Coloquemos a premissa da seguinte forma: Scott Pilgrim é um jovem canadiano que leva uma vida pouco atribulada entre a sua desocupação generalizada, o seu hobby de tocar baixo numa banda com amigos de liceu e a sua ressaca amorosa. Até ao dia em que conhece a rapariga dos seus sonhos, e decide fazer tudo para ficar com ela - incluindo lutar contra os sete ex-namorados dela. Esta sinopse pode resumir na perfeição o filme Scott Pilgrim vs. The World, filme de 2010 realizado por Edgar Wright que adaptou para o grande ecrã a série de seis graphic novels de Bryan Lee O'Malley. E, no entanto, não diz rigorosamente nada sobre o filme em si - descreve-o na sua forma mais elementar de comédia romântica, que de facto é, sem dar a mais pequena ideia de tudo aquilo que o torna num dos filmes mais irreverentes, originais e over the top deste novo milénio.
E essa irreverência nota-se logo nos instantes que antecedem o filme, quando se ouve a música tradicional da Universal, a distribuidora do filme, numa versão 8-bit reminescente dos videojogos de arcada e de consolas que hoje são relíquias de coleccionadores e de fãs nostálgicos. Essa referência não surge por acidente: para além da cena inicial na arcada (já agora: onde se pode encontrar uma arcada daquelas?), toda a premissa é explorada, tanto em termos narrativos como em termos estéticos, numa miscelânea entre a imagética da banda desenhada e o estilo frenético, garrido e excessivo dos videojogos clássicos.
Regressemos à premissa premissa: Scott Pilgrim (Michael Cera) é um jovem de 22 anos com uma vida no mínimo curiosa. Divide um cubículo com Wallace Wells (Kieran Culkin), um dos seus melhores amigos (e homossexual), mesmo em frente à casa onde cresceu. Toca baixo numa banda chamada Sex Bob-Omb (o nome soa tão bem) com dois antigos colegas de liceu: o seu amigo Stephen Stills (Mark Webber) e a sua ex-namorada Kim Pine (Alison Pill). E namora com Knives Chau (Ellen Wong), uma rapariga chinesa cinco anos mais nova, que ainda estuda no liceu. Mas tudo se vai complicar quando conhece - literalmente - a rapariga dos seus sonhos: Ramona Flowers (Mary Elizabeth Winstead), uma jovem nova-iorquina de cabelo colorido e com rumores de um passado no mínimo agitado.
E é esse passado agitado que se vai desenrolar diante Scott Pilgrim, obrigando-o a enfrentar os sete ex-namorados maléficos de Ramona para poder ficar com ela - e as batalhas desenrolam-se como num videojogo, com cada ex-namorado a ser, na prática, uma boss fight. Noutro filme, talvez tudo isto parecesse absurdo no pior dos sentidos do termo: ver um tipo aparentemente desastrado Scott Pilgrim tornar-se de repente num lutador experiente, com poderes especiais e espadas mágicas à mistura, procurando derrubar os ex-namorados da rapariga que ama através de combinações improvisadas e desafios ousados seria sem dúvida uma experiência... confusa. Mas em Scott Pilgrim vs. The World, Edgar Wright torna o estranho e o dissonante em algo tão familiar como sublime.
A isso não está alheio um guião muito acima da média, capaz de dar personalidade às várias personagens e de as individualizar - e de as tornar verosímeis com todas as suas peculiaridades, mesmo quando manifestam poderes impossíveis ou uma total falta de surpresa perante os poderes dos outros. Um guião descomprometido e despretencioso, que em momento algum se leva demasiado a sério - e que arranja espaço para momentos de humor genuíno e para algumas das melhores one-liners do cinema recente. E, acima de tudo, um guião que conhece bem os territórios que pisa: Edgar Wright e Michael Bacall sabem exactamente que tropes dos videojogos devem utilizar e em que situações (excepto numa ocasião), e que elementos da banda desenhada podem ser incorporados de forma harmoniosa nas suas imagens em movimento.
E, claro, o elenco talentoso ajuda - e de que maneira. Michael Cera é um excelente protagonista - e a forma como transita da fraqueza para a força e da hesitação para a determinação é soberba. Alison Pill é a energia nervosa dos Sex Bob-Omb, e Ellen Wong é a perfeita namorada adolescente de Scott Pilgrim. Mary Elizabeth Winstead representa bem o papel de Ramona Flowers, mesmo quando a sua personagem se revela a mais problemática do filme (na medida em que no final acaba por lhe faltar algum rasgo). E Kieran Culkin rouba praticamente todas as cenas em que o seu Wallace entra.
O resto são cenas memoráveis, editadas com mestria e pensadas ao pormenor. A sequência final no Chaos Club é uma delícia para todos os apreciadores de videojogos - até à reviravolta final, um delírio absoluto que só o entretenimento interactivo pode proporcionar. O momento da vegan police foi uma das coisas mais hilariantes que vi em cinema nos últimos anos. As batalhas são deliciosas, num misto frenético de música com artes marciais e combos que funcionam espantosamente bem. E a história de base, a tal comédia romântica a que aludia, acaba por se elevar acima da sua banalidade aparente para dar forma ao romance quase perfeito da era da interactividade.
Durante anos, a banda desenhada foi o parente pobre das adaptações cinematográficas - demasiados filmes de qualidade duvidosa, incapazes de quebrar com os seus moldes e de se ajustar a um formato diferente, até ao momento em que se afastaram desses moldes para adoptarem uma seriedade e um estilo mais próximo do cinema de acção. As adaptações de videojogos, ainda que sejam um fenómeno mais recente, e ainda pouco frequente, parecem preparar-se para trilhar o mesmo caminho. Mas se há coisa que Scott Pilgrim vs. The World demonstra à saciedade é a possibilidade de os elementos mais característicos dos comics e dos videojogos poderem resultar em pleno num filme - assim haja imaginação, criatividade e arrojo estilístico para tal. Edgar Wright não teve receio de arriscar na adaptação da banda desenhada aclamada de Bryan Lee O'Malley - e o resultado, ainda que possa ter sido decepcionante em termos comerciais, foi um dos filmes mais originais e refrescantes dos últimos anos. 8.4/10
Scott Pilgrim vs. The World (2010)
Realização de Edgar Wright
Argumento de Edgar Wright e Michael Bacall a partir das graphic novels de Bryan Lee O'Malley
Com Michael Cera, Mary Elizabeth Winstead, Ellen Wong, Alison Pill, Mark Webber, Kieran Culkin, Johnny Simmons e Anna Kendrick
112 minutos
2 comentários:
Já não sou adolescente mas adorei este filme precisamente porque se afasta da tendência actual das comédias românticas destinadas ao público adolescente onde impera o mau gosto , o humor escatológico e a imbecilidade.
Heh. Ora aí está um excelente resumo das actuais comédias românticas adolescentes - e mesmo de muitas "comédias" não exactamente adolescentes...
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