Por motivos diversos, entre os quais se incluem alguma falta de tempo, um pouco de preguiça e uma gripe inesperada, acabei por não escrever mais nada a propósito da segunda edição do seminário Tolkien: Construtor de Mundos, organizado pelo Centro de História da Faculdade de Letras e Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa, que decorreu no passado dia 27 de Março no Anfiteatro III da FLUL, e ao qual tive a oportunidade de assistir na íntegra. Mas talvez ainda não seja tarde para fazer pelo menos um apanhado geral do que foi o seminário (nada de um resumo tão exaustivo como o do ano passado, em cinco partes - 1, 2, 3, 4, 5).
O primeiro aspecto que importa destacar nesta segunda edição do seminário é a afluência: desde a primeira sessão da manhã, às 10:00, até às últimas sessões ao final do dia, o Anfiteatro III da FLUL esteve sempre cheio, atestando o interesse dos estudantes da Faculdade de Letras por Tolkien e o sucesso desta iniciativa (a terceira edição foi praticamente confirmada para 2015). O segundo aspecto merecedor de destaque é a qualidade global das várias apresentações que compuseram o seminário - e que passaram por temas tão diversos como as influências clássicas do conto de Númenor às influências escandinavas do seu mythos, passando por personagens como Beorn e Sméagol/Golum e pelas batalhas, sem esquecer até as ilustrações do próprio Tolkien, e as adaptações cinematográficas que a sua obra conheceu neste novo milénio.
A primeira sessão, intitulada "Aspectos do platonismo de Tolkien: O conto de Númenor", a cargo de Nuno Simões Rodrigues, incidiu justamente sobre as influências clássicas (helénicas) que estão na base de Akallabêth, ou a história da queda do reino de Númenor publicada em The Silmarillion - com o mito platónico da Atlântida a ser a influência mais evidente desta narrativa, que recupera os motivos do Ocidente como lugar da civilização primordial e local de desafio à morte, a ruína trazida pelo desejo de imortalidade, atributo divino por excelência, o paralelo da talassocracia numenoriana com a ateniense, e mesmo o conceito de "ilha maravilhosa", recuperado talvez de forma indirecta de Homero, Esíodo e Herédoto. Logo de seguida, Iolanda Zorro transportou a audiência não para a palavra escrita de Tolkien, mas sim para o fascinante mundo das suas ilustrações numa sessão intitulada "Tolkien: O ilustrador de Faërie. E a sua veia de ilustrador, porventura menos conhecida, nem por isso deixa de ser espantosa e imaginativa - os exemplos, esses, foram retirados tanto de The Hobbit como de obras mais afastadas do contexto da Terra Média, como Roverandum, Letters to Father Christmas e Mr. Bliss. Hélio Pires recuperou as influências escandinavas na obra de Tolkien numa sessão intitulada "Anões e Elfos: Entre pedras e deuses nórdicos" - destacando o carácter tardio de muitas fontes utilizadas por Tolkien, compiladas e traduzidas por autores cristãos, e enquadrando as origens dos Anões e dos Elfos (e o episódio dos Trolls) no mitos e nos textos escandinavos. A manhã foi encerrada por Adelaide Meira Serras, com "J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis: Boas fadas os fadaram", uma sessão animada com um forte cunho biográfico, dedicada às aproximações e às divergências entre Tolkien e Lewis.
A tarde começou com Angélica Varandas e Luísa Azuaga numa sessão dedicada a uma das mais fascinantes personagens secundárias da obra de Tolkien: "Beorn". Como não podia deixar de ser (numa das várias piadas recorrentes do seminário, esta tendo mesmo transitado ainda do ano passado), Varandas e Azuaga estabeleceram o paralelismo entre Beorn e Beowulf, que Tolkien estudou exaustivamente, e cuja sua tradução será em breve publicada. "Sméagol, ou a doçura do azedo", de Miguel Ângelo Fernandes, incidiu sobre a dualidade de Sméagol e Gollum tal como foi retratada no filme The Two Towers - mas o orador optou por uma abordagem pouco convencional (e por isso muito mais interessante) que passou pela neurologia, pela anatomia e mesmo pelas drogas, às quais o Anel foi equiparado pela sua capacidade não de criar o que quer que seja, mas de exacerbar o que já existe pelo vício e pela corrupção. José Varandas dedicou-se, numa longa e fascinante deambulação que se aproximou mais de uma aula de História Militar Comparada do que a uma sessão de um colóquio, a temáticas militares em "Os Exércitos da Terra Média: A guerra em Tolkien" - analisando tanto nos livros como nos filmes as influências de modelos militares distintos, armas, armaduras e estratégias. Isto, note-se, foi apenas a primeira parte - a segunda ficou prometida para o próximo ano. Ana Daniela Coelho destacou o tema da música na obra tolkieniana na sessão "Adaptações para além da imagem: Canções na página e no ecrã", referindo as adaptações radiofónicas de Tolkien e as bandas sonoras de Howard Shore para os filmes de Peter Jackson (que incorporou a tradição europeia com elementos folk para identificar a diversidade da Terra Média), e explorando com algum detalhe, a partir do single "I See Fire", de Ed Sheeran, a passagem do folk para o pop na adaptação tripartida de The Hobbit. Por fim, Miguel Monteiro Marques, em "Não li os livros, mas vi os cartazes dos filmes", propôs uma interessante leitura linguística dos vários cartazes promocionais da trilogia de filmes de Jackson (e, de passagem, referiu o absurdo da comparação frequente entre filmes e livros).
O dia seria encerrado com uma mesa-redonda dedicada ao tema "Tolkien depois de Peter Jackson", com Francisco Lyon de Castro, Rita Guerra e João Freire de Andrade, e com um debate (integrado na mesa-redonda) devido ao já clássico atraso na programação. E isto, repare-se, não é exactamente uma queixa: em termos qualitativos, esta segunda edição do seminário Tolkien: Construtor de Mundos foi notável, e a afluência não deixa dúvidas: Tolkien está longe de estar fora de moda.
Que venha a terceira edição em 2015.
2 comentários:
Só uma coisa: menciona sempre o anfiteatro da FCUL, quando o seminário foi na FLUL ;)
Tem toda a razão, vou já corrigir. Obrigado!
(é uma gralha curiosa, agora que penso nisso)
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