29 de abril de 2014

Unbreakable: Antítese física e ambiguidade moral

Vivemos num tempo em que a banda desenhada de super-heróis da tradição norte-americana - usemos a designação comics para simplificar, ainda que não seja de todo rigorosa - abandonou o gueto geek no qual se manteve durante décadas para se instalar bem no centro da cultura popular contemporânea. Não será decerto incorrecto afirmar que tal fenómeno se deve em larga medida ao sucesso das adaptações cinematográficas deste novo milénio, que deram nova vida no grande ecrã a personagens já populares como Spider-Man ou Batman, que trouxeram para a ribalta personagens menos conhecidas do grande público como o Iron Man ou os mutantes de X-Men, e que possibilitaram o encadeamento narrativo do Marvel Cinematic Universe, cuja primeira fase foi concluída com The Avengers num sucesso mundial que seria difícil de prever uma década antes. É certo: já antes dos anos 00 havia adaptações de comics ao cinema, e algumas bastante bem sucedidas tanto em termos críticos como comerciais - é ver o caso de Batman e Batman Returns, de Tim Burton, exercícios notáveis de enquadramento do tom mais camp de muitos comics num filme de contornos mais sombrios. Para todos os efeitos, porém, antes do ano 2000 os filmes de super-heróis eram algo que não apelava ao grande público, e nem os sucessos passados do Batman de Burton ou do Super-Man de Richard Donner lhes retiravam o estigma de histórias over the top, com pouco a dizer sobre o seu tempo, e efectivamente irrelevantes. Para todos os efeitos, essa percepção começou a mudar com o X-Men de Bryan Singer, em 2000, e com o Spider-Man de Sam Raimi, em 2002 - filmes com elencos muito conhecidos do grande público, a dar destaque à acção e com alguma exploração do zeitgeist, ainda que limitada. Mas no mesmo ano em que X-Men mostrava as possibilidades dos super-heróis dos comics para os blockbusters de acção, um filme mais discreto pegava nos comics para contar uma história de origens de um super-herói pela via oposta - pela pausa, pelo silêncio, pela exploração do drama pessoal. Esse filme é Unbreakable, de M. Night Shyamalan. 


As narrativas dos comics são com frequência histórias de opostos, assentando com frequência na eterna antítese ente o bem e o mal para distinguir entre heróis e vilões e colocá-los em confronto. Em termos práticos, Unbreakable não é excepção a esta norma, mas utiliza um conhecimento assinalável dos comics para desconstruir a premissa e torná-la original e refrescante. E fá-lo desde logo na apresentação dos seus protagonistas, Elijah e David.


Elijah Price (Samuel L. Jackson) nasceu com uma condição rara que faz com que os seus ossos quebrem ao mais pequeno impacto - um autêntico homem de vidro (Mr. Glass), como é conhecido pelos seus pares em criança. A sua mãe, numa tentativa de o fazer viver com um módico de normalidade, dá-lhe a conhecer os comics de super-heróis - em troca, Elijah terá de sair de casa para os obter. Elijah acaba por se tornar num coleccionador e num estudioso do formato, e acaba por tentar encarar a sua fragilidade à luz dos princípios da banda desenhada.


Em antítese à fragilidade de Elijah temos David Dunn (Bruce Willis), um homem aparentemente normal que trabalha como segurança num estádio de futebol americano. Dunn passou ao lado de uma carreira fulgurante na modalidade, e desde então nunca mais foi o mesmo - o seu casamento com Audrey (Robin Wright) terá sido a única coisa positiva que retirou do acidente, mas mesmo isso está a desmoronar-se; e a sua relação com o seu filho, Joseph (Spencer Treat Clark) está longe de ser afectuosa. Mas a sua vida vai mudar de forma radical no momento em que sobrevive ileso a um violento acidente de comboio que ceifou a vida a todos os outros passageiros.


Ao sobreviver ao desastre, David chama a atenção de Elijah - que lhe pergunta se alguma vez ele esteve doente. Instigado por aquele estranho que começa a intrometer-se na sua vida, David é levado a reflectir sobre algumas peculiaridades do seu passado e sobre as versões verdadeiras de alguns acontecimentos, numa jornada de auto-descoberta feita com Joseph que irá mudar a sua vida para sempre. 


O invés de apostar no ruído, Unbreakable joga pelo silêncio - e esse contraste com o cinema de super-heróis contemporâneo só o torna mais relevante nos dias que correm. É, acima de tudo, uma história de origens, com a descoberta do super-herói a ser feita no contexto de um drama familiar verosímil, acentuado na perfeição pelos desempenhos contidos de Bruce Willis e Robin Wright (houve críticos que se queixaram do melodrama; pessoalmente, porém, julgo que a questão familiar torna a história de Dunn mais forte). 


Mas o ponto forte de Unbreakable é a forma como utiliza a tradição e as convenções dos comics para enquadrar a sua história e para desenvolver as duas personagens principais - as referências que Shyamalan coloca a propósito da história do formato, dos traços dos vilões e da distinção entre vilão e arqui-inimigo são notáveis, e introduzem algo de significativo para a tensa reviravolta final. E com alguns momentos deliciosos para fãs e conhecedores de comics, que decerto não terão conseguido evitar um sorriso no momento em que Elijah recusa vender uma prancha rara de um comic clássico a um homem que quer dá-la ao seu filho de quatro anos - numa defesa do formato como arte e, mais do que isso, como algo adulto, distante do preconceito que determina que comics são feitos para crianças. 


E a isso junta-se a mestria técnica de Shyamalan, rica no pormenor e no simbolismo desde o primeiro momento com um Elijah bebé revelado através do espelho até aos enquadramentos, aos ângulos mais invulgares, às imagens de uma beleza sombria que encaixam na perfeição na narrativa e no tema. Em termos visuais, o realizador nada deixa ao acaso, e Unbreakable ganha com isso em múltiplas visualizações, quando a descoberta do final se esgota. 


Unbreakable poderá não ser uma obra-prima, mas nem por isso deixa de ser um thriller intrigante, com uma premissa bem montada a convergir para uma reviravolta final que, não sendo de todo inesperada, nem por isso deixa de ser inteligente. E talvez seja mais relevante hoje do que há 14 anos, quando os filmes de super-heróis não eram moda, por demonstrar que é possível pegar no tema e explorá-lo por vias alternativas à intensidade alimentada a computer-generated images dos blockbusters modernos. E mais do que isso: sem se afastar das suas raízes e da sua identidade própria. Neste ponto, o filme de Shyamalan marca pontos: é uma história de origens de um super-herói que surge marcada pela ponderação, pelo drama e pela sua profunda humanidade, e não pelo ruído e pela violência. Por isso, e pelo seu carácter meta-referencial, acaba por se elevar no género. 8.2/10

Unbreakable (2000)
Realização e argumento de M. Night Shyamalan
Com Bruce Willis, Samuel L. Jackson, Robin Wright, Spencer Treat Clark e Charlayne Woodard
106 minutos

Sem comentários: