer). No fundo abstracto, ouve-se uma voz a repetir palavras em inglês - como se estivesse a aprendê-las. Num momento, passamos para um território indefinido da Escócia, onde um motoqueiro sem rosto recupera o corpo de uma rapariga de uma vala - e de seguida, vemos a personagem de Scarlett Johansson a despir o cadáver, que é igual a si, e a vestir as suas roupas. E a partir daqui, começa a caçada.
Um dos feitos mais extraordinários de Under the Skin é a forma como consegue retirar a carga sexual de uma actriz como Scarlett Johansson - e isto num filme cuja premissa narrativa reside no ponto de ela seduzir homens. Despida de todo o seu glamour, a alienígena de Johansson afigura-se como uma rapariga evidentemente bela, mas nem por isso menos comum. Vemo-la ao volante de uma Ford Transit branca a guiar ao acaso pela Escócia, abordando homens na rua - Glazer filmou várias cenas com câmaras escondidas, e muitos dos homens que ela aborda não são actores, mas cidadãos comuns. Alguns dão-lhe as indicações que ela solicita e afastam-se. Outros alinham no jogo de sedução, e deixam-se conduzir para o seu covil.
Todo este jogo é, na sua essência, profundamente sexual e sensual - mas a interpretação de Johansson, a realização de Glazer e a banda sonora excepcional de Mica Levi anulam toda a sensualidade e sexualidade da actriz e do momento e substituem esses elementos por um autêntico pesadelo sensorial, numa subversão intrigante e desconcertante. No início, o motivo é repetido sem que se conheça o destino das suas vítimas, até ao momento em que, deixando os propósitos abertos para interpretação, esse destino é revelado - e revela-se indescritível (o livro, tanto quanto sei, é bem mais explícito).
Aqui chegados, poderíamos pensar que o filme iria conduzir a uma exploração dos motivos daqueles extra-terrestres, cuja aparência humana esconde a sua alienação absoluta. Glazer descreve com detalhe e sem poupar meios o carácter inescrutável daquelas criaturas - alheias às emoções humanas, indiferentes à banalidade das suas vidas, capazes de as imitar com um módico de competência mas incapazes de compreender o que são aquelas criaturas que caçam (a cena da praia, horrível para muitos, é exemplar na sua ilustração absoluta de indiferença). Mas Under the Skin ambiciona mais do que isso, e Glazer opta por deixar os motivos envoltos em mistério para mudar as regras do jogo com uma das vítimas da protagonista, agente involuntário no despontar da curiosidade - e de um fragmento de auto-consciência que a irá mudar de forma radical.
E é neste ponto que Under the Skin se revela superlativo: na reflexão que faz sobre a identidade e sobre o outro através da jornada de descoberta da personagem de Scarlett Johansson, a alienígena perfeita, uma estranha num corpo estranho que se começa a questionar sobre o que é a humanidade, e sobre quão limitada é a sua capacidade de pertencer. Se na primeira parte Glazer embebeu o filme de um desconforto tenso, quase palpável, na segunda fez esse desconforto dar lugar a uma sensação difusa de estranheza, de alienação, de não pertença. De incompreensão. Os momentos da discoteca e dos hooligans são muito ilustrativos da dissonância entre a protagonista e a sua aparência; e o que se segue leva a ideia ainda mais longe.
No resto, Under the Skin é cinema elevado a arte, no sentido mais subjectivo do termo. A realização de Glazer é metódica, evocativa, muito atenta ao pormenor; a fotografia de Daniel Landin é de uma beleza melancólica ímpar no cinema de ficção científica; a banda sonora da jovem Mica Levi, estreante nestas andanças, é notável pela forma como se funde com as imagens e lhes dá toda uma nova dimensão; e o desempenho de Scarlett Johansson, como já se disse, é magnífico na sua actuação em duplo sentido, na sua transição da indiferente frieza predatória da primeira parte para a confusão identitária da segunda. Uma interpretação espantosa, que eleva o filme e que provavelmente não terá o reconhecimento que merece.
Under the Skin não será um filme para todos - o seu ritmo pausado, meditativo mesmo nos momentos mais tensos, o desconforto que evoca e a forma como Glazer e Campbell reduzem a narrativa de Michel Faber aos seus elementos primordiais para desafiar o espectador a reflectir sobre o significado de cada imagem, de cada sequência, de cada acção. Mais do que mostrar ao invés de contar, Glazer sugere - e deixa ao espectador um amplo espaço para a sua própria interpretação. Quem, no entanto, aceitar o filme nos seus próprios termos, terá em Under the Skin uma obra espantosa, das mais importantes que o género conheceu nos últimos anos. Mais do que isso: terá um filme tão belo como tenebroso, tão estimulante como estranho, tão sossegado como arrojado, onde a estranheza assume o papel principal e onde nos podemos verdadeiramente ver pelos olhos do outro. 9.0/10
Under the Skin (2013, com estreia ao público em 2014)
Realização de Jonathan Glazer
Argumento de Walter Campbell e Jonathan Glazer a partir do romance homónimo de Michel Faber
Com Scarlett Johansson e Jeremy McWilliams
108 minutos
5 comentários:
Excelente crítica! Este filme já me tinha despertado a curiosidade, e parecia-me ter bom aspecto, mas tiraste-me as dúvidas todas. A forma como "usam" a Scarlett (a falta de carga sexual, como referes) foi uma das coisas que me pareceu interessante.
Não é o papel comum dela, e é honestamente inesperado. Se ela o fez bem, epah, rendo-me.
Obrigado. Pessoalmente, adorei o filme do primeiro ao último momento. Mas mantenho o aviso: o ritmo mais contemplativo e a ausência de um enredo mais óbvio faz com que o filme não seja para todos (para teres uma ideia: houve imensa gente a sair a meio. Certo, era uma ante-estreia, quem lá foi não pagou bilhete; ainda assim, a atitude quererá decerto dizer alguma coisa).
Simplificando a coisa: se quando vês "2001: A Space Odyssey" do Kubrick ou "Solyaris" do Tarkovsky a tua reacção for a de encantamento, vai ver este. Só pela experiência vale o dinheiro; o resto é bónus.
Estou a ver... Mas estás-me a falar bem, essa comparação com o "2001"...
Já tinha lido óptimas referencias a este filme e andava curiosa; esta critica aguçou-me o apetite e a menção a 2001 e a Solyaris convenceu-me. Obrigada.
Rui e Frye, a comparação com 2001 é apenas na sequência inicial e talvez numa preocupação com o detalhe, com a fotografia (lindíssima, mesmo nos momentos mais creepy). E, claro, no ritmo narrativo mais contemplativo, também algo reminiscente de "Solyaris" (nada de explosões, música frenética, etc). Mas vejam, que vale bem a pena, nem que seja pela forma como a Scarlett Johansson encarna - em ambos os sentidos - aquela personagem.
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